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Entrevista: "Como portugueses estamos cansados de viver. Se calhar, a nossa missão histórica acabou"

Saíram de casa, na ilha de Lanzarote (Espanha), em 2 de Setembro. Só regressarão no Natal. Gente vinda de Barcelona, de Paris - um milhar de pessoas, calcula Pilar - cantará a Saramago o "Parabéns a Você", numa celebração que marcará simultaneamente o lançamento da autobiografia dos seus primeiros 15 anos de vida. Primeira parte de uma entrevista que publicaremos na próxima edição do Mil Folhas.

PÚBLICO - Se eu lhe dissesse, depois de ler a sua autobiografia, que foi um salazarista quando era adolescente, o que é que respondia?

JOSÉ SARAMAGO - Que nunca fui salazarista.

- E que esteve "ligado ao fascismo", como disse em título [na sexta-feira] o Correio da Manhã"?

- A ignorância tem alguma inconveniência. Quando se junta à estupidez, não há remédio. O que não consigo compreender é que não haja um director ou um chefe de redacção atentos.

- Mas sabe que, antes do Correio da Manhã, foi O Estado de S. Paulo [edição do dia 4] quem o escreveu, em título?

- É estúpido, evidentemente. Perguntaram o que achava [da confissão] do Günter Grass [no livro Beim Häuten der Zwiebel (Descascando a Cebola), edição em Portugal prevista para o ano que vem, de que fora voluntário nas Wafen-SS, de Hitler, aos 17 anos]. Eu estava bem disposto e respondi dizendo que tinha chegado a altura de fazer uma confissão. Eles tomaram à letra a ironia e disseram isso. No livro, conto que todos fomos da Mocidade Portuguesa. O Correio da Manhã é um eco daquilo que O Estado de S. Paulo escreveu, julgando que tinha na mão um escândalo.

- No livro, assinala que, no liceu, conseguiu ficar sempre para último, na fila, e nunca usou a farda.

- E escrevo, a propósito, que essa foi a minha primeira vitória contra o fascismo. É preciso ter muito cuidado no uso da ironia com jornalistas. Sobretudo tratando-se de uma resposta por escrito. Ele [o entrevistador brasileiro] não sabia nada [sobre a história da Mocidade Portuguesa].

- Ele faz a ligação a Grass, "que confessou, na autobiografia, ter pertencido à juventude hitleriana". Por que é que, a propósito, compreende a confissão tão tardia de Grass?

- Ninguém se preocupa muito que as pessoas não revelem os seus segredos. Ninguém os conta, ou conta só algum que casualmente interesse. Todos guardamos segredos. Mas parece, do ponto de vista daqueles que se escandalizaram, que não podemos guardar segredos. Então não vamos guardar segredos, todos. Dizem: "Ah!, mas uma figura pública..."

- Uma figura que se assumiu como autoridade moral...

- Podia alegar-se aí que Saulo [de Tarso, nome original de S. Paulo] também perseguiu os cristãos e depois se converteu. Evidentemente que teria sido melhor para Grass se o tivesse confessado desde o princípio. Mas ele usou o jogo das meias-verdades.

- O que é censurável.

- Mas não haverá também aí uma grande hipocrisia das pessoas que se apresentam como grandes virtuosas, honestas, límpidas de carácter, com passados impolutos? Não será antes o caso, tão ansiado por tanta gente, de descobrir os pés de barro dos gigantes que deviam ser de bronze?

- Também. Por Isso é que aqueles que se agigantam têm que estar preparados para isso.

- Não será a história daquele homem que andava de terra em terra à espera de que o trapezista do circo caísse? Tomei partido a favor porque aquilo [que Grass fez] não apaga aquilo que foi o futuro desse tempo. Não tinha o direito de se armar em fiscal moral dos outros? Eu não quero julgar isso. Eu não condeno o Günter Grass. Devia ter sido dito? Pois devia. Mas, pelo menos já está dito. Deixem agora o homem em paz.

- Sondagens recentes, em Portugal e em Espanha, indicam que há gente de cá e de lá disponível para avançar para uma união dos dois países. Independentemente do valor das sondagens, se lhe fizessem a si a pergunta, o que respondia?

- Entregava um ensaio de 12 páginas que publiquei há uns 20 anos e que se chama Sobre o meu iberismo.

- Pode resumir?

- Eu acho que nós estamos cansados. Como portugueses, estamos cansados de viver. Se calhar, a nossa missão histórica acabou.

- E agora?

- E agora quê? Não sabemos. Passámos séculos de dependência: dependência da Grã-Bretanha, dependência disto, dependência daquilo. Agora somos também dependentes, o que não é vergonha nenhuma: há panelas de barro e há panelas de ferro. Mas aqui falta uma coisa que se chama brio. Cada vez mais. Somos capazes de fogachos, como o 25 de Abril foi - um fogacho em que nós ingenuamente acreditámos. Não era certo, não era possível, não era crível, mas o tempo da felicidade para Portugal chegou então. Durou, como as rosas de Malherbe, l'espace d'un matin. Acabou.

- Deixou coisas boas.

- Não. Não deixou nada. As coisas boas que criou, eliminou-as todas.

- Os três "D" de que se falava: Democracia, Desenvolvimento, Descolonização? Todas as colónias são independentes.

- Não tínhamos outro remédio se não sair de lá, homem. Estávamos simplesmente derrotados.

- Salazar estava [politicamente] derrotado desde a II Guerra Mundial, toda a gente acreditava que vinha a democracia para Portugal, sopravam ventos de descolonização e os grandes impérios acolheram-nos, mas Portugal não.

- Isso só prova que países democráticos não se importavam nada de conviver com países não democráticos desde que isso, de uma forma ou de outra, servisse os seus interesses. E a história continua, veja-se o caso da China.

