Duas sagrações para a mesma Primavera

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"Mesmo quem nunca viu acha que sabe o que é 'A Sagração da Primavera'", diz Olga Roriz, 55 anos, depois de um ensaio da sua releitura dessa peça fundamental do repertório clássico, que se estreia amanhã no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa. "Mas sobre o que é esta peça?", pergunta-nos, para logo a seguir responder que é sobre "uma guerra entre dois sexos". "Os homens decidem, ou às vezes não decidem nada, e nós esperamos que eles achem que sim para que fiquem contentes", ri-se a coreógrafa.
Dias depois, no Teatro Camões, faremos essa mesma pergunta a Cayetano Soto, 35 anos. Veio de Espanha para trabalhar com a Companhia Nacional de Bailado (CNB) numa outra releitura (mais uma, é uma peça inesgotável) da coreografia que Vaslav Nijinsky criou para a revolucionária partitura de Igor Stravinsky, com estreia já hoje no Teatro Municipal de Faro, como parte de um tríptico de homenagem aos Ballets Russes que inclui ainda "As Bodas" e "Fauno": "Há tantas opiniões que eu deixo em aberto. Mas todos acham que têm direito a tudo, ainda hoje".
Com um dia de diferença, vamos poder assistir a duas versões radicalmente diferentes da "Sagração", assinalando, não por coincidência, os 97 anos que passam sobre a estreia da peça original, em Paris, a 28 de Maio de 1913. Não é uma peça qualquer: tornou-se muito rapidamente o ex-libris dos Ballets Russes, a companhia dirigida por Diaghliev que mudou, para sempre, a história da dança. No centro, uma eleita, oferecida aos deuses por adoradores em estado de delírio; símbolo do sacrifício, mas também de resistência, de entrega e de abnegação. Quando se estreou, com o subtítulo "Quadros de uma Rússia Pagã", "A Sagração da Primavera" marcou uma ruptura na noção de movimento. Os corpos revolviam-se, viravam-se de costas para os espectadores, os pés metidos para dentro, a bacia exposta, os braços aparentemente sem ligação ao tronco. Nijinsky inaugurava ali uma violência física que deixava os corpos exangues, e cujas influências chegaram a praticamente todos os coreógrafos, de Martha Graham a Pina Bausch, de Maurice Béjart a Mats Ek, de Raimund Hoghe a Jérôme Bel. E, agora, de Olga Roriz a Cayetano Soto.
Com e sem metáforas
Aquilo que vimos nos estúdios das duas companhias, a semana e meia da estreia, não podia ser menos próximo. 
O estúdio da Companhia Olga Roriz, na Rua da Prata, em Lisboa, recentemente inaugurado nas antigas instalações da seguradora Tranquilidade, é mais pequeno do que o palco do Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, mas os 20 bailarinos que compõem o elenco de "A Sagração da Primavera" parecem não dar disso conta. 
Jácomo Filipe, o "Sábio", atravessa-o com os seus braços gigantes e domina o espaço dando o corpo e o tom à coreografia. É ele quem inicia este ritual. Silêncio. Depois entram os outros, em massa, eles vestidos ainda com roupas provisórias, algumas delas já com os fatos de cena. Os bailarinos vão tomando conta do palco, vemos uma companhia de dança a dançar, a esgotar-se nessa dança, a mover-se por blocos, indiferente às regras tribais; a fazer sua a partitura de Igor Stravinsky, libertando-a da matemática musical, criando a sua própria lógica. É a coreografia que se impõe ao resto. O estúdio está vazio, tal como estará o palco. Ainda há tempo até à estreia, mas a peça está pronta.
No Teatro Camões, a história é outra. O palco parece ainda maior quando os bailarinos da CNB, dirigidos pelo espanhol Cayetano Soto, se dispõem numa fila vertical, envoltos numa malha crua que lhes retira as formas. Fixam o lado oposto da cena e, compassadamente e em silêncio, atravessam-no sem grande emoção. Sobre as suas cabeças pende uma rede com pedras cenografadas. A aridez do movimento, a sua quase ausência, marca o prólogo da "Sagração". Muitas coisas continuam por acertar, final incluído.
"A história que existe [para trás], e o seu peso, não influenciaram em nada o que queria fazer", diz Soto, que foi bailarino de Nacho Duato e integrou o elenco do Balleteatro de Munique, onde fez grande parte da sua formação, antes de começar a coreografar. Nadja Kadel, a dramaturgista, escreve no programa que "hoje em dia, quase qualquer pessoa se pode tornar numa vítima e os contextos sociais do sacrifício são infinitos - família, trabalho, igreja, política, guerras, etc. - e, mesmo assim, já não existem certezas acerca da absolvição."
É uma versão carregada de significado, mesmo que esse significado seja altamente metafórico. Contrasta grandemente com a visão de Olga Roriz: "Há algo sobre os pequenos sacrifícios que todos nós fazemos para satisfazer outros desejos, mas o que eu queria, no fundo, e sem floreados nem metáforas, era trabalhar ao nível do movimento. Como é que, coreograficamente, podia colocar 'aquilo' de forma minimamente clara em palco?". 
