DUROS é um bom nome para nós

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Goreti Alves, 22 anos pedro cunha

Tiveram cancro antes de saberem o que a palavra significava. Foi há muito tempo, mas todos os anos voltam, adultos, ao sítio onde foram crianças pálidas e sem cabelo. Vão à consulta dos Doentes que Ultrapassaram a Realidade Oncológica com Sucesso.

Saber datas é coisa de adultos. O André de 13 anos só se lembra que adoeceu quando acabaram as aulas, à entrada das férias do Verão, era ele "um rapaz normal" que se preparava para ir para a praia com os amigos e ter mais tempo para jogar futebol e andar de bicicleta.

Saber nomes de doenças como "cancro" e de tratamentos chamados "quimioterapia" e "radioterapia" também é coisa de adultos. À Goreti, de oito anos, só lhe contaram que o seu corpo era como "uma fábrica que não estava a funcionar bem" e que havia lá dentro uns bonecos a discutir uns com os outros, que ela imaginava terem olhos e bocas. E lembra-se das cores dos remédios, havia "uma saqueta amarela, outra vermelha e outra laranja" e de haver no hospital uma senhora vestida de branco com o cabelo negro, uma enfermeira, que para ela era "como uma bruxa" porque lhe fazia doer.

Ter cancro "em criança não é tão real", diz Goreti Alves, hoje com 22 anos, "a criança não se apercebe do que se passa à sua volta". "Tinha sofrido mais se fosse hoje, na altura era menino", completa André Silva, com a mesma idade. Não se sofreu tanto porque não se tinha capacidades para perceber tudo o que estava em causa e porque os pais trataram de dar da história da doença uma versão adaptada à idade dos filhos, poupando-lhes o sofrimento de saberem de mais, tanto quanto possível. A Acreditar, Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro, até publicou, com esse fim, uns livrinhos com personagens para ajudar os pais a comporem as suas histórias, como o Gaspar-Químio e o Rui Rádio, dois coloridos bonecos que ajudam "na luta contra as células más".

Nunca ouvir a palavra "cancro"

Aos oito anos, quando foi diagnosticada com leucemia, a mãe de Goreti Alves explicou-lhe: "Tinha uma doença como outra qualquer, como uma constipação, que tinha de me tratar e que ia conseguir." As versões variaram de ex-menino para ex-menino mas nenhum deles ouviu de pais ou profissionais de saúde a palavra "cancro".

"Nunca me falaram de "cancro", era um linfoma", conta Margarida Valente, de 23 anos, um nome que na altura tinha pouco significado. Só bastante mais tarde a ouviram e lhe perceberam a carga. "Agora já compreendo mais as coisas. Só mais tarde é que percebi que era grave", recorda André.

Esses tempos infantis passaram e André, Goreti, Margarida e Élio, que estão hoje na casa dos 20 anos, sabem que correram risco de vida como nunca. Os nomes das doenças que aprenderam como sendo as suas - as neoplasias mais frequentes entre os mais pequenos são as leucemias (tumores do sangue com origem na medula óssea), caso de André, Goreti e Élio, os linfomas (tumores do sistema linfático), como foi o caso de Margarida, e os tumores do sistema nervoso central (por exemplo, os cerebrais) - só em adultos se tornaram cancro.

Élio Ribeiro, de 23 anos, ouviu a palavra "cancro" aplicada ao seu caso em conversa com um primo. Até teve de perguntar à mãe se era mesmo verdade, se o que ele tinha tido aos dez anos e depois de novo aos 14 era mesmo cancro, ela respondeu-lhe que sim, mas já tinha passado algum tempo. Para Margarida Valente, que tem 23 anos e teve linfoma de Hodgkin aos 14 anos, esse conhecimento ganhou pormenor científico. Não tem dúvida de que foi a sua doença que a empurraram para o curso de Medicina. E lembra-se de no quarto ano, na cadeira de Hematologia, dar a classificação dos linfomas e respectivos prognósticos. Ela que até ali tinha evitado investigar a sua doença, para se proteger, foi na altura repescar os seus exames médicos e a sensação foi "bolas, do que eu me safei".