- Foi preciso jovens militares virem acertar o relógio da História, que tinha os ponteiros atrasados em Portugal.

- Talvez. Mas nós estávamos na Europa, numa comunidade como esta não era possível manter uma ditadura, mesmo que ela fosse ou se tornasse soft. Acabaríamos por fazer aquilo que a Espanha fez, mas, para isso, também precisou que morresse o ditador: uma transição.

- Influenciada por nós, como aconteceu, aliás, noutros países do Mundo.

- Há dias Freitas do Amaral contou a história de quando chamou os embaixadores dos países do Conselho de Segurança a quem comunicou estar a pensar reformá-lo. Resposta de todos eles: "Nem pense nisso. Nós vetamos". O 25 de Abril é uma data, apenas. Converteram-no numa data, nada mais. Já o disse em público e repito: eu já não celebro o 25 de Abril. Há um ante-25 de Abril que eu celebraria, se fosse disso que se tratasse, que é justamente o movimento que levou ao 25 de Abril. Feito por esses militares que a democracia liquidou, na maior parte dos casos, passando-os à reforma, perseguindo-os. A esses, sim, a esses tiro eu o meu chapéu. Mas há o tempo que vem depois. Muitos pensaram que tinha chegado a hora de mudar o país, que era de uma certa maneira mudar a História ou ter, sobre ela, outra visão. Não vale a pena entrar nos excessos, na reforma agrária, nas nacionalizações, mas isso é que eram consequências do 25 de Abril.- Volto aos três "D".

- Não aceito que se diga que ficámos com a Democracia.

- E também com a independência das colónias; e com algum desenvolvimento...

- O desenvolvimento em Espanha, nos anos 60, ocorreu sob o franquismo. Não foi necessário uma revolução. A China não é já uma ameaça para os EUA? [mostra uma entrevista que deu ao Nouvel Observateur, quando foi lançar a Paris o Ensaio sobre a Lucidez].

- Nessa entrevista diz: não há democracia, mas um poder que está por cima dos governantes em quem votámos e que não são, afinal, quem decide. A pergunta que dá vontade de lhe dirigir, ao senhor, um céptico que aderiu a uma ideologia que transportava o optimismo histórico é: o que fazer, então?

- O que fazer? Temos um cerimonial democrático cada vez mais falto de vergonha: campanhas eleitorais que custam rios de dinheiro, subsidiadas muitas vezes não se sabe por quem ou demasiado se sabe por quem; promessas que se sabe de antemão não serão cumpridas; processos cosméticos do género de termos um Governo de um partido socialista mas não um Governo socialista. Porque, aqui e em qualquer parte do Mundo, o partido no Governo vai poder chamar-se o que quiser porque vai ter que fazer exactamente a mesma política. Uma comédia de enganos. Não servimos para nada mais senão para homologar coisas que não têm nada que ver connosco porque não podemos influir nelas. Aristóteles, na Política, dizia que, num Governo democrático bem entendido, o governo da Polis, os povos deviam estar em maioria, pois são a maioria.

- É esse o princípio do sistema representativo...

- No livro A Morgadinha dos Canaviais, Júlio Diniz, um escritor suave, descreve aquela situação dos votos que se rasgam e são substituídos à última hora para eleger não uma pessoa mas a outra. Há coisas que deviam voltar a ser lidas.

- E, no entanto, é extraordinário o avanço nesse campo desde essa altura, entre nós.

- Mas quem é que não avançou nestes dois séculos? Seremos excepção? O extraordinário seria não termos avançado. Eu talvez seja demasiado céptico, mas você é demasiado optimista.

- O seu discurso quer mostrar-nos que a banalidade está instalada no mundo e que não há nada a fazer. Mas ela é mudável. Este seu livro é a prova viva de que um homem que nasceu numa aldeia entre gente pobre e analfabeta pode libertar-se daquilo que parece ser o seu destino.

- Ela é mudável, de acordo. Mas então mudemo-la! O que eu ando a dizer já há tempos é que é preciso mudarmos a vida se queremos mudar de vida. E isto aplica-se a tudo.

- Esclareça-me qual o 25 de Abril que valia a pena celebrar?

- Um 25 de Abril que realmente tivesse mudado a mentalidade dos portugueses. Que tivesse feito de nós pessoas capazes de construir. Que, dentro de nós, eliminássemos essa espécie de fatalidade de que, desde o D. Sebastião, temos sempre que depender de alguém que nos ajude a atravessar a rua.

- Por exemplo?

- Transformações como as nacionalizações. Agora, até para obter fundos para pagar dívidas se privatiza e se vende. Não foi isto que nós quisemos. Já sabemos que não há independência, que a soberania é relativa, que a autonomia é consoante os interesses dos vizinhos, mas podíamos ser outra coisa e não somos. Almeida Garrett escreveu: "A terra é pequena. E a gente que nela vive também não é grande".

- Alguma vez se interrogou sobre se, com esse 25 de Abril com que sonhava, não estaríamos hoje - tendo em conta o que se passou noutras latitudes - num 25 de Abril completamente pervertido, pior e, seguramente, com menos liberdade?

- Sou suficientemente céptico para lhe responder assim: considerando a palavra "não" a mais importante do vocabulário, posso dizer que uma revolução é um "não". Mas sei, perfeitamente, que, feita a revolução, o "sim" recuperará posições pouco a pouco. Tanto faz num sistema capitalista ou socialista. O sistema ensina hipocrisia a partir dos bancos da escola. Não mudaremos a vida, se não mudarmos de vida.

Texto publicado no suplemento Mil Folhas a 12 de Novembro de 2006
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