Dois anjos em Evin, a prisão de AhmadinejadNa primeira pessoa

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Roxana Saberi dr

A jornalista Roxana Saberi queria escrever um livro sobre um país "misterioso e incompreendido". A documentarista Mehrnoushe Solouki queria filmar uma "terra maldita". O regime islâmico não gostou. Levou-as para a secção 209 de Evin, onde permanecem encarcerados milhares de opositores políticos de Mahmoud Ahmadinejad, o Presidente cuja reeleição, há um ano, gerou os maiores protestos das últimas três décadas de teocracia. Em Between Two Worlds e Fatwa de Sang, elas descrevem como o Irão se tornou numa grande prisão. Por Margarida Santos Lopes

Roxana Saberi

Entre dois mundos

Lembram-se de mim? Sou a jornalista Roxana Saberi que, de Janeiro a Maio de 2009, passou 100 dias na prisão de Evin, em Teerão, e a quem o namorado, o perseguido cineasta curdo Bahman Ghobadi, escreveu uma linda carta de amor: My Iranian girl with Japanese eyes and an American ID is in jail. Shame on me! Shame on us!

Fui detida no dia do aniversário de Bahman, sábado, 9 da manhã, 31 de Janeiro. Ding-dong. Ding-dong. Ding-dong. A campainha da porta não parava de tocar. Eu acabara de acordar e ainda estava de pijama. Pelo intercomunicador, um tipo de meia-idade disse-me que era o carteiro. Vesti à pressa a minha rooposh (túnica) até aos joelhos e tapei o cabelo com um lenço branco, para o receber. Abri apenas uma fresta, e ele passou-me uma folha de papel. O meu modesto conhecimento da língua farsi só me permitiu ler "Prisão de Evin". Fiquei apavorada.

Tentei fechar a porta entreaberta, mas quatro homens forçaram a entrada. Ficaram chocados de ver o meu chador a tapar o piano, na sala. Revistaram tudo, de livros a fotos de família. Confiscaram CD, DVD e até extractos bancários. Que sorriso vitorioso o deles quando encontraram os meus dois passaportes, o americano e o iraniano. Já não poderia deixar o país. Eu vivia num quinto andar. Se habitasse o rés-do-chão, ter-me-ia lançado de uma janela para a rua.

"Temos de a levar para interrogatório", disse-me um deles. Não deram justificações, e eu pensei que o meu "crime" talvez fosse o de ter continuado a enviar notícias para vários media com os quais colaborava, como a BBC, a Fox e a National Public Radio, apesar de, em 2006, me ter sido retirada a licença.

As autoridades sabiam o que eu fazia, e nunca tentaram impedir-me. Talvez eu devesse ter partido nessa altura, mas achei que era uma oportunidade de escrever um livro sobre um país de enorme riqueza histórica e cultural, ainda um mistério, para mim, e incompreendido por uma grande parte do mundo. Seria um retrato do Irão pelos olhos dos iranianos.

O meu pai, Reza, nasceu em Tabriz, no Noroeste do Irão. Apesar de pobre, conseguiu formar-se em Literatura Inglesa e viajar pelo mundo. Foi no Japão, onde era professor, que conheceu a minha mãe, Akiko. Para a família dela, namorar um estrangeiro era tabu. Por ambos se terem encontrado duas vezes, ela ficou de castigo durante semanas e teve de rapar a cabeça.

Quase Miss América

Reza voltou ao Irão, mas não deixou de enviar cartas a Akiko através de um amigo comum. Numa dessas cartas, ela encontrou um bilhete só de ida para Teerão. Viajou em segredo e os dois casaram-se em 1971. Dois anos depois, foram viver para os Estados Unidos.

Eu nasci em Belleville (New Jersey) mas, quando tinha dois anos e o meu irmão quatro, mudámo-nos para Fargo (Dakota do Norte). Aqui, Akiko é patologista; Reza escreve livros de filosofia e traduz poesia persa.

Na pacata Fargo, durante muito tempo, estive apenas concentrada em integrar-me numa escola de alunos louros de olhos azuis. Mas, à medida que o tempo passava, sentia que algo me faltava. Em 1997, para conseguir uma bolsa que pagasse um mestrado em Jornalismo, candidatei-me a Miss Fargo. Apesar de mal poder andar de saltos altos e de me aterrorizar a ideia de desfilar em fato de banho, ganhei e fui coroada Miss Dakota do Norte. Cheguei também a finalista no concurso Miss América.