Os quatro jovens fazem parte de uma grande maioria de ex-crianças que ultrapassaram o cancro pediátrico (entre os zero e os 14 anos) e que, ano a ano, vai engrossando uma consulta criada especialmente no Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa, em 2007, para os seguir. A sugestão partiu de um pai e o nome ficou, é a consulta dos DUROS (Doentes que Ultrapassaram a Realidade Oncológica com Sucesso) e o logótipo imita as letras do Super-Homem.

Eles gostam do nome, acham-no merecido. "DUROS é um bom nome para nós. Tem lógica", sorri André Silva. "Sofremos muito. Passado este tempo sobrevivemos: à quimioterapia, aos vómitos, ao não conseguir comer, ao andar de máscara, a injecções na espinha com agulhas deste tamanho [mostra o comprimento com as mãos], ao engordar e ficar com 100 quilos por causa da cortisona. É engraçado o nome." Já Margarida detesta que a chamem "sobrevivente" porque acha que só foi mesmo isso que fez, sobreviver, e isso não dá direito a título. "Só peguei no que tinha e fiz o que pude".

?Taxa de cura a crescer

As taxas cada vez maiores de cura e sobrevida fazem com que as crianças que tiveram cancro tenham cada vez mais probabilidade de chegar a adultos, fazendo com que haja preocupação crescente com a saúde dos sobreviventes de cancro infantil, "uma tendência dos últimos dez a 15 anos", recorda Ximo Duarte, médico espanhol que é um dos dois clínicos que dão a consulta. Hoje em dia, são 400 os DUROS registados, mas a boa notícia é que vão sendo cada vez mais.

As crianças sobrevivem mais ao cancro do que os adultos, por características dos próprios tumores, mais sensíveis aos tratamentos do que os dos adultos, e, contrariamente ao que seria de esperar, porque os mais novos têm uma maior resistência e tolerância a tratamentos como a quimioterapia, explica o médico.

Existe uma enorme variedade em termos de taxas de sobrevivência, dependendo do tipo de tumor, mas em média cerca de 70 por cento das crianças sobrevivem, um número que tem vindo a subir graças à melhoria do diagnóstico e tratamentos. Nos adultos andará em torno dos 50 por cento.

Para serem seguidos nos DUROS - uma consulta anual -, têm de ter passado cinco anos desde o final do tratamento. Mas, antes de esse período passar, ainda estiveram numa contagem decrescente variável que os fez regressar ao hospital para exames e análises, primeiro, de mês a mês, depois cada vez mais espaçadamente: de dois em dois e de seis em seis, até um alívio crescente. Mas o processo não termina quando se pensaria: "Não é no final do tratamento que a vida volta ao normal, é quando os pais respiram de alívio", explica Margarida Valente.

Passaram-se demasiados anos centrados na doença para as coisas voltarem ao que eram logo a seguir. Os tratamentos podem ultrapassar os dois anos. André lembra-se de, apesar de se sentir recuperado, não poder retomar as brincadeiras, de já cá fora o manterem como que numa redoma, do continuar a não poder andar de bicicleta "porque podia cair e esfolar-me" - hoje chega a todo o lado montado numa moto vestindo um blusão preto -, de "não poder ir à praia porque os grãos podem estar infectados com micróbios. Não podia fazer nada". A lista de restrições era grande e parecia o prolongamento de um tempo em que ninguém os podia visitar sem máscara, onde passaram dias no isolamento a ver as pessoas através de um vidro.

