Depoimentos ao PÚBLICO sobre Saramago

Para imitar Saramago, também ele se levantou do chão, de um sítio sem memórias eruditas canónicas, apoiado na sua extraordinária experiência dos homens, sonhando e ressonhando o texto que foi para ele matricial. Refiro-me à Bíblia.

Quase todos os seus livros célebres são um diálogo com a mitologia bíblica, que ele vai submeter a uma estranha desmitologização, fazendo com ela um mundo às avessas ou antes um mundo onde as mais famosas histórias bíblicas se tornam a história mesma da humanidade unicamente humana.

Provavelmente com a queda da utopia que foi assumidamente a dele, essa espécie de diálogo dramático com a mundovisão religiosa de raiz bíblica foi o que o salvou, não só literariamente, do traumatismo ideológico e ético.

Deportou o essencial da sua utopia para paragens onde esse autêntico apocalipse político fosse substituído pelos sonhos de uma humanidade que pudesse ter perdido uma guerra mas nunca a ilusão que a faz viver."

Pedro Mexia, subdirector da Cinemateca e crítico literário

"Já há algum tempo que se esperava a notícia, embora José Saramago tenha recuperado até muito bem nos últimos tempos, numa espécie de nova vitalidade. Mas tinha 87 anos e já tinha estado quase do outro lado. Ele teve uma espécie de segunda vida, depois daquela quase morte de há três anos em que passou a ter um renovado sentido de humor, uma coisa que não era muito óbvia nele. E escreveu A Viagem do Elefante, um livro também invulgar na obra dele. Foram os últimos anos de vida um bocadinho diferentes, e para mim foi uma surpresa agradável.


O gosto de viver acentuou-se no confronto com a morte, como, aliás, penso que é relativamente natural que aconteça. A Viagem do Elefante, que só terminou depois de ser hospitalizado, é um livro que não tem uma amargura muito comum noutros livros dele. Isso foi uma novidade de fim de vida que apreciei bastante.

Duas características marcam o lugar dele na literatura portuguesa. É um escritor de ideias, o que não é o mais comum no âmbito da ficção portuguesa. Os romances dele partiam sempre de uma ideia forte, alegorias sobretudo políticas e civilizacionais. É um autor que constrói os seus romances à volta de ideias e não necessariamente de personagens ou de enredos. Há uma visão do mundo que é muito forte.

E, por outro lado, a sua escrita era uma espécie de actualização do barroco do padre António Vieira, um autor de que ele gostava e que tinha lido. Os famosos parágrafos corridos tinham também muito a ver com o incorporar dos diálogos e portanto com uma mistura de uma linguagem muito literária com uma abertura à oralidade que era a abertura às personagens e às classes que não têm acesso a outro tipo de linguagem - que falam e não escrevem.

Isso também tinha uma intenção política. Acho que ele também ficará como um autor político, o que naturalmente também tem os seus perigos, porque os autores que ficaram ligados à política nem sempre as suas obras envelhecem bem. Não sei se será o caso de Saramago. É um autor de que gosto muito de alguns livros e nada de outros.

Foi o primeiro português que ganhou o Nobel e provavelmente o último e desse ponto de vista esse lugar está assegurado na literatura portuguesa."

Urbano Tavares Rodrigues, escritor

"Toda a obra literária de José Saramago é tocada pela centelha do génio, particularmente livros como Levantado do Chão, Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, O Evangelho segundo Jesus Cristo e Ensaio sobre a Cegueira. A força das ideias mestras, a lucidez e o humor, a originalidade de um discurso oral que interpela o leitor e mescla dialecticamente acção, diálogo e comentário combinam-se em todos os seus livros com elementos mágicos de variada extracção, que ele muito justamente faz seus.


A sua defesa das grandes causas, mesmo para além das suas convicções comunistas, se é certo que lhe valeram alguns pequenos ódios e perseguições, trouxeram-lhe inegavelmente grande prestígio mundial. Como personalidade ímpar é olhado e respeitado.

Amigos desde o tempo da resistência ao salazarismo fascista e ao caetanismo, criámos laços de fraternidade inesquecíveis. Nunca olvidarei aquela folhinha dobrada que ele me metia no bolso, na redacção do Diário de Lisboa já no começo dos anos 70, dizendo-me: "Toma lá isto." Isto era o Avante! clandestino.