Já tinha completado um segundo mestrado, em Relações Internacionais, e trabalhava como jornalista em Houston (Texas), quando recebi um convite para ser correspondente no Irão. Em Fevereiro de 2003, deixei a América com destino ao país que, um ano antes, George W. Bush incluíra num "Eixo do Mal". Nunca imaginei que iria agonizar numa cela exígua e imunda de Evin.

Em isolamento, não tinha jornais, livros, televisão, caneta, papel. As guardas eram o meu único contacto humano. Sem relógio, os minutos eram horas e as horas eram dias. Após dois dias de solidão e escuridão, ofereceram-me havâ-khori. Seria sinónimo de liberdade? Não, apenas uma caminhada de 20 minutos, para ver a luz e esticar as pernas, num pátio de muros e arame farpado. Sem jardins e sem flores, parecia uma jaula. Demorei a chegar ao estádio de Saeb Tabrizi, poeta persa do século XVII: "Quando um pássaro entende que é mais do que a sua jaula, já é livre."

Em penosos interrogatórios, algemada e de olhos vendados, sucumbi à pressão. A minha única saída era admitir um crime que não cometi, e depois pedir perdão. Prometeram libertar-me se confessasse que recebia dinheiro da CIA. Exigiram que denunciasse uma das pessoas que eu entrevistara. Dei um nome, de alguém que estava longe e a quem não poderiam fazer mal. Propuseram depois que eu espiasse para eles. Só então me deixaram telefonar ao meu pai.

"A tua família não pode saber onde estás para que possas colaborar connosco no futuro", avisou um dos interrogadores, a que chamei Javan, porque parecia os javân (jovens) do Norte de Teerão, com o seu ar ocidentalizado, blue jeans e blusão de cabedal. "Diz ao teu pai que foste detida por comprar bebidas alcoólicas." Assim se espalhou a informação de que fui detida por consumir álcool, proibido na República Islâmica.

Lenços azuis no bazar

Não fui libertada como prometeram. Ficaram furiosos por o meu pai ter alertado gente influente para o meu desaparecimento. Transferiram-me para a secção 209, reservada aos prisioneiros políticos, para onde levei os meus únicos objectos: dois cobertores com que dormia no chão, escova e pasta de dentes. Foi aqui que conheci Roya, Vida, Leila, Elham, Samira, Silva Harotonian, Narguess, Mahvash e Fariba. Fiquei impressionada com a coragem delas. Foram submetidas às mesmas pressões mas não sucumbiram. Inspiraram-me. Decidi arriscar pôr em perigo a liberdade em troca da verdade. Reneguei a confissão.

Todas as minhas companheiras de cela me ensinaram lições importantes. Fariba e Mahvash, por exemplo, ensinaram-me que devemos tentar transformar os desafios em oportunidades. Que não devemos odiar nem mesmo aqueles que nos enganaram profundamente. Podemos converter a nossa fúria em energia positiva, num poder que faz avançar o mundo. Fariba e Mahvash, que entraram no terceiro ano de prisão sem culpa formada, são dirigentes da comunidade bahá"í, a maior minoria religiosa do Irão, privada de todos os direitos básicos.

Mais tarde, quando me apercebi de que o mundo exterior já tinha conhecimento do meu paradeiro, que os media estavam a noticiar o meu caso e que havia muitos apelos internacionais à minha libertação, ainda ganhei mais força interior. Iniciei uma greve de fome e enfrentei sem medo os carcereiros e os magistrados, que entretanto me acusaram de espionagem. No final do meu julgamento, a 11 de Maio de 2009, o veredicto foi uma pena suspensa de dois anos de cadeia (inicialmente eram oito) e a proibição de trabalhar no Irão nos cinco anos seguintes. Duas horas depois, eu estava livre.

Antes de partir, fiquei a saber que muitos iranianos seguiram de perto a minha história. Um taxista recusou cobrar-me uma viagem. No bazar de Teerão, fiquei perplexa ao ver à venda "lenços Roxana", azuis como aqueles que apareciam numa foto publicada nos jornais - sinal de admiração por alguém que enfrentou as agruras de Evin.

