Hotel Yeoville: África em casa

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Megan Pillay no Hotel Yeoville Pedro Cunha

- Olá, estou à procura de poetas.

- Olá, estou à procura de quem ensine contabilidade.

- Olá, estou à procura de quem jogue basquetebol ao fim-de-semana.

- Estamos à procura de uma casa inteira para ocupar, na comunidade de Yeoville. Liguem para Sabelo Sibanda.

- Sou Mbali Mushwane, 26. Vivo em Yeoville e procuro trabalho num call center.

- Sou Patience Lukeso. Um homem. Venho da República Democrática do Congo.

- Tenho MEDO daqueles que não conseguem OLHAR-ME nos olhos. TENHO MEDO DAQUELES QUE ESTÃO SEMPRE NA MINHA CABEÇA. Lorah Zondo.

- O que aconteceu à miss "Inteligente"? Fui um desapontamento tão grande para a minha família. Esta é a minha vida em Jozi. Tenho de lhe dar a volta. Gugulethu Ndlovu.

- Sim, isto é Joanesburgo, a maravilhosa cidade do ouro. Petros M. Ngubo.

E todas estas pessoas são Hotel Yeoville.

Não é um hotel. É uma comunidade. Tem uma morada virtual, http://hotelyeoville.co.za, e uma morada real: Rua Raleigh, 51-53, Yeoville, Joanesburgo.

Cá fora, negros de correntes de ouro cruzam-se com adolescentes negras de uniforme escolar, jovens mães de cobertor atado no tronco e bebé a espreitar, e homens a falar francês ou português porque vêm do Congo ou de Moçambique.

Não se vêem brancos.

"Yeoville? Isso é só bandidos." Quem vai a Joanesburgo pela primeira vez tem boas hipóteses de ouvir esta frase. Geralmente quem adiz são os brancos que dizem: "Eu não era a favor do apartheid, mas..." E segue-se a lista de como antes havia sucesso, sossego e segurança. E não vale a pena perguntar para quem, e à custa de quem, porque todos sabemos.

Nos anos 70, Yeoville era um centro trendy, com restaurantes, bares, lojas, boa vida. Nos anos 80, tornou-se um dos poucos bairros brancos visitado por negros, quebrando as regras do apartheid. Já tinha uma forte tradição judaica, havia sinagogas misturadas com igrejas. Um melting pot, mas em que os donos das casas continuavam a ser quase todos brancos. Com o fim do apartheid, os negros foram chegando ao centro de Joanesburgo e os brancos foram saindo para os subúrbios mais distantes. De 90 por cento de habitantes brancos, Yeoville passou para 90 por cento de habitantes negros, muitos dos quais imigrantes africanos recém-chegados.

Para os nostálgicos, é hoje um bairro perdido para o lixo, a droga e o crime. Forma uma espécie de "Triângulo das Bermudas" com os bairros vizinhos de Hillbrow e Berea, que muitos brancos só atravessam de carro, com perpétuo horror, lembrando aquelas tardes de compras, aquelas noites de pândega, aquelas casas óptimas, e olhem para isto agora.

Estamos a olhar.

Na Rua Raleigh, o passeio foi arranjado, há candeeiros novos, caixotes de lixo, e este edifício de tijolo que vai do número 51 ao 53 é a nova Biblioteca Pública de Yeoville.

Os invisíveis

Lá dentro, o bengaleiro está cheio de mochilas, e dezenas de estudantes com uniformes da escola debruçam-se sobre livros, misturados com imigrantes africanos.


Subindo a escada, o Hotel Yeoville anuncia-se na parede, e no patamar está a artista anfitriã, Terry Kurgan.

Sul-africana judia, descendente de polacos e lituanos que para aqui vieram na Segunda Guerral Mundial, Terry tem feito trabalhos de arte pública em diferentes espaços: uma maternidade, um centro comercial, uma prisão. E agora pôs de pé Hotel Yeoville.

- Este projecto vem da terrível onda de xenofobia que aconteceu em 2008, quando sul-africanos atacaram muitos estrangeiros - conta.

A imagem-símbolo dessa onda de ataques foi um corpo queimado. Era um imigrante moçambicano a quem sul-africanos tinham pegado fogo. O alarme soou: desemprego e desequilíbrios sociais estavam a levar os sul-africanos pobres a voltarem-se contra os pobres que chegavam de toda a África subsariana para tentar arranjar emprego. E isto coincidiu com o êxodo de três milhões de zimbabweanos, depois do colapso económico do regime de Robert Mugabe.

