Estaline ainda pesa sobre a verdade da História
A figura de Estaline continua a dividir a Rússia. A polémica sobre as efígies em sua honra ensombrou especialmente as celebrações deste ano do Dia da Vitória na II Guerra Mundial. O passado soviético é um assunto mal resolvido. Como mostrou também a comissão da verdade histórica criada faz hoje um ano. Por Ana Dias Cordeiro
O título podia ter sido "Comissão da Verdade Histórica" mas o Presidente russo Dmitri Medvedev preferiu um nome "orwelliano" que assustou historiadores e académicos. Chamou-lhe "Comissão contra as tentativas de falsificar a História que subvertam os interesses da Rússia". Nos dias seguintes ao anúncio de Medvedev, há exactamente um ano, jornais independentes e blogues encheram-se de títulos reflectindo a indignação perante "uma comissão contra a História", sintoma de "um novo fascismo" num "Estado construído sobre mentiras".
Muitas páginas se escreveram sobre um temido regresso ao passado e a um controlo da investigação histórica e académica pelo Governo, próprio do regime totalitário soviético. Fora da Rússia, um jornalista russo denunciou a "Ordem aterrorizadora de Medvedev".
Um ano de trabalhos da comissão não comprovou os piores receios, dizem duas investigadoras russas ao P2. A comissão servia "como instrumento de luta" no palco das relações externas mas também, internamente, para "promover a visão do Estado sobre o passado soviético", explica a historiadora Olga Velikanova, professora associada de História da Rússia na Universidade do North Texas, numa entrevista por email. "Não se vêem resultados concretos da comissão", completa a politóloga Maria Lipman, directora da publicação Pro et Contra do Carnegie Moscow Center, por telefone. Ambas, porém, reconhecem obstáculos criados ao trabalho de investigação na Rússia.
Vaticinou-se, há um ano, que os dois temas a serem tratados prioritariamente por uma comissão "certamente muito poderosa" seriam, por um lado, a visão da Ucrânia da fome de Holodomor de 1932-33, de que se tratou de "um genocídio intencional" por ordem de Estaline, e, por outro, a ocupação dos países bálticos pelas tropas soviéticas em 1940. Mas também as relações com a Polónia, dividida e ocupada pela União Soviética, e, neste capítulo, a execução em 1940 de 20 mil prisioneiros de guerra, oficiais e intelectuais polacos, por ordem de Estaline, em Katyn, e que a propaganda soviética atribuiu às forças nazis.
"[Quando foi criada a comissão] instituições académicas e de investigação receberam instruções para relatarem exemplos de falsificação da História. Os historiadores não as levaram a sério. Ou ignoraram a ordem ou brincaram com ela", recorda Lipman. "Isto não é a União Soviética e não penso que o Governo possa forçar historiadores a comprometer o seu conhecimento académico e fazer algo em que não acreditam", relativiza.
Doze meses passados, a poeira assentou. Mas a comissão continua a existir para "lutar pela verdade histórica", como disse Medvedev há um ano. Continua a ser um sinal da dificuldade do país em olhar para o seu passado. E a lembrar que as recentes iniciativas do Presidente russo, relativamente à Polónia, por exemplo, não diluem as divisões que existem sobre Estaline, secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética (entre 1922 e 1953, ano da sua morte).
A polémica foi recentemente reavivada pela intenção da Câmara Municipal de Moscovo de colocar em pontos visíveis da capital efígies de Estaline para as comemorações do Dia da Vitória, numa demonstração de admiração pelo ditador de dimensão não vista desde 1961.
No fim de uma longa disputa com organizações de direitos humanos, a câmara liderada por Iuri Lujkov acabou por colocar retratos de Estaline em apenas alguns pontos da cidade, sob pretexto de que poderiam ser vandalizados. O Kremlin não tomou publicamente posição sobre o assunto, mas Medvedev lembrou que a vitória na II Guerra tem, na Rússia, um reverso de tragédia.