Escrevi Between Two Worlds (HarperCollins) para que todos saibam que muitos iranianos inocentes continuam sujeitos às mesmas iniquidades que enfrentei. Muitos sofrem mais do que eu sofri. No meu caso, creio que a atenção internacional ajudou a pressionar as autoridades a libertarem-me, e acredito que é necessária uma atenção semelhante para todos os que ainda são tratados injustamente no Irão.

Não sei ao certo quais as razões por que me prenderam. Talvez, devido a uma luta pelo poder entre as várias facções no regime. Depois de eu ter renegado a minha confissão falsa, o principal interrogador admitiu saber desde o início que eu não era uma espia (algo que o adjunto do procurador sugeriu que eu era - em privado, é claro!). Talvez os meus captores quisessem usar a minha confissão falsa para intimidar os iranianos que advogam melhores relações com o Ocidente. Na altura, o Presidente Barack Obama falava sobre uma maior aproximação ao Irão, e muitos iranianos da linha dura não estavam interessados nisso.

Talvez quisessem que a minha confissão falsa reforçasse a alegação de que a América colocou espiões por todo o Irão. Justificariam, deste modo, um maior controlo sobre a sociedade e o silenciamento das críticas, sob pretexto de proteger a segurança nacional. Os meus raptores também pareciam genuinamente ressentidos por eu ter entrevistado tantos iranianos para um livro que eu queria publicar no estrangeiro, fora do alcance da censura deles.

Não sei também quais as razões que conduziram à minha libertação, mas creio que a pressão internacional teve muito a ver com isso. As notícias sobre as minhas duas semanas de greve de fome aborreceram os meus captores, e o regime terá concluído que manter-me na prisão seria muito mais oneroso do que libertarem-me.

Ainda me sinto culpada por várias declarações que fui forçada a fazer e a repetir (várias vezes) em vídeo. Alguns activistas de direitos humanos e antigos presos políticos têm-me dito para não ser tão dura comigo, que outros na mesma situação também cederam às pressões. O que os meus captores me obrigaram a fazer na prisão é "tortura branca", cujos efeitos deixam marcas psicológicas em todos os que passam por situações semelhantes.

Escrever sobre a minha experiência e falar sobre ela tem-me ajudado a cicatrizar as feridas, porque acho importante as pessoas saberem que o que me aconteceu ainda acontece a muitos outros. Tive muita sorte e, agora, sinto a responsabilidade de usar a liberdade para falar em nome dos que lutam para que as suas vozes sejam ouvidas.

Liberdade e democracia

No dia em que recuperei em liberdade, os meus captores ainda me ameaçaram. Se eu revelasse os "acordos" que me propuseram, mandariam matar-me. Ouvi dizer que fizeram ameaças iguais a outros prisioneiros. Sei que, no passado, responsáveis iranianos estiveram envolvidos em assassínios de dissidentes no estrangeiro. Na prisão, tentei superar o medo. Ter medo agora seria uma vitória para os meus captores. Acredito no valor das mensagens que tento transmitir, e tenciono continuar a denunciar as violações de direitos humanos. De momento, talvez as autoridades iranianas tenham outras prioridades, que não ordenar a minha morte.

Espero ainda publicar o livro sobre o Irão que me levou até Evin. Inclui muitas histórias interessantes sobre os iranianos. Há mais de cem anos [desde a revolução constitucional de 1905-1911] que há um movimento pela democracia no Irão. Acredito que uma maioria quer um governo democrático que respeite os direitos humanos. Alguns reclamam mudanças no quadro da República Islâmica; muitos exigem todo um novo sistema de governo.

Um dos factores que alimentam este desejo de um governo mais democrático é puramente demográfico: cerca de dois terços da população tem menos de 30 anos. Muitos iranianos não tinham nascido quando aconteceu a revolução islâmica ou não se lembram dela. Muitos outros que contactam o mundo exterior conhecem os seus direitos, e exigem que eles sejam respeitados. Mais e mais mulheres frequentam as universidades. Numerosos jovens mudaram-se das aldeias para as cidades só para frequentar uma faculdade. Aqui, expõem-se a novas ideias e fazem novas exigências à sociedade e ao regime. É impossível prever quanto tempo vai demorar até que este clamor de democracia tenha resposta (depende de muitas condições dentro e fora do país), mas acredito que será bem-sucedido.

