Ele inventou um Portugal em Lanzarote
O Nobel que escolheu viver fora de Portugal foi um patriota à sua maneira. É o que defendem tanto Eduardo Lourenço como o ex-ministro espanhol da Cultura, César António Molina
Saramago saiu de Portugal mas talvez nunca tenha deixado Portugal. E quando ontem se tratou de decidir, Portugal ou Espanha, foi Portugal, definitivamente.
O corpo do escritor chega hoje, às 12h30, ao aeroporto de Figo Maduro, segue para o Salão Nobre da Câmara Municipal de Lisboa, onde ficará em câmara ardente até amanhã por volta das 12h, será depois cremado no Cemitério do Alto de São João, e as cinzas ficarão em Portugal.
"O que Pilar del Rio me disse é que as cinzas ficarão cá", disse ao PÚBLICO José Sucena, o administrador da Fundação José Saramago. Em 2008, o escritor manifestou a vontade de que as cinzas fossem colocadas sem qualquer inscrição no seu jardim de Lanzarote. "Ele terá tido razões para alterar essa manifestação de vontade", explicou ontem José Sucena. "Por razões que não gostaria de revelar, ele expressa e livremente mudou de opinião."
Só ao fim da tarde de ontem se tornou claro qual seria o destino final de Saramago. O corpo permaneceu em câmara ardente em Tías, Lanzarote, enquanto em Lisboa o Ministério da Cultura anunciava ter fretado um C130 para ir buscá-lo logo que os trâmites burocráticos o permitissem. Depois foi anunciado que o corpo viria para Lisboa hoje e ficaria em câmara ardente, mas tudo o mais continuou em aberto: se Saramago seria enterrado ou cremado, e para onde iriam os seus restos finais. Chegou a pôr-se a hipótese de as cinzas serem divididas entre Azinhaga do Ribatejo, a terra natal do escritor, e Lanzarote, a ilha espanhola onde escolheu viver com Pilar del Rio.
Portugal em Lanzarote
"Nunca pensei noutra coisa, nunca, nunca", reagiu Eduardo Lourenço, ao saber que o corpo de José Saramago seria cremado em Lisboa e as cinzas ficariam em Portugal. "Porque o conheço e sei que é um autor português ligado a esta terra de uma maneira visceral. É um homem da terra, desta terra. Não cosmopolita, porque não é o seu género, e não patriota num sentido banal. Ele inventou a pátria de que precisava para respirar e para existir, como todos nós."
Desde que o autor de O Evangelho Segundo Jesus Cristo deixou Portugal - na sequência de um gesto censório de Sousa Lara, um sub-secretário de Estado da Cultura cujo nome a cultura portuguesa, de outra forma, hoje teria dificuldade em lembrar -, a relação do país com Saramago e de Saramago com o país alimentou centenas de páginas, até se reflectir na incógnita depois da morte.
E não terão os portugueses cobrado, ao longo dos anos, o facto do mais traduzido e premiado escritor vivo português viver fora? "Alguns cobraram, mas acho que não", diz Eduardo Lourenço. "Além de ser o escritor que é, tornou-se um ícone cultural português. Portugal ficou com o Prémio Nobel por conta de Saramago e vice-versa. Sabemos todos que há gente que não concorda com as ideias dele. Mas quando recebeu o Nobel fez a unanimidade que se pode ter neste país."
E, na visão de Lourenço, qual terá sido a razão decisiva que manteve Saramago fora de Portugal? "Excesso de susceptibilidade e também, perante uma pessoa que teve aquele gesto [Sousa Lara], um protesto, sendo que Saramago não era homem para arrependimentos. Depois também tinha uma relação especial com a Espanha. Já não estamos na época de nacionalismos como o século XIX o concebeu. Ele procurou um sítio que fosse dele. Lanzarote era um bocado de Portugal."
E ele para Lanzarote era tanto que os responsáveis políticos da ilha decidiram decretar um luto de três dias. Mais um dia do que o luto decretado pelo governo português para hoje e amanhã.
"Em Portugal houve um passado de pouca aceitação na primeira parte da vida dele, mas penso que não há verdadeiro contencioso entre Saramago e Portugal", atalha Eduardo Lourenço. "E era das pessoas que conheço que conhecia melhor Portugal. Simplesmente, o que fez foi reiventar um outro passado, primeiro para Portugal, depois para a Península Ibérica, e depois para o mundo.
Patriota é o que critica
César António Molina, escritor e ex-ministro espanhol da Cultura, conheceu Saramago ao longo de 30 anos. Quando ontem se confirmou a cremação ficou desapontado. "Creio que o corpo de um grande artista deveria conservar-se. Creio que o corpo de Saramago deveria ser enterrado nos Jerónimos, com outros grandes de Portugal. Tem tal altura e importância, apesar de ainda não termos tido distância para nos darmos conta da sua dimensão."
E sendo um escritor português, em Espanha coloca-se a hipótese de ser também visto como um escritor espanhol? "Não. Ele é um escritor português em língua portuguesa, que amou e entendeu muito bem Espanha. Mas é um escritor português, porque a língua é a identidade. Ele não escreveu em espanhol. É uma pessoa que viveu em Espanha, e a quem os espanhóis querem como compatriota, mas respeitamos a sua identidade, que era portuguesa."
E a questão do patriotismo nem se coloca, defende Molina. "Um grande escritor espanhol, Mariano José de Larra, dizia que o verdadeiro patriota é aquele que critica o seu país e não o que trata de ocultar os seus defeitos, porque quer que esse defeitos sejam corrigidos. Saramago foi um grande patriota, evidentemente criticando aspectos, mas na crença de que ajudava o país. Mas provavelmente sentia que havia gente em Portugal que interpretava mal o seu pensamento de forma deliberada."