Algumas limitações justificavam-se, outras não. É difícil gerir este "depois" das doenças com normalidade e são muitas as situações em que os médicos autorizam certas actividades aos miúdos e os pais não deixam, porque o medo da recaída paira ainda. "Os pais superprotegem os filhos. É inevitável que isso aconteça. Há uma crise de vida para a criança e a família e eles sentem que, se não conseguiram protegê-los contra aquela adversidade, podem fazê-lo com outras", explica a psicóloga do IPO de Lisboa , Maria de Jesus Moura, que dá apoio à consulta dos DUROS. "Às vezes passaram três anos, o pediatra diz que a criança pode jogar à bola e os pais dizem que não", o que pode limitar-lhes o processo de "exploração do mundo".

Pais têm mais memória

O papel e influência dos pais são de tal forma importantes que mesmo como adultos as suas histórias de doença não são bem apenas suas, são uma mistura entre memórias pessoais e das dos progenitores que os acompanharam, sobretudo a mãe, que continua a ser a principal cuidadora. "A minha mãe é que sabe explicar melhor do que eu", responde Goreti, que fala de um processo que ela pensa que se arrastou durante três anos, a mãe corrige para dizer que foram cinco anos. "Os pais têm mais memórias do que os filhos", completa a psicóloga, ainda mais em casos em que o diagnóstico remonta aos primeiros anos de vida. Desse tempo, alguns retêm a quimioterapia, sem esse nome, o tempo de isolamento, outros a visita dos palhaços da operação nariz vermelho. São retalhos de recordações. O que fica de mais importante não são, muitas vezes, os tratamentos em si nem a forma "como aquela vivência de perigo de vida foi vivida pelo doente, mas sim pela sua família".

É assim que, quando se fala de consequências do cancro pediátrico nas suas vidas, as sequelas mais frequentes não são as físicas mas as psico-sociais e, nesta categoria, surge à cabeça uma superprotecção dos pais, que é normal, até certo ponto, mas que pode, e muitas vezes tem, consequências ao nível da sua autonomia e independência, explica a psicóloga. E pode redundar, em casos menos frequentes, "nalguma vitimização" - miúdos a quem se desculpa de tudo um pouco, como os maus resultados escolares, com a atitude do "coitadinho, esteve doente".

O que quer dizer que não são propriamente memórias traumáticas dos tratamentos que mais os marcam, mas toda a envolvência. Os irmãos mais velhos podem contribuir para esta dinâmica de protecção da criança que um dia foi muito doente e esteve em risco de vida, alguns é como se "virassem pais", já os mais novos, por vezes, ressentem-se da ausência de cuidados, continua a psicóloga.

Élio pratica boxe

Élio Ribeiro, de 23 anos, diz que ainda hoje, se não tem fome, a mãe "começa a chatear". "Diz que tenho de me alimentar, para não voltar a acontecer." Serão normais os sermões dos pais para ter cuidado nas saídas à noite, mas ele sente que foi "mais protegido pelos pais, que tinham mais cuidados para não sair à noite, não chegar tarde, não beber". Talvez seja para contrariar isso que hoje pratica boxe amador. "Os meus pais não gostam que ande dentro do ringue aos socos, por ser violento e porque estive doente no passado", diz com uma espécie de orgulho à mistura. Hoje, veio de Olhão, onde vive com os pais, a Setúbal para fazer exames e tentar entrar no curso de Fisioterapia na cidade, embora preferisse ficar a estudar perto de casa.

De tão protegida na doença, Goreti voltou à escola depois dos tratamentos sem ter desenvolvidos os mecanismos de defesa em relação aos outros miúdos, admite. "Não tive uma infância normal, a minha realidade era o hospital. Não sabia coisas da vida, não sabia como me defender. A minha mãe resolvia os problemas por mim." Quando em apuros lembra-se de, nos primeiros tempos, pôr-se a um cantinho e esperar pela mãe.