Mehrnoushe Solouki

Numa "terra maldita"

Chamo-me Mehrnoushe Solouki mas, em casa, tratam-me por "Nazi". Não, não é engano. Nada tenho a ver com o Nationalsozialismus de memória sinistra. Em persa, "Nazi" significa "graça", e é assim que alguns pais chamam os filhos em sinal de afecto. Digo isto para entenderem que não é por ser "Nazi" que fui parar à mais vil prisão iraniana - um antigo jardim, a norte de Teerão, no sopé das montanhas Evin, onde há 35 anos um dos primeiros-ministros do Xá criava coelhos.

Fui parar à cadeia de Evin por ter filmado Lanat Abad, a "Terra Maldita", na qual o regime despejou em valas comuns os corpos de cerca de 10 mil opositores (números da Amnistia Internacional), entre 1988 e 1989 - um dos piores crimes da revolução islâmica. Homens, mulheres e crianças foram enforcados ou fuzilados, no final da guerra Irão-Iraque, em obediência a um édito (fatwa) do ayatollah Khomeini depois de os Mujahedin-e Khalq (Combatentes do Povo), aliados de Saddam Hussein, terem lançado a Operação Luz Eterna, para derrubar a teocracia que dez anos antes ajudaram a instaurar.

Tropecei em Lanat Abad quando fazia um documentário sobre os rituais fúnebres dos zoroastras, judeus, cristãos arménios e bahá"ís. Era uma encomenda de uma instituição ecuménica canadiana para o festival Métropolis de Montreal. Queria filmar o cemitério de Khavaran, um espaço simbólico onde estão reunidas todas as minorias religiosas, e onde a estética e a arquitectura funerárias contrastam com as normas dos muçulmanos xiitas - a maioria da população. Lanat Abad - sem lápides, sem fotos, sem flores - fica bem próxima de Golestân Javid, espécie de gueto onde os baha"ís, perseguidos como apóstatas, enterram quase clandestinamente os seus entes queridos, deixando sobre os túmulos doces e chocolates.

O meu assistente, Rasoul, bem me avisara que não deveria "desenterrar os mortos" de Khavaran. Um dia, à saída da produtora de Bahman Kiarostami, filho do grande cineasta Abbas, seis tipos corpulentos bloquearam-me a passagem. Exigiram que lhes desse o disco rígido onde estavam as minhas filmagens de Lanat Abad. Recusei, mas eles foram até ao laboratório e confiscaram o que procuravam. Não satisfeitos, levaram-me para Evin.

Com uma venda nos olhos, fizeram-me atravessar um labirinto de corredores até chegar a uma cela de seis metros de largura por dez de comprimento, na secção 209 de Evin. Sem janelas e sem móveis. Fui privada de tudo. Só tinha um livro, o Corão, mas eu não sei ler árabe. Não tinha caneta nem papel para escrever. Nada, nenhum sinal de vida. Davam-me arroz e carne vermelha num prato de plástico. Mas um morto não come. Dormia no chão sob uma luz fluorescente, acesa dia e noite.

A isto, chamam "tortura branca". Ficamos com a sensação de que estamos num mundo vazio de tudo, e que nem Deus nos ouve. Por vezes, tinha a impressão de que as paredes se estreitavam e me sufocavam cada vez mais. Nunca convivi com outros prisioneiros na minha cela. Estava sozinha, mas ouvia vozes e gritos. Durante várias noites, ouvi os gritos de sofrimento de um jovem. Mais tarde, vim a saber que era Sina, um independentista curdo. Morreu sob tortura.

Os meus captores eram o malvado Gôlestan e o bom Rézaî, nomes falsos, é claro. Rézaî era um jovem bem vestido e de barba feita, nada parecido com os pasdaran [guardas da revolução]. A primeira frase que me dirigiram foi: "Será libertada dentro de cinco dias, se tudo correr bem..." Passei 35 dias em isolamento. Depois, mais um ano retida e sequestrada no Irão, sem poder deixar o país, até ao pagamento de uma fiança.

