Nasceu a primeira forma de vida artificial

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As colónias das primeiras células sintéticas parecem diminutos ovos estrelados azuis J. Craig Venter Institute

Na fotografia, as colónias de células, com uns 70 micrómetros de diâmetro, parecem diminutos ovos estrelados com a gema azul. Graças a isso, sabemos que não estamos a olhar para uns microrganismos quaisquer, mas para as bactérias criadas por cientistas no laboratório. Vida artificial, fabricada de raiz num pratinho de vidro, a partir dos seus componentes genéticos elementares.

A nova bactéria foi feita “a partir de quatro frascos de compostos químicos”, gosta de repetir Craig Venter nas entrevistas que tem concedido à imprensa (sob embargo) nos últimos dias. Com os seus colegas, o conhecido “caça-genes” norte-americano acaba de inaugurar oficialmente a “era da biologia sintética”. Cada um desses quatro “frascos”, entenda-se, contém uma das "letras" do "alfabeto" com que se escreve o ADN – A, T, G, C –, as moléculas de base que compõem esse grande livro da vida genético.

A equipa do J. Craig Venter Institute, EUA, já tinha anunciado várias vezes o que vinha aí. Mas na realidade, a sua saga, que começou há mais de 15 anos e custou 40 milhões de dólares, foi pautada, sobretudo desde 2007, por episódios muito excitantes – e também por obstáculos que fizeram os autores temer o fracasso. “Demorou muito mais tempo do que poderíamos ter imaginado”, salienta Venter.

Mas já está – e o nascimento desta primeira forma de vida artificial ficará registado para a posteridade nas páginas da edição de sexta-feira da revista Science (e na Web, desde hoje). “Esta é a primeira célula sintética jamais fabricada”, afirma Venter, “e dizemos que é sintética porque a célula é totalmente derivada de um cromossoma sintético.”

Peças de lego

Em 2007, a equipa mostrou que era possível transplantar o genoma de bactérias de uma espécie para bactérias de outra espécie semelhante e fazer com que a segunda mudasse de espécie, adquirindo a da primeira – isto é, trocasse a sua própria identidade pela do seu novo ADN. No ano seguinte, conseguiram sintetizar na íntegra o genoma de uma bactéria.

Bastava agora, para criar um ser vivo artificial, combinar as duas coisas. Assim obter-se-ia uma bactéria cujo ADN fora retirado e substituído por um ADN diferente – e desta vez, completamente fabricado pelos cientistas. Esperava-se que esta bactéria se comportasse como um ser vivo natural, usando o ADN sintético como património genético para se reproduzir.

Uma primeira dificuldade técnica foi simplesmente o facto de não existir tecnologia que permita construir moléculas do tamanho do ADN, composto pelo encadeamento de centenas de milhares de pares de bases A, T, G, C. Ora, o ADN da bactéria utilizada nas experiências, Mycoplasma mycoides, contém mais de um milhão de pares de bases.

Os cientistas começaram por comprar a uma empresa especializada os cerca de 1000 bocadinhos, cada um com uns 1000 pares de bases, que constituem esse ADN bacteriano. Recorda Venter: “Foi como ter uma caixa de peças de lego e ter de as montar.”

Introduziram as peças dentro de leveduras (uma máquina natural de desfiar ADN) e obtiveram peças mais extensas; a seguir, introduziram-nas dentro de bactérias Escherichia coli e sintetizaram cadeias ainda maiores – antes de as voltarem a pôr dentro de leveduras. No fim, tinham um genoma inteiro de Mycoplasma mycoides, totalmente fabricado no laboratório.

Contudo, o ADN sintético era um pouco diferente do ADN natural de Mycoplasma mycoides, porque entretanto os cientistas tinham eliminado 14 genes potencialmente patogénicos (para as cabras) e acrescentado várias “marcas de água” – sequências de letras do ADN facilmente reconhecíveis como artificiais: um sítio de Internet, os nomes dos elementos da equipa e várias citações famosas, “para dar um toque mais filósofico à coisa”, frisa Venter.

Um bug microscópico

Mas o mais difícil foi fazer com que o novo ADN funcionasse dentro das células hospedeiras – e de facto, da primeira vez que os cientistas introduziram, esperançados, o genoma sintético nas células da bactéria Mycoplasma capricolum... nada aconteceu. Tal e qual especialistas de software, a equipa andou durante três meses a fazer debugging do código do ADN, explica um artigo jornalístico que acompanha a publicação na Science. Finalmente descobriram, há cerca de um mês, que o que estava a empatar tudo era um erro numa única letra do código! Os ovos estrelados com gema azul começaram a proliferar.

Nem toda a gente concorda em dizer que a nova bactéria é totalmente sintética, uma vez que foi preciso introduzir o ADN artificial dentro de uma célula viva já existente. Mas isso não impede os especialistas ouvidos pela Science de saudarem os resultados. Venter, quanto a ele, não tem dúvidas de que a bactéria seja totalmente sintética: “Após algumas replicações, não resta absolutamente nada de M. capricolum nas novas células”, argumenta. Novas células que produzem unicamente – e da forma mais natural do mundo – proteínas específicas de M. mycoides.

Por enquanto, o processo não é eficiente. Mas as aplicações futuras podem ser coisas como a criação de algas produtoras de petróleo (Venter já tem um “grande contrato” com a Exxon) ou que reduzem “em 99 por cento” o tempo de fabrico das vacinas contra a gripe sazonal (em colaboração com a Novartis).

Nota: a notícia e a legenda da imagem foram corrigidas no dia 9 de Junho de 2010 às 15h35 na sequência de um comentário enviado por um leitor.
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