Só que os problemas que enfrentou quando chegou à escola não podia ser a mãe a resolvê-los: o sentimento de diferença, de regressar sem cabelo, sempre de chapéu na cabeça, mais gorda por causa dos tratamentos. Sofreu na pele o que hoje já ganhou nome e anda nas bocas do mundo, "o que agora se chama bullying. Sempre fui muito posta de parte nas turmas". A sua solução foi encontrar nas turmas por onde foi passando "lugar com os mais feiinhos, os mais fraquinhos, como há em todas as turmas". Foi uma estratégia que mudou até um dia em que reagiu, no 10.º ano, "senti mais força em mim. A partir daí não quis ser mais gozada, decidi".

A mãe de Goreti, Helena Alves, foi alertada por amigos psicólogos que lhe diziam "para nunca tratar a minha filha de forma diferente" e acha que conseguiu, "sempre lhe disse "tu és igual, exactamente igual às outras crianças. Sempre fui muito exigente"" e hoje é ela quem diz que admira a filha: "É determinada, tem um espírito de luta excepcional. Estuda, trabalha, faz voluntariado."

Mas muitos acabam por ser mais infantis do que crianças da sua idade que não passaram pelo mesmo percurso. São miúdos, comparativamente com outros que não tiveram cancro, que tendem a sair mais tarde de casa, a ter namorado mais tarde, a ter filhos mais tarde. "Tudo o que diz respeito à sua independência", resume Ximo Duarte. Tendem a ser mais avessos "a decisões de risco" e, quando decidem, às vezes até a própria sociedade lhes cria obstáculos, critica. Quando pedem empréstimos para comprar carro ou casa - "que são gritos de independência" - são mais penalizados, "esta é uma queixa que é frequente", junta.

Goreti tem dores de cabeça

Uma minoria também fica com problemas físicos. Goreti tem dores de cabeça diárias, por causa da radioterapia, cansa-se muito mais do que outros jovens da sua idade e não pode fazer grandes esforços. Alguns deles podem ficar com alterações cognitivas, sobretudo crianças que tiveram tumores do sistema nervoso central, problemas de crescimento físico, problemas de fertilidade. Poderá ser, por exemplo, o caso de Margarida, mas não lhe interessa saber disso agora. "Não sei se posso ter filhos, mas saber agora não adianta nada."

Neste grupo dos DUROS, também estão os que com a doença aprenderam a relativizar. Goreti diz que a doença a tornou "mais optimista, não sou tão mesquinha com alguns problemas na vida. Olho para a vida com mais abertura". Para Margarida, essa atitude é ainda uma luta diária. "Faço um esforço desmesurado para ser optimista, mentalizo-me, não é natural. Sou ansiosa; facilmente não durmo bem à noite. Agora estou mais tranquila. Quero começar a trabalhar e virar a página. Quero uma vida sem drama, acho que já mereço."

As infâncias não foram normais e há etapas pelas quais não passaram. André passou em falso parte dos anos de andar de bicicleta, esfolar os joelhos, de cair e voltar a levantar-se. Margarida lembra-se que namoriscava antes da doença, era uma adolescente irreverente e depois adoeceu, os rapazes deixaram de ter interesse, o seu foco era fazer os tratamentos e não perder anos na escola. "Estudar era a única coisa dentro do meu controlo." Os intervalos na escola passaram a ser a ouvir música com auscultadores nos ouvidos e a ler livros. "Tornei-me mais tímida e introvertida." E há coisas que se atrasaram, que começaram mais tarde do que era suposto. "Quando era suposto aprendermos a sair à noite, eu não estava disponível, eu não aprendi, perdi o interesse", só mais tarde, "na faculdade, é que percebi que era giro. Percebi que gostava de sair à noite e pintar as unhas de cor-de-rosa".