Sem vergonha de mentir

Não, não tive vergonha de confessar o que os interrogadores queriam ouvir - preenchi 700 páginas de confissão. No Irão, mentir é uma questão de sobrevivência. Desde muito nova que aprendi a mentir. Vejamos: fui uma das apoiantes mais entusiastas da revolução. Tinha nove anos quando o Xá deixou o Irão em Janeiro de 1979. Só a perspectiva de, no cinema, não ter de me levantar para ouvir um hino em honra do imperador pareceu-me justificação suficiente para apoiar a sua queda.

Que felicidade, a cena surreal em que ajudei a minha vizinha Mitra a distribuir, de Cadillac, sanduíches e refrigerantes aos "jovens revolucionários". Todos pareciam festejar a partida do ditador e o regresso do teólogo que ele exilara em Paris. O meu pai, antigo militante comunista, era uma excepção: "Saberão vocês quem são os mullahs?"

Tinha razão. Meses depois, a vizinha Mitra, sempre elegantemente vestida, bem penteada e de unhas pintadas, foi obrigada a despedir-se, por se recusar a usar o véu. Refugiou-se no estrangeiro. O meu pai, que trabalhava num banco privado, onde os empregados eram accionistas, perdeu todos os seus investimentos. Sem dinheiro, teve de vender a nossa grande moradia e comprar um apartamento pequeno.

A revolução também me obrigou a viver várias vidas: uma de mini-saia, em casa e nas noites com os amigos; outra de chador, na escola e na rua. Convenci-me que eu era duas pessoas num só corpo. Para soltar as amarras, fui ter aulas de teatro com uma companhia profissional. Comecei como figurante, na peça Sohrab e Rostam. Na mitologia iraniana, Sohrab correspondia ao rei Édipo, com a diferença de que, no combate entre pai e filho, é o pai (Rostam) que mata o filho (Sohrab). Quando a encenadora Pary Banu (Lady) Saberi, uma famosa actriz dos anos 1960 - a primeira a ter a coragem de se despir em palco -, se converteu ao islão para obter financiamento, fiquei decepcionada. Não quis mais participar num espectáculo onde o passado (o pai) mata o futuro (o filho).

Eu fantasiava representar Ofélia tal como Shakespeare a imaginara, não segundo códigos religiosos. Queria que Masha, uma das Três Irmãs, de Tchekov, pudesse dizer que amava outro homem que não o seu marido. Para contornar as restrições, eu e os meus amigos formámos um grupo e actuávamos numa cave. Os censores acabaram com o nosso sonho.

Os meus pais também não queriam que eu fosse actriz, profissão comparada à de palhaço. Preferiam que escolhesse Medicina ou Engenharia, para me fazer respeitar. Em 1995, sentindo-me prisioneira até na minha casa, comprei um visto no mercado negro, no bazar de Teerão, e voei para Paris. Licenciei-me em Literatura Francesa na Universidade de Teerão. Conhecia Malraux, Camus, Ionesco... O francês era uma língua rara e prestigiada no Irão. Na bagagem levei o meu livro sagrado, o Petit Robert.

Por força de mentir dia e noite, acabei por me esquecer onde estava a verdade. Na prisão, os interrogadores exigiam que eu mentisse, e eu tinha de alinhar no jogo. Em Evin, o silêncio significa morte. Também conhecia a natureza do regime com que deveria alinhar no jogo da mentira. Consegui várias vezes manter-me tranquila e esconder a minha ira. Era um corpo prisioneiro mas um pensamento livre.

Não tive vergonha de confessar contra mim própria, porque não denunciei outros. Nem as famílias das vítimas nem as personalidades com quem me encontrei. Para mim, a verdade não é a preto e branco. Não há infelicidade absoluta e felicidade absoluta. No dia em que me libertaram de Evin, em Março de 2007, deram-me um formulário para preencher sobre as condições prisionais e o comportamento dos guardas. Havia quatro respostas: "Excelente", "Bom", "Menos bom", "Mau". O hábito de mentir ajudou-me a responder "Bom" às duas questões.

