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Sigmar Polke: O último alquimista da arte

Foto
Polke com um dos seus trabalhos Fredrik Von Eichsen/AFP

A morte de Sigmar Polke - o pintor de 69 anos morreu na sexta-feira, em Colónia, com um cancro - marca o desaparecimento de um dos derradeiros, senão mesmo o último, alquimistas da arte. Desde cedo que o artista procurou as regiões mais recônditas da pintura e da fotografia, a que se podem acrescentar as edições de múltiplos, para nos indicar o misterioso caminho da actividade criativa, um percurso sem respostas, sem certezas, mas pleno de acontecimentos mágicos.

Polke é um moderno com um desarmante sentido de humor, que prolongou as vias do romantismo e do simbolismo até ao século XXI, podendo mesmo ser considerado como um herdeiro de Hermes Trimegisto, de Albrech Dürer e de Francisco José de Goya y Lucientes - o encontro, em 1982, com uma reprodução de Las Viejas (ou El Tiempo), obra realizada pelo artista espanhol em 1812, terá, segundo a historiadora Gloria Moure, afectado desde então a totalidade do trabalho do pintor alemão.

A autora espanhola considera também que este confronto com a pintura de Goya apenas serviu para reforçar algumas das premissas que se podem detectar na obra anterior de Polke, um "fermento" constituído pelos elementos "iconográfico, luz, anamórfico, metamórfico e cromo-químico" - este último apontando para regiões habitadas pela toxicidade, territórios a que se acede através de estados alterados da consciência, aos quais não são alheios o consumo de drogas, do ópio à marijuana. Há também, por vezes, um risco de vida, porque, nessa vontade de abrir outros territórios à pintura, o artista aproximou-se de materiais corrosivos, venenosos, como o arsénico, o telúrio (soprado directamente para um suporte em resina artificial), o níquel ou o nitrato de prata.

The Spirits that Lend Strength are Invisible

, uma série de cinco pinturas de 1988 realizada especificamente para uma exposição no Carnegie International, em Pittsburgh, nos Estados Unidos, constitui um dos exemplos relacionados com essa vontade de transformar a pintura num acontecimento alquímico, sendo o espaço do atelier o laboratório onde se procede à secreta decantação dos materiais. O título deste conjunto de trabalhos provém de um ditado índio americano, tendo o pintor decidido utilizar, na composição das obras, elementos relacionados com esse território - para além do telúrio, do níquel e do nitrato de prata, podem encontrar-se nestas criações partículas de meteoritos e ferramentas neolíticas -, criando assim uma abstracção que define um mundo em combustão química. As imagens obtidas podem também ser lidas enquanto visões do espírito.

"Estamos numa estranhamente vazia, mas contudo mágica, paisagem, na qual o pó de meteoros e obscuros elementos químicos é movido por silenciosos, invisíveis ventos", defende John Caldwell, responsável por uma das mais significativas retrospectivas do artista, organizada pelo San Francisco Museum of Modern Art (SFMOMA), nos Estados Unidos, em 1990 - o artista alemão influenciou decisivamente toda uma geração de artistas norte-americanos, nomeadamente a partir dos anos 1980.

Para o curador, as pinturas realizadas por Polke em meados da década de 60 do século passado atingem a nossa consciência directamente, "como uma pequena bala disparada por uma pistola silenciada". E acrescenta: "A este respeito, o trabalho de Polke - mais do que o dos artistas pop americanos desses anos - marca a ruptura total com o expressionismo abstracto que o precedeu e reflecte com mais clareza a sua relação com a vida tal como realmente a experimentamos."

