O julgamento em que Cunhal mostrou a "têmpera de revolucionário" foi há 60 anos
PCP assinala aniversário do julgamento político de Álvaro Cunhal onde este definiu aquela que viria a ser a forma como os comunistas deveriam passar a agir em tribunal
O Partido Comunista Português (PCP) assinala hoje os 60 anos do julgamento político de Álvaro Cunhal no Tribunal da Boa Hora. A evocação servirá para divulgar um conjunto de documentos inéditos do próprio ex-líder comunista. Estarão assim disponíveis alguns dos manuscritos produzidos por Cunhal após a sua terceira detenção em 1949, que o fez passar 11 anos no Forte de Peniche, de onde só fugiu em Janeiro de 1960.
No CD-Rom apresentado estão centenas de páginas em fac-símile dos cadernos 1, 28 e 49. Os cadernos eram usados por Cunhal para registar "de forma sistemática" a sua vida naqueles tempos. Segundo José Casanova, dirigente comunista e director do jornal partidário Avante!, as entradas nesses documentos referiam-se a peças do processo, requerimentos, protestos, reclamações e cartas ao ministro da Justiça.
Passados 60 anos do julgamento que se iniciou em Maio de 1950, os historiadores da época não divergem sobre a importância que este teve. A conduta de Cunhal fixou que, a partir desse momento, os comunistas deveriam passar ao ataque, evitar a defesa e, assim, usar a tribuna para denunciar o regime.
Tal como José Casanova recorda no CD-Rom, Cunhal terminaria a sua intervenção no julgamento de dedo apontado ao ditador Oliveira Salazar, dizendo que quem deveria estar sentado no banco dos réus não eram os comunistas, "mas os actuais governantes da nação e o seu chefe, Salazar".
João Madeira, historiador especialista em PCP, afirma ser este processo "uma peça histórica de grande importância". Irene Pimentel, doutorada com uma tese sobre a PIDE, explica que "a partir de então passou a haver uma norma de comportamento para os comunistas" sobre como agir em tribunal.
Da defesa ao ataque
A partir daí, acrescenta Pimentel, "os julgamentos seriam sempre utilizados para defender e divulgar publicamente o PCP" e ao mesmo tempo "denunciar os abusos perpetrados pela PIDE", caso o acusado percebesse que as provas do seu envolvimento com o partido eram inegáveis. Até então, os militantes e funcionários negavam o seu envolvimento.
Para ajudar a perceber o impacto da conduta de Cunhal, Pimentel cita um exemplo por oposição. "Manuel Guedes [histórico dirigente que fez parte do Comité Central e Secretariado nos anos 40] não conseguiu utilizar a tribuna para defender a linha do partido e acabou criticado no Avante! por isso."
"O efeito agregador bastante importante" foi outra das consequências destacadas por João Madeira. Uma "afirmação de valores e princípios" de um partido que "havia acabado de sofrer uma violenta investida" por parte do regime autoritário.
Madeira frisa que esses anos - 1949 a 1951 - foram os piores para o PCP, altura que se revelou a "expressão mais forte da guerra fria em Portugal".
Mas Madeira lembra que o exemplo de Cunhal não era o primeiro. "Sem lhe retirar o mérito, até porque foi um acto de grande coragem", frisa o historiador, tinha já existido esse tipo de conduta no julgamento em tribunal militar de Bento Gonçalves. E que definia, no fundo, a doutrina do movimento comunista: "O tribunal é um local de combate político."
O efeito atingido pelo comportamento de Cunhal teria então a ver com o peso que este já tinha no PCP: "Nessa altura ele já estava afirmado no partido", explica João Madeira. Irene Pimentel explica ainda que o comportamento de Cunhal haveria de "espalhar-se pela oposição em geral", mesmo entre os que não faziam parte das fileiras do PCP, e "os pró-prios advogados de defesa acabavam por apoiar os seus clientes nessa forma de actuação".
Álvaro Cunhal escreveu precisamente sobre a importância da conduta de um militante quando se via perante um tribunal. No II Tomo das suas Obras Escolhidas, o histórico dirigente comunista define esse como um dos "três momentos principais em que [um comunista] é chamado a dar provas da sua têmpera de revolucionário".
Casanova assinala o "notável e corajoso momento de resistência durante o qual, passando de acusado a acusador, ele leva à prática o que sobre a questão teoriza, mostrando com o seu exemplo que, nos tribunais fascistas, "os comunistas não se defendem a si, mas à política do partido"".
Além do CD-Rom, a evocação do PCP vai incluir a leitura de excertos da defesa de Cunhal, leitura de poesia de Pablo Neruda e Manuel Gusmão e um momento musical. A iniciativa faz parte do ciclo Álvaro Cunhal: uma vida dedicada aos trabalhadores e ao povo, ideal e projecto comunista, tendo a participação do actual secretário-geral, Jerónimo de Sousa.