- Neste bairro, há 40 mil pessoas: sul-africanos, mas também zimbabweanos, congoloses, nigerianos, moçambicanos. Fiz outros trabalhos sobre imigração, mas queria um projecto que permitisse às pessoas documentarem-se, fazerem filmes, contarem histórias, terem informação. Um projecto que desse visibilidade a uma comunidade invisível.

Não só por serem pobres, mas por serem forasteiros, em condições precárias, com família longe.

- Aqui à volta, num espaço de poucos quarteirões, há 30 cafés Internet. Isso significa que as pessoas não têm acesso à Internet em casa. Chamamos-lhe hotel porque é uma comunidade em trânsito. Esta biblioteca acabou de ser construída, não havia nada assim antes, é um recurso raro num bairro com poucos recursos, e pedimos um espaço aqui em cima até ao fim de 2010.

O ponto de partida de Terry foi perceber, nesses tais 30 cafés Internet, o que podia interessar às pessoas, quem eram elas, de que precisavam. E então, com a colaboração de urbanistas, cientistas sociais, web designers e activistas, desenhou estas duas redes, a real e a virtual, que se alimentam mutuamente.

Pior que os brancos

À entrada, há uma grande ardósia, onde as pessoas podem deixar mensagens. Quem está a chegar agora, por exemplo, é recebido por Godfrey Tshis, um dos jovens imigrantes que foram preparados para ajudar os visitantes.


- Sou da República Democrática do Congo - diz. Fala óptimo inglês, mas tem como língua materna o francês, o que é importante porque muitos imigrantes são francófonos.

Junto à ardósia há um computador com o site Hotel Yeoville. Terry abre janelas, para exemplificar: informação prática (casas, empregos, cursos, como fazer um C/V, leis e regulamentos, associações cívicas, igrejas e mesquitas, programação cultural, notícias), mas também histórias de vida, poemas, fotografias, vídeos, tudo criado ao vivo aqui.

Como? Terry avança por um corredor que de um lado tem painéis cheios de mensagens e fotografias em papel (amor, trabalho, estudo), e do outro lado tem cabinas individuais com computador (uma para vídeo, outra para fotografia, outra para histórias, e outra para marcar no mapa a origem de cada visitante).

O que cada um fabricar dentro das cabinas pode ser alojado no site, depois de passar pelos responsáveis do projecto, ficando ao dispor de todos. E isto, fazendo uso das ferramentas gratuitas que qualquer adolescente sabe usar: Facebook, YouTube, Flickr, Google Maps.

- É difícil arrancar as adolescentes daqui - diz Terry, junto a uma das cabinas ocupadas. Estão todas ocupadas. - Por exemplo na cabina de histórias, as melhores serão lidas na rádio e publicadas em livro. Há pessoas que passam aqui horas a escrever.

Como vagou o computador da cabina dos mapas, o sorridente congolês Godfrey mostra para que serve. Ao mover o rato, aparece um mapa-múndi com marcas em vários países, mas sobretudo em África.

- Todas estas marcas são de pessoas que estiveram aqui. E clicando em cada marca há uma história dessa pessoa.

Clica numa. Lê um título em inglês: - Relationsick.

Trocadilho entre relationship (relação) e sick (doença). É de alguém que diz que o amor da sua vida está em Xai-Xai, Moçambique.

Mais marcas: Nigéria, Chade, Congo, Zâmbia, Zimbabwe, Nova Iorque, Moçambique, Alemanha, França...

Godfrey veio sozinho de Kinshasa há dois anos. Agora está com 27. Estuda Ciência Política na Universidade de Joanesburgo.

- Vivo em Yeoville e trabalho com a comunidade congolesa, naquilo que são os direitos das pessoas. Foi assim que conheci a Terry. A língua é a primeira barreira. Os jovens que chegam são espertos, têm espírito de iniciativa e capacidades, mas por causa da língua é um problema ir para a universidade, e muitos perdem a esperança.

E depois em 2008 houve aquele pico de tensão, os ataques a imigrantes.

- É um problema sério, a xenofobia. Temos uma palavra, ubuntu, a unidade, o espírito colectivo. É uma tradição do que significa África, mas quando vimos de fora e encontramos os nossos irmãos, alguns tratam-nos pior que os brancos.