Ao longo dos anos, após o 25 de Abril, partilhámos lutas, esforços tenazes, alegrias e decepções. Muitas vezes divergimos e discutimos, dentro do partido ou cá fora, por diferente avaliação de acontecimentos ou realidades polémicas. Mas a frontalidade dessas divergências nunca empanou nem a admiração nem o profundo afecto que lhe dedico.

Recordo, emocionado, certas pausas da nossa intensa actividade de escritores e revolucionários, nos anos em que mais convivemos, e como a ironia de José Saramago faiscava nessas inesquecíveis conversas.

Hoje como ontem, nos lançamentos dos seus romances em Lisboa, sobre os quais quase sempre escrevi, ou a sua presença nas feiras do livro, entre dois livros assinados, o seu sorriso cúmplice, o seu abraço rijo.

Deixo-te aqui, Zé, um incitamento: continua a olhar para cima, para o sol da razão, que iluminou sempre a tua vida e a tua escrita."

Carlos Reis, ensaísta

"A notícia da morte chega nos momentos e nos lugares mais estranhos, mesmo que ela seja uma morte não propriamente anunciada, mas já esperada. À porta de um hotel, em Cáceres, pouco depois da reunião de um júri que atribuiu o prémio de criação da Junta de Extremadura a Eugenio Trías, comentávamos, Eduardo Lourenço e eu, o frágil estado de saúde de José Saramago; de repente, uma chamada telefónica (malditos telemóveis!) deu notícia daquilo que há tempos estava para vir: a morte de José Saramago.


Com José Saramago desaparece não apenas um grande escritor português, mas sobretudo um enorme escritor universal. Mas fica connosco um universo: esse que Saramago criou, feito de uma visão subversiva da História e dos seus protagonistas, dos mitos estabelecidos e das imagens estereotipadas. Ainda que a sua obra tenha a dimensão plurifacetada e sempre em renovação que é própria dos grandes escritores, quero evocar, neste momento de comovida homenagem, alguns dos seus componentes mais fortes e expressivos. E assim, digo que o romancista que em 1980 publicava Levantado do Chão - uma espécie de romance de iniciação que confirmava a aprendizagem representada em Manual de Pintura e Caligrafia - pagava uma espécie de tributo literário ao extinto neo-realismo, com o qual o escritor mantinha fortes laços de solidariedade ideológica e política. Mas logo depois, e na sequência do admirável Memorial do Convento, Saramago escreve e publica, entre outros que agora não menciono, O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), A Jangada de Pedra (1986) e História do Cerco de Lisboa (1989).

Isto significa que Memorial do Convento não era um caso isolado, no que à inscrição da História na ficção diz respeito. E significa também que a tematização da História desencadeava inevitavelmente um jogo de variações e de modulações temáticas. A reflexão sobre Portugal e o seu destino (mau destino, para Saramago) de integração europeia, a problematização de mitos portugueses (o de Fernando Pessoa, por exemplo) em articulação com um tempo histórico tão bem identificado como o dos inícios do salazarismo, a revisão crítica e provocatória do cristianismo, a reflexão em clave ficcional sobre as origens históricas e políticas de Portugal, de novo em incipiente "diálogo" com a Europa, são alguns dos grandes temas que a ficção saramaguiana nos legou.

Depois desta, que é a década mais fecunda da escrita literária de Saramago, abre-se um tempo de tematização de sentidos, de valores e de temas com um alcance universal. É então sobretudo que o registo da alegoria entra decididamente na escrita literária de Saramago; e é por isso que romances como Ensaio sobre a Cegueira ou Todos os Nomes são e serão lidos como grandes romances da literatura universal.

Diz-se que José Saramago era um escritor polémico. É verdade. São polémicos os escritores que, com desassombro e com arrojada visão do futuro, interpelam os homens e os poderes do seu tempo. E é justamente quando o fazem, em conjugação com o impulso inovador que às suas obras incutem, que dizemos deles que são grandes escritores. Saramago foi e será um grande escritor."

