Os pais e os filhos do indie celebraram a Primavera

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Algures entre o veraneante e o pós-industrial - o Primavera Sound é uma montra de tendências do mundo musical independente Ana Sofia Marques

Óculos com hastes coloridas e Wayfarer metidos na cara em plena noite. Um moço com mala Marc Jacobs verde fluorescente e um paninho a sair do bolso (não nos perguntem para quê). Mil outros rapazes e raparigas com calças justinhas, ténis brancos ou sapatos de pele impecáveis e cabelo milimetricamente despenteado. Uma convenção de "hipsters", de malta com gosto desmesurado pelo "cool"? Sim, mas também música. E em doses generosas: com 240 concertos para mais de 100 mil pessoas, a edição 2010 do Primavera Sound (entre 27 e 29 de Maio, em Barcelona, Espanha) reforçou o estatuto do festival como um dos maiores eventos indie do mundo.

Montado no Parc del Fórum, espaço junto ao mar algures entre o veraneante e o pós-industrial (há uma piscina natural, uma estrutura gigantesca com painéis solares), é uma montra de tendências do mundo musical independente.

Desde a primeira edição, em 2001, tem crescido, procurando misturar os pais do indie, velhas glórias, com os filhos e o sabor do momento amplificado por publicações como o "site" Pitchfork e a revista "Vice", não por acaso responsáveis por dois dos seis palcos principais. O bilhete para três noites pode custar até 180 euros, mas muitos espanhóis (e muitos estrangeiros) não se importam de os pagar e ver numas dezenas de horas mais concertos de topo do que veriam ao longo de um ano.

Prova de que o Primavera não é só um festival de música, mas uma plataforma para a afirmação de tendências noutras áreas. Não por acaso, a Ray-Ban, fabricante dos já referidos Wayfarer, patrocinou um palco gigantesco. À entrada, várias tendas vendiam t-shirts (dos Black Flag aos Real Estate) e vinil, muito vinil. Até a comida é indie: havia sandes com os nomes "Wilco", "Pixies", "The Fall" e outra iguaria chamada "Ket Shup Boys".

É um festival para jovens adultos (não contámos um único adolescente) e crescentemente internacional (a organização estima que 35 por cento dos festivaleiros sejam estrangeiros) - nas "ramblas" e no metro, é fácil descobrir alguém com a pulseira branca e as letrinhas mágicas "Primavera". É também um ponto de encontro da indústria, aspecto reforçado este ano com a abertura do PrimaveraPro, espaço destinado aos agentes do sector, das editoras às instituições culturais, e que incluiu concertos de banhas espanholas.

De horário na mão

Os três dias de Primavera são um quebra-cabeças. Há quem faça (e partilhe na Internet) tabelas com os horários dos palcos lado a lado, para melhor escolher o que vai ver e decidir se vê um concerto do início ao fim ou se abandona uma actuação, caminha 200 metros até outro palco para apanhar metade de outro.

Best Coast ou Thee Oh Sees? Broken Social Scene ou Tortoise? O "best of" dos Pixies ou o turbilhão Major Lazer, que misturaram Ace of Base, dubstep e as já de si mestiças canções de "Guns Don't Kill People... Lazers Do" e ainda puseram Skerrit Bwoy, o animador de serviço, a atirar-se para cima de uma moça? A pop electrónica dos espanhóis Delorean (dia 25 de Julho no festival Milhões de Festa, em Barcelos) ou a música de dança perspectivada pelos Fuck Buttons?

A sucessão de êxitos dos Pavement, glórias do rock independente dos anos 90, ou a pop em frangalhos dos Sleigh Bells, acabados de editar o maravilhoso "Treats"? Engolimos em seco e ficamo-nos pelos Pavement, de regresso aos concertos depois de um hiato de uma década. Aposta ganha: foi o melhor momento do festival. Stephen Malkmus e companheiros estão mais velhos do que nos cartazes espalhados pelo recinto, mas canções como "Range life" ou "Stereo" não perderam ponta da energia pós-adolescente. Com Pavement, Pixies, Built to Spill e Superchunk a darem nas vistas perante uma multidão, ficou patente que os anos 90 são um filão nostálgico em exploração.