Medo e droga

Na cabina de vídeo, Megan Pillay faz uma pausa. É um adolescente negro de perfil tão achatado como se lhe tivessem esmagado a cara. Uma cara de gangster com 18 anos, com um gorro enterrado até aos olhos. E depois começa a falar, e fala de poemas.


- Escrevo poemas para fazer as pessoas sentirem-se melhor, mas às vezes gostava de eu próprio seguir o meu conselho.

Fala lentamente, impávido, como se o próprio corpo estivesse em pausa, e só a voz continuasse a mover-se. Não é difícil imaginá-lo a rebentar.

O governo de Joanesburgo investiu recentemente 17 milhões de euros na recuperação de Hillbrow, Berea e Yeoville: iluminação pública, pavimentos, jardins, casas de banho, parques de estacionamento e projectos como o desta biblioteca pública. Mas o centro de Hillbrow ainda está cheio de passeios partidos e lixo, bancas caóticas nos passeios e esquinas cheias de passadores de droga encostados às paredes ou a rondar.

Foi em Hillbrow, no meio de tudo isto, que este rapaz nasceu, e aos cinco anos veio para Yeoville, com a irmã mais nova e os pais. A mãe trabalha numa fábrica de alimentação, o pai é motorista, são cristãos. Megan vai à Igreja Pentecostal de Berea e usa um crucifixo. Quer ser contabilista.

- Gosto muito, e sou bom a matemática - diz ele, imóvel, hipnótico, no banquinho da cabina de vídeo.

Diz-lhe alguma coisa, o Mundial?

- Claro, estou entusiasmado com o Mundial, mas não estou satisfeito com a câmara. No prédio onde vivo às vezes não há luz. Mas consegui bilhetes para o primeiro jogo com o meu pai.

Será a estreia dele no estádio de Soccer City, lá para baixo, à beira do Soweto.

E viver aqui? Como é?

- Se temos medo, as pessoas vêem medo em nós. As pessoas aqui só roubam para droga. Esta zona está cheia de droga. Heroína, cocaína, crack a 20 rands um pedaço.

Dois euros.

- É o principal problema desta zona, Yeoville, Hillbrow, Berea. Berea está cheio de nigerianos. Chamam-lhe Lagos. O maior medo é ser forçado a tomar droga. Eu comecei aos 13, deixei aos 16, estou há dois anos e meio limpo.

O que tomava?

- Crack, heroína, Mandrax (comprimidos), dagga (haxixe)... Em Yeoville, em cada esquina há gente a vender dagga.

Muitos dos poemas de Megan são sobre isto. Ele sabe-os de cor. Pega no caderno da repórter e escreve:

"Cocaine

My name is cocaine

They call me coke for short

I have entered this country without a passport

Ever since then I have made a lot of scums rich

Some being murdered and found ditch

I am more valued than diamonds

And more treasured than gold

Use me once and you too will be sold"

Rotação de cama

Na cabina das histórias está Natasha Ndlovu, de 14 anos, trancinhas, linda. Veio com uma amiga, as duas cheias de cadernos de argolas, e de risos por tudo e por nada. Passam horas aqui. Hotel Yeoville é como ir à Net, mas melhor. Há coisas para fazer. Os rapazes deixam bilhetes.


- Isto ajuda os adolescentes a descobrirem-se, e as outras pessoas a saberem o que vai por dentro, o que te faz dor, o que te dá alegria, o que queres da vida, o que os outros podem fazer para te ajudar.

As pessoas chamam a esta zona da cidade Times Square. Uma Times Square da África pobre a tentar dar a volta.

Como é pobre, vê-se por exemplo num dos bilhetes deixados no painel de mensagens em papel:

- Rotação de cama. Turno da noite e turno de dia.

Uma jovem jornalista sul-africana em visita está perplexa. Não percebe o que é aquilo. Então alguém lhe explica que quem não tem sequer dinheiro para um quarto, aluga uma cama a meias. De dia dorme um, de noite outro. Também se fazia em Portugal.

Sabelo Sibanda. Mbali Mushwane. Patience Lukeso. Lorah Zondo. Gugulethu Ndlovu. Petros M. Ngubo. Godfrey Tshis. Megan Pillay. Natasha Ndlovu. Muitas partes de África, antigas e novas. O que têm em comum é Yeoville, Joanesburgo, África do Sul, mas só descobriram isso neste hotel que não é hotel.

A ideia de Terry resume-se a isto:

- Que aqui se sintam em casa.

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