A polémica das efígies foi a ponta visível de um emocionado debate. Membros do Partido Comunista e veteranos de guerra insistem que foi Estaline quem libertou a Europa do nazismo, no fim de uma guerra que causou 26,6 milhões de perdas soviéticas, entre militares e civis. E a iniciativa da Câmara de Moscovo segue uma tendência recente, desde que mais de uma dezena de estátuas de Estaline foram erguidas para se juntar às cerca de 200 já existentes na Rússia, refere a Spiegel. A revista alemã dá como exemplo um grande cartaz em honra de Estaline erguido junto a uma estação de metro do centro de Moscovo.
Um dia antes das comemorações do 65.º aniversário do Dia da Vitória, Medvedev mostrou que se opõe a essa visão. "A guerra foi ganha pelo nosso povo e não por Estaline", disse o Presidente numa entrevista ao diário Izvestia. "Estaline cometeu crimes em massa contra o seu povo. Apesar do seu trabalho, dos sucessos alcançados, o que fez ao seu povo não pode ser perdoado."
Em Outubro, Medvedev já tinha evocado "a catástrofe nacional da repressão estalinista" para condenar as vozes que ainda hoje se erguem para "justificar as mortes em nome dos objectivos supremos do Estado". Causou surpresa ao assumir claramente o descontentamento face às tentativas de relativizar os crimes de Estaline, como disse então. Falou inequivocamente, mas não sem esquecer a sua inquietação com as visões da História que, no sentido oposto, diabolizam Moscovo nas histórias contemporâneas da II Guerra e que, para ele, justificaram a criação da comissão da verdade histórica há um ano.
Os dois gestos de Medvedev "reflectem a controvérsia" na Rússia, diz Olga Velikanova. "A sociedade ainda não resolveu o seu passado traumático. Não há consenso sobre o legado de Estaline", sublinha.
"A vitória sobre a Alemanha foi uma grande vitória, a maior vitória. Mas é muito difícil separá-la do papel de Estaline enquanto comandante-chefe", acrescenta Maria Lipman.
Identidade nacional
O tema reavivou tensões e controvérsias com os países bálticos, Ucrânia e Polónia, face às suas próprias visões da História, no ano passado, quando se comemorou outra efeméride - o 70.º aniversário do início da guerra. "As tentativas desses países de construir uma identidade nacional com base na vitimização provocaram diferentes tipos de respostas por parte da Rússia", conclui Maria Lipman. A criação da comissão foi uma dessas respostas.
"A comissão dava um sinal aos historiadores e media russos sobre a posição que deviam tomar" face à contestação, por parte da Polónia, Estónia, Letónia e Lituânia, da visão soviética de que não tinham sido libertados, mas sim ocupados por Moscovo, completa Velikanova. "Como esses países invocam, à libertação de um regime ditatorial (nazi) seguiu-se a violência e a imposição de outro regime ditatorial (soviético)", conclui.
A acentuar a polémica, essa posição da Polónia e dos bálticos foi apoiada, em Julho de 2009, por uma resolução da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação Europeia) a equiparar as responsabilidades dos regimes nazi e soviético, dando argumentos às organizações de direitos humanos, para quem honrar Estaline na Rússia equivale à impensável possibilidade de ver a Alemanha honrar Hitler.
"Percebo esta resolução. De um ponto de vista mais teórico, estamos a falar de dois regimes totalitários horríveis do século XX. É fácil dizer que um é tão mau como o outro. O problema é que Estaline, no seu regime, levou a Alemanha à derrota e à humilhação", continua Maria Lipman. "O regime totalitário de Estaline era desumano, matou milhões de cidadãos, mas não perdeu o seu país nem a guerra."
Perante os sucessos soviéticos, o lado negativo da História foi esquecido. Estaline nunca foi condenado, nem levado a julgamento. E certamente não o seria pelo seu próprio povo, diz o historiador Nikolai Svanidze à revista Spiegel.