Os bailarinos de Roriz entram com espigas, os de Soto trazem pedras. As espigas serão abandonadas no palco. As pedras serão atiradas com raiva contra o palco. Os primeiros darão forma, através do movimento, a uma paisagem limpa de metáforas. Os segundos cumprirão uma ideia prévia, procurando que o movimento responda a essa ideia. Soto carrega na intenção, Roriz liberta o movimento. Com ela, os corpos descobrem um prazer que não é apenas intuitivo, mas sobretudo orgânico. Com Soto, os corpos são afectados (e limitados, talvez até diminuídos) pela densidade psicológica da dramaturgia. 
Jogos de forças
A amargura de Soto contrasta com a esperança de Roriz. E isso tem tudo a ver com o modo como se olha para o legado da "Sagração". Soto: "Interessa-me o significado da 'Sagração' nos dias de hoje. Tentei esquecer a música, por ser tão complexa. Trabalhei muitas vezes a favor da música e outras vezes contra ela. Por vezes acho que esta música não precisa de uma coreografia." Roriz: "A minha musicalidade não é muito óbvia. Às vezes acentuo antes do acento, outras vezes para além do acento, ou em cima do acento." Cesário Costa, o maestro que dirige a OrchestrUtopica e a Metropolitana nesta versão, sublinha que as respirações criadas por Roriz dão ainda mais corpo à partitura.
A coreógrafa assume que esta peça é "quase uma lição" sobre o seu movimento. No modo como eles e elas se organizam numa massa, evoca outras peças ("As Troianas", "Isolda", "Pedro e Inês")": "Revejo um pouco tudo o que está para trás. Limitei-me, no bom sentido, a passar por estes corpos com a minha dinâmica, a minha história, e a deixá-los respirar. É um trabalho físico antes de ser de memorização. De saber de onde vem aquele movimento. Parece um espanejar de braços, mas vem das costas, vem de dentro", diz.
Soto coreografa, à maneira alemã, em cima de uma dramaturgia prévia. "Para mim, a 'Sagração' é a natureza humana. Até os piores assassinos têm uma luz interior, eu quis trazer essa luz para fora, mostrá-la. Queríamos uma versão que estivesse ligada aos dias de hoje. Acho importante regressar aos clássicos e adaptá-los". É justamente por isso, que, entre os quadros "Adoração da Terra" e "Sacríficio", surge uma bailarina prostrada à boca de cena, com um saco na cabeça, recorda as agressões em Abu Grahib. "É a imagem da vitimização do século XXI", diz a dramaturga da peça, "mas não queríamos fazer uma peça política". 
Olga Roriz não andou à procura de significados novos. "Foi-me suficiente aquilo que lá está. Não por receio de criar algo diferente. Se quisermos, tem tudo a ver com os nossos dias, mas isto ou estava dentro de mim ou não estava. Quando cheguei ao estúdio, com tudo escrito para cada uma das cenas e com aquilo a que queria dar mais ênfase em cada uma delas já na minha cabeça, só precisei de três semanas para ter a peça. Foi um jogo de forças, uma coisa muito física".
Uma polémica nos bastidores
Num país com fraca tradição na montagem de "A Sagração da Primavera" (Carlos Trincheiras, CNB, 1984; Millicent Hodson e Jeffrey Harchey, CNB, 1994 e 2006; Marie Chouinard, Ballet Gulbenkian, 2003), é curioso que se assista agora, num mesmo fim de semana, a duas estreiam que estiveram para ser uma. Olga Roriz e Vasco Wellenkamp, director da CNB, acusam o toque.
Roriz: "Não acho que seja um direito natural, mas considerando o meu percurso com a CNB, era lógico fazer isto com eles. Propus ao Vasco [final de 2007], que me disse não haver dinheiro e me falou-me na 'Sagração' da Pina Bausch. O que não fazia muito sentido, porque devia ser muito caro trazê-la".
Wellenkamp: "Não acho que exista melhor versão da 'Sagração' do que a da Pina. Está lá tudo. Andei um ano a tentar convencê-la a dá-la à companhia, sermos nós a fazê-la. Ela não disse logo que não. Mas depois recusou."
Não houve a "Sagração" de Pina Bausch. E às tantas Wellenkamp soube que Olga Roriz ia fazer a peça no CCB: "O programa já estava decidido, não havia hipótese de integração." Roriz acha a duplicação "um disparate": "É mau para todos, até para o país, em termos de gastos."
Entretanto, Wellenkamp propôs ao espanhol Cayetano Soto, depois de assistir a uma peça do coreógrafo em São Paulo, que viesse conhecer a CNB e que pensasse em algo para integrar o programa dedicado aos Ballets Russes.
Roriz: "A minha peça não tem futuro aqui. Foi um esforço financeiro enorme e as datas previstas não pagam os meses de espera. A minha esperança é que, num futuro, a CNB compre a peça". Pode acontecer, admite Wellenkamp: "Se eu continuar na CNB, e a Olga estiver disposta a isso, admito a hipótese de falarmos na integração  da peça no repertório da companhia". T.B.C. 

"Electra", de Olga Roriz 

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