Quebrar o silêncio

Escrevi Fatwa de Sang (Michel Lafon) porque queria falar de mim própria, dos prisioneiros de consciência que foram executados em 1988 e daqueles que foram encarcerados pelo governo que resultou de um golpe de Estado após as eleições de Junho de 2009. Centenas de jornalistas, feministas e estudantes continuam atrás das grades. Sou um ser humano que não pode permanecer em silêncio. Os direitos humanos são uma língua universal, uma cultura que une todas as nações do mundo, embora as ditaduras aleguem que se trata de uma "questão interna".

Quando deixei o Irão, em Janeiro de 2008, senti uma enorme fúria contra os que me detiveram durante tanto tempo. Apercebi-me que estava a tornar-me violenta. Se começasse a agir como aqueles que eu condenava, nada me distinguiria deles. Tive de aprender a acalmar-me. Só depois disso consegui escrever Fatwa de Sang. Este livro deveria ter sido publicado em Julho de 2009. Duas grandes editoras francesas mostraram interesse: a Denoël, filial da Gallimard, e a Harmattan, mas os factos narrados no capítulo sobre a Operação Théo fizeram-nas hesitar em publicar a obra na íntegra. Agradeço a Michel Lafon ter aceitado o desafio.

A Operação Théo foi lançada, em Junho de 2003, pelo Ministério do Interior francês contra membros exilados dos Mujahedin, a pedido do regime iraniano. A França e o Irão planeavam assinar contratos de 25.000 milhões de euros no sector do gás e do petróleo. Em protesto, alguns activistas iranianos imolaram-se pelo fogo junto a embaixadas francesas na Europa. De quem foi a culpa? Senti-me cúmplice. Eu participei nas rusgas policiais como intérprete. O dinheiro que recebi ajudou-me a pagar os estudos e a deixar de trabalhar em part-time no McDonalds.

Sou sincera e falo sem rodeios: a minha libertação não foi uma vitória diplomática para a França, embora os meus melhores amigos sejam franceses e eu tenha dupla nacionalidade, iraniana e francesa. Em Abril de 2009, mudei-me mesmo para Paris, depois de ter sido atacada no prédio onde residia, no centro de Montreal. Infelizmente, a polícia canadiana recusou garantir a minha segurança e perseguir o agressor. Escolhi viver na Europa.

Movimento feminino

O disco rígido que continha a montagem das minhas filmagens de Khavaran continua confiscado. As cassetes foram devolvidas aos meus pais, mas as imagens foram danificadas pelos aparelhos usados pelas autoridades. Ainda assim, consegui recuperar uma parte. Não tenciono voltar ao Irão. Tenho a vida que quero. Faço o trabalho que gosto. Sou livre. Se voltasse, seria condenada a quatro anos de cadeia com pena suspensa, como deliberou o juiz.

Ainda não acabei a minha história de Khavaran. Quem é responsável? Quem? Por eu ter questionado os seus fundamentos, o regime ficou irritado. Em Junho de 2009, o povo iraniano superou o medo e mostrou-se determinado a empreender uma mudança democrática. Nos confrontos, as mulheres estão na linha da frente. Direi mesmo que o "movimento verde" é um movimento feminino. O povo iraniano, com a sua coragem imensa, mostra que o respeito pelos direitos humanos é fundamental para definir uma sociedade, seja qual for a sua cultura.

O "movimento verde" continuará o seu caminho, no interior e exterior do Irão. A História ensina-nos que os regimes tirânicos, ainda que convencidos da sua força, não resistem indefinidamente a povos persistentes e pacíficos. O regime ficou mais inflexível porque está à beira de ruir.

A partir de uma entrevista por e-mail com Roxana Saberi e de extractos do seu livro Between Two Worlds (HarperCollins)No dia seguinte às eleições iranianas de 12 de Junho de 2009, muitos apoiantes do derrotado Mir-Hossein Mousavi, o candidato favorito da oposição, saíram à rua em protesto. A cor de campanha de Mousavi inspirou o Movimento Verde, de contestação ao Presidente reeleito, Mahmoud Ahmadinejad. Na linha da frente dos que denunciaram fraudes e exigiram a repetição do voto popular estavam mulheres e jovens, não só das áreas urbanas como das ruraisImagem de Evin que o regime entregou à ONU para mostrar que trata bem os prisioneiros

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