Quando eles eram jovens, bonitos e estúpidos
Fechados numa vila do Sul de França, os Rolling Stones gravaram Exile on Main Street. No momento da reedição do disco, surge um documentário com imagens de arquivo, que Cannes viu
Foi em 1971, estavam satisfeitos sexualmente, filosoficamente até iam tentando, mas financeiramente couldn"t get no satisfaction. E, sem dinheiro para pagar os impostos que deviam, os Rolling Stones tornaram-se príncipes debochados da evasão fiscal, deixavam as suas casas inglesas, o chá e o leite (a sério, eram consumidores...), e exilavam-se no Sul de França. Onde gravaram Exile on Main Street, um back to basics impregnado de gospel, blues, country e soul a disparar em várias direcções, fechados numa bolha de decadência numa villa em Villefranche-sur-mer. Enquanto lá fora... O que se passava lá fora resumiu Mick Jagger no palco da Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, tarde de quarta-feira, corpo franzino empinado sobre ténis como sobre andas: "Nixon estava na Casa Branca, o Vietname continuava, Eddy Merckx ganhava a Volta a França. Nós também não sabíamos nada do que se passava, estávamos fechados numa villa a gravar este disco." Com amigos, músicos, mulheres, amantes e filhos.
Antes da escuridão
Mesmo ao lado, o Festival de Cannes desse ano mostrava Gimme Shelter, documentário de David e Albert Maysles sobre a tournée americana dos Stones, com destaque para o concerto de Altamont e a sua faísca de violência que acabou com a década das flores, da paz e do amor.Agora a Quinzena dos Realizadores mostrou Stones in Exile, documentário de Stephen Kijack que é ainda sobre "esse momento de graça antes da escuridão", como alguém diz no filme.
Mas vamos esclarecer: Stones in Exile não é o retrato de uma época que acabava, como era o extraordinário Gimme Shelter, nem sequer é um retrato dos Stones - e uma e outra coisa será Cocksucker Blues, que o fotógrafo Robert Frank rodou durante a tournée de Exile on Main Street, depois de ter concebido a capa do disco, e que Mick Jagger e os companheiros interditaram, incomodados com o sex, as drugs e o rock"n"roll (depois de batalhas judiciais tornou-se um filme visto com dificuldade ao longo do tempo).
Sobre esse filme, Jim Jarmusch sentenciou: "Definitely, one of the best movies about rock"and"roll I"ve ever seen... It makes you think being a rock"and"roll star is one of the last things you"d ever want to do." Isso nunca dirá sobre Stones in Exile, produção do próprio grupo, feita para sair, em DVD, com a actual reedição remasterizada e com inéditos do álbum. Coisa oficial, que areja os arquivos que os Stones têm fechados a sete chaves. Quanto ao facto de uma estrela de rock ser a última coisa no mundo que poderíamos querer ser, depois de se ver Mick Jagger no palco da Croisette, 67 anos, a coisa resulta relativamente benigna. Ele quis dizer, com bonomia, que é possível sobreviver.
Claro que o filme não podia ignorar as drogas. Não seria possível, pois se até o cozinheiro daquela villa do Sul de França, Fat Jack, era um junkie que incendiou a cozinha... Pois se até há um miúdo, que com a família pertencia à entourage dos Stones na Côte d"Azur, a lembrar-se de que o seu papel foi o de "enrolar charros" e que o pai era o tipo que trazia a coca... Pois se até Anita Pallenberg, manequim que na altura era a companheira de Keith Richards, se recorda de se ter assustado quando encontrou um desconhecido no sofá da sala com um carregamento de heroína (o que ela fez não fica claro).
Poesia cósmica
Sobre a construção de um disco, ficamos a saber o que já se sabia, que tinha sido caótico, que não havia direcção e que, em última instância, essa ausência de direcção tornou o duplo álbum de consumo menos imediato mas mais duradouro. Mas era um caos com regras, a coisa teria uma certa poesia cósmica: não havia horas para trabalhar, tanto podia ser ao meio-dia como à meia-noite, começavam a tocar mal, a seguir Keith Richards olhava para Charlie Watts, depois Bill Wyman levantava-se do chão, e eis que começava "a música dos deuses". E Fat Jack na cozinha...
Um dia acabou, tiveram de fugir para Los Angeles e acabar ali o disco, porque arriscavam-se a ser todos presos.
O problema com Stones in Exile é que o grupo já contribuiu com mais do que seria exigível com a sua quota parte de documentários fabulosos. Falta mencionar One Plus One, de Jean-Luc Godard, sobre o nascimento de Simpathy for the Devil e sobre outras coisas ("um bom filme, mas Godard deveria explicar de que é que se trata", dizia Jagger). Mas as imagens de arquivo são belíssimas. Os Stones eram realmente "jovens, bonitos e estúpidos", palavras de Mick Jagger, que acrescentou: "Agora somos só estúpidos."