Ambos primeiros-ministros, ambos Presidentes, mas dois estilos diferentes
O Presidente da República diz que se quer "distinguir dos outros". Afirmou-o aos jornalistas, na sexta-feira passada, em Peniche, quando cumpria mais uma jornada dos seus roteiros das Comunidades Locais Inovadoras. Desta vez dedicada ao mar. "Digam o que disserem, eu entendo que devo fazer o possível para contactar os portugueses, ouvi-los, dar-lhes voz e, neste momento, dar-lhes estímulo", acentuou ainda. Ironia da história (ou talvez não), Mário Soares não disse coisa muito diferente quando, em 1993, decidiu escolher a Área Metropolitana de Lisboa para fazer uma das suas Presidências Abertas e que tanto irritou Cavaco Silva. "Dando voz aos que, por nunca terem sido ouvidos, têm uma verdadeira avidez de falar", explicou então Soares.
A iniciativa não era inédita. Logo no seu primeiro mandato, em 1986, Mário Soares arrancou com as presidências abertas por várias capitais de distrito, mas a surtida pelos arredores da capital em 1993 abriu um rombo na já periclitante coabitação com S. Bento, cujo inquilino era Cavaco Silva. As imagens da exclusão e das precárias condições de vida de milhares de portugueses a viverem em barracas, amplificadas por rádios e televisões, contendiam frontalmente com a foto do país que "era o bom aluno da Europa". Estava-se no ocaso da segunda maioria absoluta de Cavaco Silva à frente do Governo, com sinais de divisão no PSD já visíveis.
Às críticas, violentas, vindas de deputados e dirigentes do PSD que consideravam ser uma excessiva interferência do Presidente da República no jogo político, Soares respondia elogiando "o noticiário fresco, espontâneo, directo e detalhado, mostrando a realidade como ela é".
Estudiosos e analistas políticos convergem na ideia de que o primeiro mandato de Mário Soares (1986-1991) demonstrou uma coexistência praticamente sem mácula entre um Presidente com origem partidária no PS e um Governo do PSD. Essa coabitação é ilustrada com a vertiginosa promulgação de diplomas do Governo e da Assembleia (o que é, aliás, avaliado como o saldo do ímpeto reformista cavaquista). Mas também com a leitura de Soares, repetida em várias ocasiões, sobre os poderes presidenciais: "Não é ao PR que compete conduzir o jogo político, mas tão-só arbitrá-lo, segundo as regras constitucionais."
Reeleito em Janeiro de 1991 com uma esmagadora maioria dos votos (mais de 70 por cento), com o apoio do PSD que não foi a jogo nessas eleições presidenciais, Mário Soares abre uma nova página. A revisão constitucional de 1987 acentuara o carácter semipresidencialista do sistema político português, redundando numa limitação dos poderes presidenciais. A conjuntura económica adversa, com o país a entrar em recessão, abriu espaço à intervenção do Presidente. O confronto entre Belém e S. Bento conhece uma escalada. "O Presidente preside e o Governo governa", avisava Cavaco no congresso do PSD, que se realizou no Porto, em 1992. "As ditaduras não gostam de controlos", atirava Soares, inconformando-se com maiorias hegemónicas que resvalam para a arrogância e o autoritarismo. Sucedem-se as mensagens à Assembleia da República, críticas às tentativas de governamentalização da comunicação social, um escrutínio apertado a leis com envio para fiscalização do Tribunal Constitucional, audiências em Belém. Cavaco reage: "As forças de bloqueio têm um rosto."
Em Maio de 1994, realiza-se, em Lisboa, o congresso Portugal, Que Futuro?, sob "o alto patrocínio do Presidente da República". A maioria do PSD treme, mas os socialistas também, pouco agradados com o papel central que Soares reclamava para si no xadrez político. No horizonte estavam já as legislativas de 1995. "Deixem-nos trabalhar" foi a frase que à época marcou a conflitualidade institucional, do lado do Governo. Contra o aumento das portagens, o buzinão na Ponte 25 de Abril foi o momento simbólico que prenunciou a derrota eleitoral do PSD. Com Soares a caucionar "o direito à indignação" dos portugueses. Cavaco anuncia que vai sair de cena no início de 1995, António Guterres ganha para o PS as legislativas e Jorge Sampaio vence as presidenciais em Janeiro de 1996, derrotando Cavaco à primeira volta. Este cumpre a tradicional "travessia no deserto". Foram dez anos.
Ainda antes de chegar a Belém, em Janeiro de 2006, tornando-se o primeiro Presidente oriundo do centro-direita depois da Revolução do 25 de Abril, Cavaco prometeu convergência estratégica com o Governo. Em São Bento, Sócrates governava à bolina da primeira maioria absoluta alcançada pelo PS, que perdeu, o ano passado. E tudo parece ter mudado.
Na recta final do seu mandato, Cavaco parece mais interessado em romper do que em convergir. Tenta demarcar-se da impopularidade do Governo, submerso por uma crise social e económica. Aos Roteiros para a Inclusão, juntou agora os Roteiros das Comunidades Locais Inovadoras. Para "mostrar os bons exemplos". E desdramatiza conflitualidades institucionais. Este fim-de-semana, em Peniche, interrogado pelos jornalistas sobre a audiência de hoje com ex-ministros das Finanças, foi claro na resposta: "Conhecemos quem é que os outros Presidentes da República receberam no passado, com o que eu concordo. Ouviram os portugueses." Filomena Fontes