Na aldeia onde não se chora a morte do menino da cidade, houve outrora uma paixão escondida
Na aldeia natal de José Saramago, a memória da infância do escritor permanece tão vívida como os dias de glória em que Azinhaga teve o seu Nobel
"A vida dele não era aqui". À soleira da porta, Carmelinda Maltês resume o sentimento dos seus conterrâneos sobre o pirralho que abalou da aldeia da lezíria ainda usava fraldas.
Na Azinhaga, a povoação rodeada de verdes campos do concelho da Golegã onde José Saramago abriu pela primeira vez os olhos para o mundo, não se vertem lágrimas e as únicas vozes entarameladas são as dos homens da terra que passaram o sábado na tasca. Duas ou três flores na estátua desproporcionada que lhe foi erguida no centro da terra e as protocolares bandeiras a meia haste bastam para assinalar o desaparecimento deste neto de camponeses pobres.
É verdade que fez qualquer coisa pela sua terra: nos últimos anos ofereceu uma carrinha para transportar idosos, ajudou na construção da biblioteca, abriu uma delegação da sua fundação... Mas, como diz Carmelinda, "já descobriu a terra um bocadinho tarde". E depois de ter ficado sem a casa dos avós numas partilhas de má memória não voltou a ter aqui casa. Sobrou-lhe pouca família e os da sua criação, aqueles com quem partilhava as férias grandes, têm desaparecido um a um com o peso da idade.
Foi o que aconteceu a Violante há escassos oito meses. Amiga de infância de Saramago, Otelinda Nunes ainda se lembra como os olhos claros da filha do dono da taberna enfeitiçaram o menino da cidade. Depois de se ter mudado para Lisboa com os pais - a mãe trabalhava a dias para ajudar a pagar os estudos ao filho único, enquanto o pai subia na hierarquia da PSP -, José passava as férias grandes na Azinhaga, com os avós, que idolatrava. Já nessa altura havia na terra quem dissesse que ainda havia de ser alguém. E ele, que ficava com ar de galã de cinema nas fotografias e gostava de jogar gamão, enamorado. A filha do dono da taberna nunca o quis. Casou com um rapaz da terra com vocação para a música. "Foi uma paixão tão grande que quando Saramago teve a filha lhe pôs o nome de Violante", recorda Otelinda.
Mais tarde, já escritor, havia de voltar a vê-la, de a cumprimentar mais ao marido quando visitava o restaurante da família do dono da taberna. Mas por esta ocasião já tinha ganho desamor à terra, primeiro por causa do apoio que pediu às autoridades locais para lá ficar uma temporada a escrever - era só uma estadia paga que queria, mas nem isso lhe deram - , depois por ver a antiga casa dos avós transformada numa minúscula maison com azulejos na fachada. Passariam vários anos até se reconciliar com a Azinhaga. Quando regressou um dia, transformado em Prémio Nobel, era Violante já velhinha. Será que lia os seus livros? Talvez. Mas se o fazia era dos poucos na Azinhaga, onde lhe acham a escrita "difícil" e "confusa".
Houve quem tivesse levado a mal Saramago confessar que, se não tivesse abalado dali para fora aos dois anos, era "mais um burro que ali ficava". Terra de gente do campo e de fábricas, a Azinhaga retomou hoje um ciclo de pobreza feita de falta de emprego. "Saramago conheceu isto pobre, quando era novo, conheceu isto rico, quando toda a gente tinha trabalho, e agora voltou a conhecer isto pobre", descreve uma prima de Saramago, Júlia Melrinho. Sem Saramago, ficou mais pobre ainda. Mas poucos deram por isso.