A longa viagem de Vashti Bunyan

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Vashti Bunyan está receosa. Não pelos concertos que se avizinham e que a trarão ao Lux, em Lisboa, no próximo dia 13 de Maio, quinta-feira. Disso falaremos depois. Do seu percurso errante, da preciosidade da sua música, que viveu primeiro entre sombras e timidez, descobriu depois uma luminosa intimidade, e se silenciou 35 anos (sim, 35) antes de se fazer ouvir novamente, quando Devendra Banhart, Joanna Newsom ou os Espers lhe disseram que sim, a sua música era especial.

Pouco depois de atender o telefonema do Ípsilon na sua casa em Edimburgo, falou-nos da viagem que faria no dia seguinte até Estocolmo. Acabada de chegar de Los Angeles, onde um vulcão islandês (esse, pois claro) a manteve retida durante duas semanas, prepara-se para viajar novamente e teme que o Eyjafjallajökull lhe atrapalhe a vida uma segunda vez.

Não deixa de ser curioso este receio de Vashti Bunyan. Há 40 anos tentou uma carreira na pop e, desiludida com o fracasso, deixou tudo para trás. Tudo: partiu de Londres com o namorado em direcção a uma comuna na Escócia fundada por Donovan. Não viajou de comboio, autocarro ou avião, nada disso: cavalo e carroça. Assim, teve tempo para compor e gravar um álbum de doces "lullabies", ignorado então, reconhecido agora como um clássico; teve tanto tempo que, quando chegou à comuna, Donovan já não estava lá. Ei-la então agora, quatro décadas depois, preocupada com vulcões e aviões, mas a rir quando lhe sugerimos que, caso as cinzas vulcânicas atrapalhem, sempre poderá descobrir um meio de transporte alternativo: "Mas o cavalo é tão lento, é certo que não chegaria a tempo a Lisboa".

Em Lisboa, Vashti Bunyan tocará principalmente canções de "Lookaftering", o álbum que editou em 2005, o tal que pôs fim ao um silêncio de 35 anos. De uma delicadeza comovente, cantado numa voz que se ergue da aparente fragilidade, "Lookaftering" é, com as suas guitarras acústicas dedilhadas, os seus pianos ondulantes, as flautas, oboés e orquestrações, um olhar terno sobre o que ficou para trás. Sem angústia, finalmente.

Amor e rejeição

Para esta londrina nascida em 1945, tudo começou em Nova Iorque com a descoberta de um músico e de um disco, "Freewheelin'", de Bob Dylan. O início da década de 60 e Vashti expulsa de uma escola de arte, em Oxford, por se "concentrar demasiado numa expressão artística diferente" - estudava pintura mas dedicava mais tempo a compor canções. A chegada a Nova Iorque e Bob Dylan: "Toda aquela ideia do músico nómada, quase um saltimbanco, atraía-me muito. Isso, juntamente com as letras, foi uma educação extraordinária. Abriu todo um mundo". Foi ao ouvi-lo que decidiu insistir, determinada, numa carreira musical.

Acontece que Vashti Bunyan, que olha para os anos 60 e para as transformações que neles ocorreram como um "levantamento muito pequeno" - "não éramos tantos quanto isso a fugir à normalidade" -, "mas muito eficiente, muito excitante", não sabia como se enquadrar neles. "Nunca fiz parte de qualquer cena. Era muito solitária e nunca me alinhei a ninguém. Usava jeans e camisolas de homem e recusava que me modelassem enquanto cara bonita. Além disso, pensava que ninguém queria fazer o que eu queria e, portanto, não achava que fossem possíveis grandes progressos". Mesmo aqueles que compreendiam a sua música pareciam inacessíveis. Vashti conheceu Nick Drake e Joe Boyd, produtor do seu primeiro álbum, "Just Another Diamond Day" (1970), composto durante a viagem até à Escócia, queria que gravassem juntos. Impossível: "Das poucas vezes que estive com ele, não trocámos uma palavra. Virava-se de costas, de olhos na parece. Era um génio e uma alma perdida, era muito infeliz. Ele tão tímido e eu tão tímida... Nunca nos conhecemos verdadeiramente".