Hélia Correia, escritora

"Diz a lenda o que a história não confirma: que, no tempo em que Sófocles morreu, a Atenas que tanto o venerou e que tão venerada foi por ele se encontrava cercada pelos espartanos. A aldeia natal do dramaturgo encontrava-se então fora de portas, inacessível aos atenienses. O deus do teatro apareceu então nos sonhos de Lisandro, o general das tropas sitiantes. Ordenava que abrissem alas para dar passagem ao cortejo funerário. Lisandro obedeceu sem hesitar . Todos, atenienses e espartanos, se inclinaram com vénia e com lamento, ante o corpo do grande criador. Não consigo fazer elogios fúnebres. Digo "não" ao louvor de circunstância. Palavras e palavras vão cair com um grande barulho neste dia e todas elas ficarão aquém da grandeza deste homem. Que houve entre nós um luminoso afecto é coisa que me diz respeito a mim e sobre a qual não tenho que escrever. Que tenho um pensamento de triunfo é o que eu gostaria de explicar. Porque há aqui triunfo: a plenitude de um cidadão inteiramente dedicado à sua polis e aos seus contemporâneos. E a plenitude de um "poeta", daquele que faz obra e é por ela tornado glorioso. É o homem na sua existência absoluta. O homem que, sabendo-se mortal e não acreditando num Além, se empenha soberbamente em viver e criar com um fulgor e com uma coragem que os crentes desconhecem ou receiam.


Para além do meu preito pessoal, que não se há-de resumir a depoimento, eu imagino aqui uma cidade que o leva em ombros - e os inimigos a abrirem caminho e a curvarem-se. Se os gregos inventaram esta lenda, é para que a memória a active quando um homem como Saramago nos deixa."

Miguel Ángel Bastenier, jornalista

"Não sei se entre Portugal e Espanha há algum convénio de dupla nacionalidade, como o Estado espanhol mantém com muitos países latino-americanos. Penso que não, provavelmente devido aos receios que uma parte da opinião pública portuguesa sempre abrigou acerca dos supostos desígnios imperialistas de Madrid. Mas isso seria quase redundante, pois não há duas nações - e atrevo-me a dizer nações, apesar da Catalunha e do País Basco - que estejam mais próximas, que tenham mais a ver uma com a outra nem que sejam mais indistinguíveis do que Portugal e Espanha. O hispânico é mais lusitano e o lusitano é mais hispânico do que muitos nacionais da América Latina que fala espanhol. E, de todos os homens públicos dos dois países, ninguém simboliza melhor do que José Saramago essa nacionalidade "portunhola", esse encontro nas margens do Douro-Duero, esse sonho nem sempre bem compreendido de Filipe II de olhar a Península Ibérica como um todo, ou de Oliveira Martins, ao proclamar sem rodeios a Hispânia de todos, subprefeitura das Gálias, Império Romano, que teve num personagem lendário, num "pastor lusitano", como se dizia nos meus livros de História do liceu, um primeiro mito de toda a península - obviamente, Viriato.


O Nobel português disse há uns meses que Portugal acabaria por ser absorvido pela Espanha, o que provocou alguma comoção no nosso irmão atlântico, ainda que se possa entender que essa fusão apenas poderia ter sentido no quadro da integração europeia. Em Espanha a notícia foi recebida com humor, como uma boutade intelectual, ainda que, no fundo, talvez muitos espanhóis possam ter achado que Portugal compreendia finalmente o seu "destino".

Saramago, tão "portunhol" - língua que falava na perfeição e que provavelmente preferia ao espanhol assepticamente académico -, olhava para lá de Lisboa e de Madrid, mas isso não significava - apesar de ter empregado a expressão "absorção", talvez como concessão à castelhanidade de base dos seus leitores espanhóis - que ignorasse as diferenças entre os dois países.

Lembro-me de um artigo que lhe pedi nos anos 90 para um suplemento internacional publicado por mais de vinte jornais - entre eles o PÚBLICO e o El País - no qual explicava como a dureza castelhana na ortografia e orografia da palavra "Tajo", que cortava como aço toledano, se pronunciava em português com a suavidade do "J" arrastado, que não corta mas, pelo contrário, aconchega. Essas eram as diferenças que o autor resolvia na "portunhalidade".