O atraso no convívio com as pessoas da sua idade foi perturbado e o universo onde acabavam por se sentir melhor foi o mundo dos adultos. "São jovens que acabaram por se aproximar de pessoas mais velhas", diz a psicóloga Maria de Jesus Moura. Goreti lembra-se de que não brincava com os outros meninos doentes, preferia puzzles porque lhe permitiam a solidão. O seu melhor amigo durante esses tempos não foi nenhum menino mas sim um adulto, o padrinho que a visitava no hospital e brincava com ela. Margarida recorda que eram "mais os pais a falar entre eles do que os miúdos entre si".

O mundo assustador

Entrar pela primeira vez no IPO de Lisboa enquanto crianças foi conhecer um mundo diferente e assustador. Ali, no sétimo andar daquele enorme prédio, com meninos sem cabelo que se deixavam empurrar no suporte de soro e lhe chamavam Bobby - uma brincadeira recorrente no serviço de pediatria do IPO -, havia uma realidade invisível em que não se faziam perguntas e não se davam explicações. Quando havia meninos que deixavam de aparecer, "a minha mãe dava sempre uma desculpa". Margarida lembra-se de "um miúdo", em particular, "deixei de o ver. Ele estava mal". Nunca ninguém lho disse, mas Margarida sabe que morreu. "Tive uma experiência de morte tão cedo e com pessoas mais novas do que eu. É pesado, quando paro para pensar: já passaste por algumas coisas..."

Agora estão de volta todos os anos ao IPO, mas a consulta dos DUROS é num sítio diferente. Passa-se mesmo ao lado do parque infantil e Goreti ainda passa para cumprimentar "a Dona Nazaré na salinha de brincadeiras" . Mas, apesar dessas lembranças, a consulta funciona "num tempo criado para eles,", explica Ximo Duarte, tentando, tanto quanto possível, que não se cruzem com os meninos que agora estão doentes, para que não façam esse regresso ao passado e se vejam como aquelas crianças "pálidas, enjoadas, sem cabelo. Podia fazê-los sentir-se pior".

O ideal, defende, seria que este seguimento se fizesse fora do IPO, num centro de saúde na sua área de residência, com médicos diferentes, diz, talvez longe daquela parede do corredor do gabinete, pintada com bonecos infantis. As vindas à consulta dos DUROS trazem cada vez menos ansiedade, mas para Margarida funcionam sempre como uma espécie de lembrete: "Vir cá é tornar esse passado realidade."

E Ximo Duarte pergunta-se: "Se calhar, fazer com que cá voltem mantém um vínculo com uma realidade que já não tem de ser a deles." Maria de Jesus Moura acredita que ter aqui a consulta dá-lhes "mais segurança, porque está cá o processo, a sua história, por mais traumática que possa ser". A psicóloga recorda que chegou a colocar-se a hipótese de serem acompanhados nas consultas de adultos, mas foram os próprios utentes, às vezes pessoas já casadas e com filhos, que não quiseram, porque sentem que no universo da pediatria existe uma maior proximidade de relações com o pessoal de saúde.

A vida paralela

Para os médicos que fazem a consulta dos DUROS, esta é uma espécie de vida paralela. Duas vezes por semana, têm a oportunidade de tratar dos 70 por cento que sobreviveram ao cancro pediátrico, mas o resto do tempo continuam com o resto do grupo de crianças: de onde sairão novos sobreviventes mas também miúdos que irão morrer. Todos os anos entram cerca de 150 crianças no IPO, acabarão por sobreviver cerca de 100. A consulta dos DUROS está cheia até Janeiro de 2011.

O objectivo da consulta é despistar sequelas, conversar sobre as que podem acontecer, identificar recaídas, mas é também um espaço para conversas, histórias e seguimento de quotidianos. É verdade que os médicos continuam a pedir análises e exames, mas também lhes perguntam como vão de amigos? No emprego? Se fumam? Se praticam desporto? Se comem bem? "É uma consulta muito bonita, agradável de fazer", confessa Ximo Duarte, porque estando "neste quotidiano, na luta oncológica", ali dá para "perceber que dez a 15 anos depois há vida: há mães que trazem os filhos para mostrar, desportistas de elite, vêm médicos e advogados".