Dimensão política

Em 1963, Polke, ainda estudante da Staatliche Kunstakademie de Düsseldorf, organizou, com os seus colegas Gerhard Richter e Konrad Lueg, a exposição Realismo capitalista, na qual estes nomes se posicionavam ironicamente perante as tendências estéticas de ambos os lados do Muro de Berlim - o totalitário realismo socialista e a arte pop, relacionada com a apropriação de imagens produzidas pela sociedade de consumo alemã do pós-Segunda Guerra Mundial. Na opinião do crítico Robert Hughes, este estilo artístico, no caso de Polke, fez mais do que traduzir a grafia das imagens publicitárias em formas pintadas, "era acerca dos objectos de desejo, vistos à distância". A dimensão política das obras dessa época - representações de bolos, meias, tabletes de chocolate, objectos de plástico e salsichas - tem sido associada às circunstâncias históricas de uma época na qual o Muro de Berlim marcava a divisão entre o Ocidente e o Leste da Europa, uma separação que tinha também como consequência a escassez de "produtos capitalistas" na parte oriental da cidade.

Nascido a 13 de Fevereiro de 1941, na Silésia (hoje território polaco, então Alemanha), Polke fugiu para Berlim ocidental aos 12 anos, escondido numa carruagem com a família, tendo depois ido viver para Düsseldorf, onde inicia a sua aprendizagem artística enquanto pintor de vitrais. Entre 1961 e 1967 estuda na academia de arte da cidade sob a orientação de Karl Otto Götz e de Gerhard Hoehme, tendo igualmente sido influenciado por Joseph Beuys, com quem, segundo Hughes, aprendeu duas coisas importantes: "a ideia do artista enquanto palhaço, xamã e alquimista" e "uma relutância saudável em crer no valor final das categorias de estilo". Foi essa relutância, escreve o crítico, que ditou "as suas paródias iniciais dos modos sagrados do modernismo".

De Goya à BD

A negação de um estilo atravessa toda a obra de Polke, artista que se manteve distante da esfera pública, deixando assim o protagonismo para o seu trabalho. Entre as suas exposições recentes podem destacar-se a retrospectiva austríaca no MUMOK de Viena (2007), exposição que tinha como singularidade o facto de ter sido exclusivamente composta por trabalhos provenientes de três colecções particulares (as dos alemães Frieder Burda, Josef Froehlich e Reiner Speck), e Works & Days, na Kunsthaus de Zurique, Suíça, em 2005, centrada nas obras de temática alquímica, entre as quais o conjunto de quatro pinturas Hermes Trimegistos, de 1995.

Dois dos momentos significativos da sua biografia foram a atribuição do prémio de pintura na XIII Bienal de São Paulo, em 1975, e o Leão de Ouro, na XLII Bienal de Veneza, em 1986, ano em que Polke ocupou o Pavilhão da Alemanha, com uma intervenção a que chamou Athanor, nome dado ao forno usado no processo alquímico, desenhado de forma a manter uma temperatura constante. Refira-se ainda a importância dada à sua obra na Circa 1968, a exposição inaugural do Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, na qual foi possível ver, entre outros trabalhos, a surpreendente escultura Objekt Kartoffelhaus, de 1967, feita de madeira e batatas.

Serralves tem na sua colecção várias obras do artista: desenhos, fotografias e uma pintura Sem Título datada de 1978. Em Lisboa, Polke está representado na Colecção Berardo (Centro Cultural de Belém) com duas obras: Bildnis Helmut Klinker, de 1965, actualmente em exposição no novo percurso da exposição (Tudo o que é sólido dissolve-se no ar: o social na Colecção Berardo), e Elena"s Schuhe, realizada em 1986-88.

Muitos outros temas podem ser descobertos na pintura do artista alemão, como a literatura fantástica - a pintura Alice no País das Maravilhas, de 1971 -, o nazismo - Lager, de 1982 - ou a revolução francesa - Liberté, Egalité, Fraternité (1988). O uso de transparências, do dripping e do efeito pontilhista é também recorrente numa das obras mais heterodoxas dos últimos 50 anos, que nunca deixou de se questionar a si própria, olhando sempre para as possibilidades oferecidas pelo mundo - de Goya à banda desenhada, da publicidade à química, da arte pop à gravura oitocentista -, olhando sempre para outros territórios em permanente transmutação.

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