O demónio não é ateu

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A fé verdadeira é o acolhimento humilde de Deus na nossa finitude e dos outros como dons da sua graça

1. Já tinha sido atribuído a Fabrice Hadjadj, em 2005, o Grand Prix Catholique da literatura pelo ensaio sobre a morte como antimétodo para viver (1). Este ano, as livrarias religiosas de França atribuí-ram-lhe um novo prémio por uma obra, muito original, sobre a fé e as astúcias dos demónios (2).

Mas quem é, afinal, Fabrice Hadjadj, ignorado das nossas livrarias e editoras religiosas? É um judeu francês, de nome árabe e católico fervoroso. Nasceu em 1971, converteu-se aos 23 anos e foi baptizado na Abadia beneditina de Solesmes, aos 26 anos. É casado, pai de cinco filhas, dramaturgo, ensaísta, professor de Literatura e de Filosofia.

Não gosta de falar da sua conversão - é um processo per- manente -, mas não esconde o seu começo paradoxal: "Foi através de Maria que encontrei Cristo, não como uma ideia, mas como uma pessoa bem viva. Tinha-me es- tado a rir, na igreja de Saint-Séverin - a culpa é de Voltaire! - dos ex-votos que rodeavam uma imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro: sucesso nos exames; obrigado pela carta de condução, etc. Uma semana depois, meu pai ficou gravemente doente. Estávamos todos aflitos. Corri, então, para Saint-Séverin e rezei a essa Virgem de quem me tinha rido na véspera. Entrou em mim uma estranha paz. Nada de espectacular. Pelo contrário, sentia-me no meu lugar: uma criança que confessa a sua fraqueza e que reza pelos seus pais, algo bem mais radical do que matar o pai. A essência do ser humano é isto mesmo: a posição vertical ferida."

Observaram-lhe, numa entrevista, que nada fazia prever este desenlace: "Tu nasceste numa família de confissão judaica e vens de um meio marxista. - Também eras anticristão?" Eis a resposta: "Como judeu, como esquerdista, como discípulo de Nietzsche, eu era tripla, feroz e violentamente anticristão. A palavra Deus provocava-me urticária. Era um tapa-buracos, uma maneira de alguém se esquivar aos problemas. Hoje, para mim, é uma palavra que abre o abismo, um modo de mergulhar no mistério. Esta conversão foi também uma conversão do meu vocabulário: as mesmas palavras que me pareciam antes mentirosas ou vazias, de repente, tornavam-se cheias de sentido. Um pouco como quando as escamas caíram dos olhos de Saulo."

Não quer entrar em pormenores. Receia cair no romanesco e dar a impressão de que a conversão é um coroamento, quando, de facto, é um ponto de partida. Deus converte-nos todos os dias com a criação inteira. Tudo, a luz do dia, o perfume das rosas, o rosto das pessoas, mas também os dramas da existência, muito especialmente a Cruz, tudo existe para nos voltar cada vez mais para Ele. "Sim, é verdade que, num dia de Páscoa, aos 26 anos, fui baptizado na Abadia de Solesmes."

2.O que esta conversão mudou na vida de Fabrice Hadjadj? "Não mudou nada na minha vida e, simultaneamente, mudou tudo. Continuo a ser eu próprio, com o coração à esquerda e uma forte miopia... Sempre quis ser escritor, mas só depois aconteceu, como se todas as coisas me aparecessem sob uma outra luz e com outra profundidade. O que, para alguns, poderá parecer paradoxal é que, a partir desta luz, reencontrei uma confiança especial na razão e na carne (3). Antes, estava perto de abandonar a filosofia e não queria ter filhos. Agora, acredito no trabalho da razão e esperamos, com a minha mulher, a nossa quinta filha. Acreditar no Criador não é fugir, mas reencontrar a criação inteira na sua fonte, no seu brotar. O caminho do céu é a terra."

A conversão é uma graça: "O que me leva a escrever não é o zelo do convertido, mas sobretudo a alegria da inteligência e da poesia quando se aproximam do mistério e, mais precisamente, do mistério da Incarnação."

3.Numa época em que se diz que o diabo não existe, como se atreve a consagrar-lhe uma obra? "Não consagro nada ao diabo. Acolho o Eterno, que tem a vantagem de ser sempre mais antigo e sempre mais novo. Se falo dos demónios, sigo a iniciativa dos Evangelhos, que não estão interessados em dizer que o diabo existe. Procuram fazer abortar as suas tentações e astúcias, que se apresentam sempre sob a figura do bem. Não basta a fé. Uma certa fé também os diabos a têm. A Carta de São Tiago adverte-nos: Crês que há um só Deus? Óptimo. Os demónios também crêem e tremem. Jesus, ao entrar na sinagoga de Cafarnaum, depara com uma profissão de fé do demónio: Sei quem tu és, o Santo de Deus (Mc 1, 24). Jesus recusa as tentações diabólicas de um messianismo espectacular, baseado no êxito económico, político e religioso." Esta recusa ficará, para sempre, como uma lição de vida para cada cristão e para a Igreja. É na fraqueza que se manifesta a força da graça divina. O diabo acredita num Deus de poder, não suporta a incarnação de um Deus de misericórdia.

Quando Fabrice Hadjadj descobriu a "fé dos demónios", concluiu que, apesar de tudo, "o ateísmo e a libertinagem não eram o pior dos males. O demónio não é ateu nem carnal. Uma fé demoníaca é uma fé desincarnada, abstracta, sem amor nem compaixão. Em nome de caridades imaginárias, esquecemo-nos de amar o próximo que está à nossa porta ou, até, na nossa própria cama"... A fé verdadeira é o acolhimento humilde de Deus na nossa finitude e dos outros como dons da sua graça.

1) Réussir sa mort. Anti-méthode pour vivre, Press de la Renaissance, Paris, 2005.

2) La foi des démons ou l"athéisme dépassé, Salvator, Paris, 2009.

3) La profondeur des sexes: Pour une mystique de la chair, Seuil, Paris, 2008.

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