Na quinta-feira, a noite dos Pavement, houve também Surfer Blood, esses sim, verdadeiros pós-adolescentes. Revelaram no palco Pitchfork o seu rock derivado dos Weezer e dos Vampire Weekend, com um vocalista convictamente beto. Na audiência detectámos um inacreditável "menino Tonecas", boné para trás, calções curtíssimos, óculos garrafais, com t-shirt dos Nirvana.

Os norte-americanos foram um dos exemplos claros da função divulgadora do festival, com boa parte do cartaz composto por novos nomes vindos, sobretudo, do outro lado do Atlântico.

Os Best Coast, misto de Ramones, "girl groups" e proclamações de amor à erva, deixaram boas pistas para o que vai ser o seu primeiro disco de maior exposição, "Crazy for You" (Julho). Em águas não muito distantes mergulharam as Dum Dum Girls, algures entre as Shangri-Las e uns Jesus and Mary Chain de saias, que contaram com um discreto Edward Droste, dos Grizzly Bear, na audiência.

Os Titus Andronicus transpuseram para o palco Pitchfork o cruzamento da euforia punk rock com a música tradicional irlandesa patente em "The Monitor" (2010), algo muito diferente do psicadelismo de baixa definição dos Ganglians e das canções simples e veraneantes dos Real Estate, que estiveram em Portugal há meses.

Ainda no lote das promessas, o destaque maior vai para The Drums, que ainda não lançaram o primeiro álbum (têm apenas um EP) e são já uma das certezas da pop independente em 2010. Foram conotados com a vaga de pop soalheira que marcou o indie em 2009 (têm culpas no cartório: chamaram ao EP "Summertime!" e o seu maior êxito - utilizado num anúncio de automóveis - chama-se "Let's go surfing"), mas, para além das "girl groups" e praias, quase omnipresentesem 2009, metem os New Order e alguns dos maneirismos vocais de Morrissey ao barulho. A confiança demonstrada em palco impressiona, sobretudo porque são uma banda formada no final de 2008: é quase garantido que 2010 vai ser (também) deles.

No palco Ray-Ban, os The xx cimentaram o estatuto de culto perante dezenas de milhares de pessoas (apesar de a sua música e postura, milimetricamente estudadas, não provocarem a empatia que outros grupos conseguiram) e os Broken Social Scene mostraram porque são uma das bandas definitivas do indie contemporâneo (e com a vénia dos veteranos: Kevin Drew, o vocalista, cantaria uma canção com os Pavement, umas horas depois). Os concertos dos Beach House e dos Grizzly Bear também permitiram confirmar que são candidatos naturais à presidência do actual indie rock.

Na noite de sexta-feira, Noah Lennox (Panda Bear) apresentou pedaços de "Tomboy", agendado para Setembro. Sem as projecções vídeo, que teimaram em não arrancar, sobressaiu a qualidade mais austera das novas canções do músico dos Animal Collective, que incluem um "sample" do que parece um estádio de futebol e mais batidas dançáveis do que no brilhante "Person Pitch".

Ao mesmo tempo, noutro ponto do recinto, Tim Harrington, o barbudo vocalista dos Les Savy Fav, filhos do hardcore, irrompia pela multidão para distribuir beijos na boca a homens e mulheres. Harrington - músico e fã - também cantou durante o concerto de Pavement, estremeceu com o ataque virulento dos Shellac e dançou Liquid Liquid na lateral dos palcos e ainda entrou numa canção dos Superchunk.

Se os nova-iorquinos ganharam o prémio de momento mais expansivo de todo o festival, Atlas Sound (actua hoje no Lux), projecto solitário de Bradford Cox, líder dos Deerhunter, protagonizou um dos mais calmos, todo ele contenção, guitarra acústica, harmónica e um músico completamente franco.

Foi de Cox - e de Michael Rother a passar pelo património dos eternos Neu! - o último fim de tarde do Primavera. Horas depois, era hora de regressar, descansar os pés e jejuar, por uns dias, de música ao vivo.

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