O mais novo dos DUROS anda pelos seis anos (o cancro pode ser diagnosticado com poucos meses de idade), o mais velho já tem 49 anos, é uma senhora que esteve doente há 45 anos.a

cgomes@publico.pt

histórias de doença não são bem apenas suas, são uma mistura entre memórias pessoais e das dos progenitores que os acompanharam, sobretudo a mãe, que continua a ser a principal cuidadora. "A minha mãe é que sabe explicar melhor do que eu", responde Goreti, que fala de um processo de doença que ela pensa que se arrastou durante três anos, a mãe corrige para dizer que foram cinco anos. "Os pais têm mais memórias do que os filhos", completa a psicóloga, ainda mais em casos em que o diagnóstico remonta aos primeiros anos de vida. Desse tempo, alguns retêm a quimioterapia, sem esse nome, o tempo de isolamento, outros uma visita dos palhaços da operação nariz vermelho. São retalhos de recordações. O que fica de mais importante não são, muitas vezes, os tratamentos em si nem a forma "como aquela vivência de perigo de vida foi vivida pelo doente, mas sim pela sua família".

É assim que, quando se fala de consequências do cancro pediátrico nas suas vidas, as sequelas mais frequentes não são as físicas mas as psico-sociais e, nesta categoria, surge à cabeça uma superprotecção dos pais, que é normal, até certo ponto, mas que pode, e muitas vezes, ter consequências ao nível da sua autonomia e independência, explica a psicóloga. E pode redundar, em casos menos frequentes, "nalguma vitimização" - miúdos a quem se desculpa de tudo um pouco, como os maus resultados escolares, com a atitude do "coitadinho, esteve doente".

O que quer dizer que não são propriamente memórias traumáticas dos tratamentos que mais os marcam, mas toda a envolvência. Os irmãos mais velhos podem contribuir para esta dinâmica de protecção da criança que um dia foi muito doente e esteve em risco de vida, alguns é como se "virassem pais", já os mais novos, por vezes, ressentem-se da ausência de cuidados, continua a psicóloga.

Élio pratica boxe

Élio Ribeiro, de 23 anos, diz que ainda hoje, se não tem fome, a mãe "começa a chatear". "Diz que tenho de me alimentar, para não voltar a acontecer." Serão normais os sermões dos pais para ter cuidado nas saídas à noite, mas ele sente que foi "mais protegido pelos pais, que tinham mais cuidados para não sair à noite, não chegar tarde, não beber". Talvez seja para contrariar isso que hoje pratica boxe amador. "Os meus pais não gostam que ande dentro do ringue aos socos, por ser violento e porque estive doente no passado", diz com uma espécie de orgulho à mistura. Hoje, veio de Olhão a Setúbal para fazer exames e tentar entrar no curso de Fisioterapia na cidade, embora preferisse ficar a estudar perto de casa.

De tão protegida na doença, Goreti entrou para a escola depois dos tratamentos sem ter desenvolvidos os mecanismos de defesa em relação aos outros miúdos, admite. "Não tive uma infância normal, a minha realidade era o hospital. Não sabia coisas da vida, não sabia como me defender. A minha mãe resolvia os problemas por mim." Quando em apuros lembra-se de, nos primeiros tempos, pôr-se a um cantinho e esperar pela mãe.

Só que os problemas que enfrentou quando chegou à escola não podia ser a mãe a resolvê-los: o sentimento de diferença, de regressar sem cabelo, mais gorda por causa dos tratamentos. Sofreu na pele o que hoje já ganhou nome e anda nas bocas do mundo, "o que agora se chama bullying. Sempre fui muito posta de parte nas turmas". A sua solução foi encontrar nas turmas por onde foi passando "lugar com os mais feiinhos, os mais fraquinhos, como há em todas as turmas". Foi uma estratégia que mudou até um dia em que reagiu, no 10.º ano,

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