Quase rematando o ano, José Saramago fez-se ao mar naquela formidável jangada da pedra na qual resumia o seu ideário: Portugal e Espanha são uma mesma realidade diversa, têm uma entidade e identidade ibérica intensamente comum. Por isso Saramago agrada tanto na Espanha castelhana, por isso, quando lhe pedi o artigo do Tejo, a sua colaboração apareceu como pertencendo ao contingente "espanhol" entre as contribuições dos diferentes jornais para esse suplemento mundial. E, por isso, não tenho a mínima dúvida de que Saramago e eu somos da mesma nacionalidade. Seja ela qual for."

Juan Cruz, jornalista do "El País" e antigo editor de Saramago

"Nas últimas semanas, José Saramago mal falava, mas ria, continuava a rir. Pilar del Rio, a sua mulher, com quem conviveu mais de 20 anos, continuava a preparar-lhe jantares e pequenos-almoços, e embora a comida parecesse ser de outro mundo ou de outras necessidades, ele estava em todos os ritos que ela preparava para que continuasse ligado ao fio da sobrevivência.


Estava e não estava, mas ria. Ontem [quinta-feira] amanheceu melhor, como se ressurgisse, e conversou com Pilar, com o médico, como se se despedisse da vida e das pessoas que o acompanharam até ao fim. Às vezes - aconteceu quando estivemos pela última vez com eles, há uma semana, na sua casa de Tías, Lanzarote - só ouvia música, que Pilar escolhia com o cuidado com que tratou até ao último detalhe (e até ao fim) da felicidade do marido [...].

Lanzarote deu-lhe muita felicidade, desde que Pilar ali o levou pela primeira vez em 1993, um ano depois de ali morrer um herói cujo esteiro ele prolongou, César Manrique, outro Quixote, neste caso insular, que tinha abraçado causas que sempre foram familiares a Saramago: o respeito aos homens e à terra, a luta contra a injustiça dos homens contra os homens. De forma intermitente, viveu em Lanzarote (onde se curou de um desengano, o do seu país, que o impediu de concorrer a um prémio internacional com o seu Evangelho segundo Jesus Cristo) e continuou a viver em Lisboa, que guardava o mais central do seu coração: o amor aos outros e o amor aos seus antepassados. O seu avô, analfabeto, ensinou-lhe a amar os homens e a terra, e a ele dedicou num discurso memorável o prémio Nobel [...].

Esse carácter português e quixotesco levou-o à garupa de todas as causas civis do seu tempo: comunista convicto, jornalista contra a ditadura e a favor da mudança dos cravos em Portugal, foi em todos os países que visitou (do Brasil ao México, de Espanha a Israel ou Palestina) um firme defensor dos direitos humanos, contra as guerras (a do Iraque nos últimos anos), contra o esmagamento (de Israel sobre a Palestina), a favor de aquelas pessoas (como Baltasar Garzón) assediadas por defenderem o que ele mesmo defendeu, a memória civil dos perdedores.

Sempre com essa filosofia espartana com que comparecia aos actos, nas apresentações e nos múltiplos aeroportos que frequentou, como se a honra e a glória fossem penugem no casaco. Foi uma hospedeira de Frankfurt que o informou de que ganhara o Nobel, quando já abandonava a Feira do Livro, uma quinta-feira de Outubro de 1998. Então sentiu-se só, "à minha volta não havia nada, ninguém, nada, ninguém, nada", e começou a caminhar sem rumo até encontrar a sua editora Isabel de Polanco a quem comunicou a notícia. Esse abraço, que durante anos foi marca da relação que mantiveram, adquire hoje o aroma triste da melancolia, porque os dois protagonistas deste bonito episódio simples morreram.

Há uma semana, Pilar del Rio disse-me a mim e a Francisco Cuadrado, o seu editor de Santillana, que uma dessas manhãs o seu marido se levantara com vontade de escrever outra vez, de retomar o fio de uma das suas histórias em que estava enfrascado quando a gravidade do seu estado fez com que perdera a voz mas não o riso. Pilar aconselhou-o a esperar, e ela mesmo esperava que o milagre de dois anos antes amanhecesse outra vez no cenário discreto da vida de Saramago, que o autor das Intermitências da Morte voltasse outra vez a ocupar o seu sítio preferido da casa, a biblioteca da Fundação, sob os cristais da luz que também foi o ar de Manrique. Mas já só o animavam as piadas de Pilar, a persistência dela em continuar os hábitos da vida diária, o pão com azeite, as verduras, o arroz, o bacalhau português, os peixes, a carne, a vida viva que Saramago sempre quis.

