A série-ícone da era Bush chegou ao fim na noite de segunda nos EUA. Já no ano passado perguntávamos como ia dar-se, na idade de Obama, a ideologia do vigilante que não olha a meios para atingir os seus fins. "24" durou duas temporadas sob a alçada do Presidente Obama e terminou satisfazendo a crítica depois de oito épocas de extremos - na ideologia, nos truques, nas reviravoltas mirabolantes.
Tal como a muito falada "Perdidos", "24" (às quartas na RTP2 e, no cabo, no Fox Crime) pertence a uma geração de séries de formato viciante e repleta de nacos de moralidade para gerar discussão. Ao longo dos seus nove anos de vida fez isso mesmo: gerou protestos do Exército americano pela ênfase dada à tortura, encaixou-se numa década em que se enchia e depois se prometia fechar Guantánamo, reflectiu os riscos do Patriot Act e do "profiling" racial, fez eco dos abusos em Abu Ghraib e criou um ícone disputado tanto pelos democratas quanto pelos conservadores. E, claro, junto dos espectadores gerou um avatar todo-poderoso numa era de conflitos intangíveis.
Secretamente
Recuemos até 2001. Desde o início do ano preparava-se uma série para a Fox sobre um agente contraterrorista. Data de estreia: Novembro. A 11 de Setembro, o mundo mudava. Kiefer Sutherland, o actor cuja carreira foi relançada por "24", sentia-se a mais inútil das criaturas. "Durante três semanas, se não éramos médicos, polícias, bombeiros, enfermeiros e se não podíamos ajudar fisicamente, sentíamo-nos imbecis naquilo que estivéssemos a fazer", contou há dias à "Entertainment Weekly". Era isso que o preocupava quanto à estreia de 24 no pós-11 de Setembro - não o tema, nem o timing. Que foram, assinala ao P2 Robert Thompson, director do Centro Bleier para a Cultura Popular e Televisão da Universidade de Syracuse, adequados da forma mais inesperada e subconsciente.
"De repente, os cidadãos americanos têm de, muito rapidamente, tomar consciência do que significa o terrorismo", diz. "Estávamos habituados a uma ideia: temos uma guerra com a Alemanha, lutamos e ganhamos; temos uma guerra com o Japão, lutamos e ganhamos. Grandes guerras contra nações. Acontece uma coisa destas e quem se bombardeia?"
E em Novembro chegou "24", "a série perfeita para uma guerra em que não há vitória real, em que não há uma sensação de que os bons estão a vencer os maus. Se não o vemos a acontecer na CNN, vamos precisar disso na ficção", explica. "Se não estávamos a dar cabo do inimigo na vida real, pelo menos o Jack Bauer fazia-o na ficção." E é este o ethos cultural da era Bush em "24", da era do inimigo invisível e da raiva inconfessável. 24 "é esta combinação deliciosa de poder ver alguém a fazer algo na ficção que todos queremos secretamente fazer, mas que nunca poderíamos aprovar", diz Thompson.
Hollywood a caminho
Mas agora já não vemos a guerra na CNN - no fundo, já nem vemos a CNN. A rapidez da edição, a claustrofobia dos cenários e a urgência do tiquetaque do relógio, aliados aos inimigos (primeiro sobretudo árabes, dando emprego aos actores mas esterotipando-os, depois americanos, russos) e aos presidentes (perfeitos, corruptos, frágeis) garantiram a 24 a uma audiência média de 11 milhões nos EUA. Mas, no final, já só oito milhões os seguiram.
O formato e a personagem de sete (ou oito) vidas chegaram ao fim. Mas estará a América mesmo farta? O desejo de esquecer os distantes Afeganistão e Iraque põe os vigilantes solitários como Bauer na prateleira? Robert Thompson acha que não. "Vêm aí mais Jack Bauers, mas não serão Jack Bauers. A América ainda não está farta de renegados, do lobo solitário que manda as regras às urtigas e faz o que tem de ser feito."
John Rambo precisa-se, perguntamos? "Chamemos-lhe Jack Bauer, A-Team (Soldados da Fortuna), John Rambo ou Lone Ranger - ou ainda Robin dos Bosques... Há uma tal necessidade humana, em tempos bons e maus, de personagens destas", remata Thompson, que elas não desaparecerão. E, epílogo, nem Jack Bauer desaparecerá por muito tempo - há um filme "24" planeado para Hollywood.