Uma ordem de Putin?
Aos olhos de analistas, a formação há um ano da comissão da verdade histórica pareceu ser mais uma política do primeiro-ministro Vladimir Putin (do que de Medvedev). Em 2008, Putin suscitara outra polémica ao introduzir nas escolas um manual de História para incutir o sentido patriótico nas novas gerações e em que o Grande Terror dos anos 1930 é apresentado como resultado de "Estaline não saber quem representava uma nova ameaça". Este é um tema que divide Presidente e primeiro-ministro.
"Não há provas para afirmar que foi Putin, nem maneira de saber de quem foi a iniciativa de criar a comissão e se houve influência do primeiro-ministro. O que se passa entre os dois homens, os mais importantes decisores políticos na Rússia, não é aberto ao público", insiste Maria Lipman. "Tecnicamente é uma iniciativa presidencial, claro. Medvedev é o presidente da comissão e o comandante-chefe das Forças Armadas."
Certo é que um e outro olham para o passado soviético de forma diferente. Diz Nikolai Svanidze: "Medvedev está também a usar a discussão à volta de Estaline para aparecer ele próprio como um político ideologicamente distinto de Putin." E não tem dúvidas: "A visão negativa que tem de Estaline corresponde à sua profunda convicção."
Por outras palavras: não é encenada para fins políticos.
Até porque o tema divide. Um terço dos russos considera que Estaline foi um sanguinário; o outro terço pensa que ele foi um grande líder; e o outro terço não tem opinião, nota Maria Lipman.
Putin, por sua vez, não sendo um estalinista, é visto por intelectuais como usando métodos estalinistas, acrescenta Nikolai Svanidze à Spiegel. O seu passado, ligado ao ex-KGB (serviços secretos), tornou-o uma peça fundamental na defesa de uma posição que preza o papel de Estaline ou que, pelo menos, institui a posição de Estado e na discussão pública de que ele "não é culpado", diz Velikanova.
Balanço inconclusivo
Um ano depois pouco há a dizer de balanço de uma comissão que se reuniu duas ou três vezes apenas. Mais notados, nos últimos meses, foram os gestos de aproximação de Moscovo a Varsóvia, por parte de Medvedev e do primeiro-ministro Vladimir Putin. Sobretudo depois da morte do Presidente polaco Lech Kaczynski, carregada de simbolismo, quando o avião em que seguia, para participar na homenagem às vítimas do massacre de há 70 anos, caiu em Smolensk, perto de Katyn, a 10 de Abril. O desastre ficou para a História como a segunda tragédia de Katyn e acelerou passos que começavam a ser dados para apaziguar a tensão entre os dois países.
Pela primeira vez, e a convite do primeiro-ministro russo, uma homenagem às vítimas dos massacres de Katyn juntou líderes dos dois países, Putin e o primeiro-ministro polaco, Donald Tusk. Putin não pediu perdão, mas condenou os massacres e a mentira (de que tinham sido perpetrados pelos nazis) que durou décadas. "Não temos o poder de mudar [o passado], mas podemos repor a verdade e a justiça históricas. Ninguém deve atribuir a mentira ao povo russo", referiu Putin, responsabilizando o "lado desumano de um totalitarismo" pela execução dos oficiais polacos e de "milhares de mártires soviéticos".
Noutra iniciativa inédita recente, Moscovo entregou à Polónia documentos relativos à investigação criminal, arquivada em 2004, ao massacre de Katyn. Já no fim de Abril, também por ordem de Medvedev, tinham sido colocados on-line, pela primeira vez, documentos mantidos secretos durante mais de meio século sobre as ordens de Estaline para a execução dos oficiais polacos em Katyn.
Nacionalistas russos apressaram-se a duvidar da autenticidade dos documentos e falaram na possibilidade de serem forjados. Seja como for, conclui a historiadora Olga Velikanova, "este foi um passo importante para o debate público na Rússia".