Já havia pouco para dizer, depois de ter dito tanto, depois de tanto sonho e de tanta escrita. Fomos vê-lo onde esperava as imagens da televisão e, sem dúvida, o sonho que já pouco se interrompia. Então dissemos-lhe adeus, até amanhã, e ele disse, acariciando com as suas mãos já transparentes, grandes mas simples: Até amanhã".

Mia Couto, escritor

"O primeiro sentimento que tenho é a generosidade para com os autores, que se manifestou com os escritores de língua portuguesa. Antes de ganhar o Nobel, tinha a generosidade de promover e trazer para a visibilidade os escritores e a escrita dos africanos de língua portuguesa. Não foi só comigo, mas ele ofereceu-se para fazer o lançamento e apresentou o meu primeiro livro de contos, Cada Homem É Uma Raça, lançado aqui em 1989. Já doente, saiu da cama para apresentar Venenos de Deus, Remédios do Diabo. Há uma entrega aos outros, uma dedicação a uma causa, que não era só política, mas a causa dos que estavam longe e dos que não tinham voz. Isso marcou-me muito: a dimensão humana dele."


Luiz Schwarcz, editor brasileiro de Saramago

"Acabo de ver o escritor José Saramago morto. Quando a notícia apareceu na Internet, liguei pelo Skype para Pilar, que sem que eu pedisse me mostrou José deitado na cama, morto. Tenho falado com Pilar quase todos os dias. Sabia que não havia chance de recuperação.


Posso dizer que José Saramago era um grande amigo. Quando vinha ao Brasil, hospedava-se em minha casa, no quarto que foi da Júlia, minha filha. Ele detestava hotéis. Viu meus filhos crescerem. Fui conhecer sua casa em Lanzarote logo que se mudou com Pilar, abandonando Portugal. Assisti emocionado à cerimónia do Nobel em Estocolmo - pouco antes, no hotel, aprovámos, Lili e eu, o vestido de Pilar para o evento. Estava em Frankfurt quando ele recebeu a notícia do prémio; celebrámos juntos.

A obra de Saramago veio para a Companhia das Letras por acaso. No fim da Feira de Frankfurt de 1987, ao despedir-me de Ray-Gude Mertin, amiga pessoal e agente literária, comentei que era dos meus autores favoritos. Conversa de fim de feira. Não fazia ideia de que ela representava o escritor português, junto com a editora Caminho, e que estava para mudar Saramago de editora no Brasil. Atrasei minha partida e voltei, com a bagagem no porta-malas do táxi, para falar com Zeferino Coelho sobre a Companhia das Letras.

Foi tudo muito rápido, Jangada de Pedra foi o primeiro livro, lançado em Abril de 1988. A empatia foi imediata.

Em seguida fui a Lisboa. Já éramos bem amigos, ele queria mostrar-me o novo livro que escrevia. Em sua casa, na Rua dos Ferreiros à Estrela, José leu trechos de A História do Cerco de Lisboa, e levou-me para jantar no seu restaurante favorito, o Farta Brutos. Pilar foi minha guia de Lisboa. Comprei com Pilar o primeiro computador de José. Antes disso, ele datilografava três vezes cada livro para entregá-lo completamente limpo a seus editores.

No Brasil, o lançamento de Jangada de Pedra foi uma festa interminável. Filas enormes na livraria Timbre e a efusão de beijos e abraços no escritor fizeram-no exclamar: "Luiz, esta gente quer-me matar de amor." Daí para frente, esse amor dos brasileiros por José Saramago só cresceu, suas visitas se tornaram mais frequentes. A mais recente foi aquando da publicação de A Viagem do Elefante. Ele já estava muito fraco. Ao chegar a minha casa, disse-me que não escreveria mais.

Depois do evento de lançamento, vencida uma fila enorme de autógrafos, fomos ao Rio, para a continuidade dos eventos. Ao pousarmos na cidade, José anunciou para mim, Lili e Pilar, que no voo achara a solução que faltava para Caim, que acabou por ser o seu último livro.

Com as melhores lembranças, o amor, e minha saudade. Maldita palavra, tão portuguesa, que agora ficará associada ao meu amigo. Mas saudade não tem remédio, não é, José?"

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