Vendo imagens das suas raras aparições televisivas em meados da década de 60, percebemos tudo. "Some things just stick in your mind", a canção de Jagger e Richards que Andrew Loog Oldham lhe ofereceu, e ela a cantá-la nas suas calças brancas e camisa preta, a desviar os olhos da câmara. Aquele, repare-se, era o auge da sua carreira - "estava muito determinada a ser uma cantora pop e a levar as minhas canções às tabelas de vendas". Mas as suas canções eram de um intimismo desarmante, marcado por frio invernoso e por imagens de solidão. Não podia resultar. Depois de dois singles sem sucesso, desistiu pela primeira vez.

"Cresci no meio de Londres e desde a infância que sonhava com a paisagem, com o campo", conta. Quando a carreira pop falhou, foi procurar esse sonho. Ela, o namorado e o cão de ambos, a cavalo até à Escócia. "Éramos muito românticos. Como não tínhamos dinheiro para gasolina, achámos que precisávamos apenas de um cavalo. Afinal, os cavalos só precisam de erva. Éramos inocentes a esse ponto... e estúpidos [risos]. Mas foi uma grande estupidez que se transformou em grande sabedoria."

Vêmo-la na capa de "Just Another Diamond Day": o lenço na cabeça, o avental e a saia negra, ela em frente à portada de uma casa com telhado de colmo, e à esquerda de um grupo de animais campestres. Gravado num intervalo da viagem com músicos dos Fairport Convention e da Incredible String Band, com orquestrações a cargo de Robert Kirby, soa a deslumbrante sonho bucólico, uma ode à inocência de dias que correm lentos entre verde prado e azul lago. Para Vashti, porém, nada daquilo era sonho. "[Na viagem] passei de uma infância muito protegida à vida a sério, o que foi um choque. Mas aprendi como viver sem electricidade, sem dinheiro, sem tudo aquilo que tomamos por garantido. Aprendi que podemos sentir-nos realizados quando as nossas preocupações são encontrar água, o próximo prado para o cavalo ou lenha para o fogo. Tive um filho e estava a viver na natureza. Os sonhos que estavam nas canções de 'Diamond Day' eram a realidade."

A viagem, diz, curou-a da "grande depressão" com que tinha abandonado Londres. O álbum não só não resultou exactamente como pretendia, como foi responsável por nova desistência. Desta vez total. Foi um rotundo fracasso comercial recebido pela crítica com escárnio e classificado como ingénuo e infantil. Vashti baixou os braços. "Em vez de deixar que aquilo me destroçasse, decidi simplesmente que não servia para a música, que era óbvio que não era boa o suficiente. Mesmo que isso fosse uma terrível rejeição da minha vida e dos meus sonhos."

Continuou a viajar com o namorado pela Escócia e pela Irlanda, criou uma família. Ao longo desses 30 anos, pegou na guitarra uma única vez, para ensinar o filho a tocá-la.

A redescoberta

Um dia, por curiosidade, teclou o seu nome num motor de pesquisa da Internet e deparou-se com o seu passado, redescoberto. "Just Another Diamond Day" fascinava uma nova geração de melómanos e um deles, Devendra Banhart, chegou mesmo a escrever-lhe, declarando toda a sua admiração. Vashti Bunyan reeditou o álbum, pegou novamente na guitarra, cantou. "Era algo que tinha enterrado tão fundo que perceber que ainda estava ali foi maravilhoso". Mais, foi como se todo o tempo em que negara a música não tivesse existido. "Voltei à música onde a tinha deixado, como se o resto da minha vida tivesse continuado numa dimensão diferente. Deixei a música com 25 anos e é aí que ainda estou. Talvez chegue ao ponto em que serei eu aos 30."

Desde que quebrou o seu voto de silêncio, muito aconteceu. Gravou com os Piano Magic ou com os Animal Collective Editou um novo álbum, "Lookaftering", que considera o fechar do ciclo iniciado em "Just Another Diamond Day" e que lhe permitiu começar a pôr em disco "todas as orquestras" que tem na cabeça - musicais do início do século XX, Noel Coward, hinos religiosos e canções de Natal. Em Lisboa, será acompanhada pelo guitarrista Gareth Dixon e pela multi-instrumentista Jo Mango.

O futuro? Olha para ele sem pressas. Porque esperou 35 anos até gravar novamente. Porque ainda não superou o desgosto da morte, a 3 de Outubro de 2009, de Robert Kirby, com quem começara a trabalhar em novas formas de "tirar a orquestra da cabeça". E porque quer sentir "que todas as peças se encaixam", quer ter a certeza de que se orgulhará da música que gravar.

Será, provavelmente, o último álbum que gravará. Mas nada de angústias. Haverá sempre tempo para um regresso de Vashti Bunyan.

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