Partilha de testemunhos marca convenção nacional dos 25 anos da associação em Portugal. Encontro termina hoje no Porto

Tentou tudo - médico de família, psicólogo, psiquiatra, bruxo. Perdeu a esperança - pensou que jamais se livraria daquele "sofrimento imenso". A mãe nunca desistiu - esteve sempre lá. Um dia, ele fugiu de casa e refugiou-se em casa dela, num quarto escuro. Apareceu um membro dos Narcóticos Anónimos (NA), uma organização internacional sem fins lucrativos. E ele, primeiro, pensou: "Mais uma seita! O que querem de mim?" E, depois, cuidou: "Se calhar, não faço mal em ir lá ver aquilo." E foi: "As pessoas tinham uma cara que não era a minha." E se elas, que tinham sido como ele, conversavam, sorriam; então ele também podia ser como elas, também poderia conversar, sorrir.

Esta partilha, longa, pousada, fazia-se ontem à tarde, na XX Convenção Nacional dos NA, no auditório do Seminário de Vilar, no Porto, enquanto num painel, colocado no lado esquerdo, passavam os "doze passos" - os princípios que orientam o caminho. Há 20 anos, toxicodependentes em recuperação, como C., tinham 26 reuniões, nos distritos de Lisboa e no Porto. A irmandade, de origem norte-americana, chegara a Portugal havia cinco. Agora, têm 140.

C. sentia-se honrado por estar ali, naquele palco, a partilhar a sua experiência - a celebrar a sua liberdade. Já bateu no fundo do poço: "Consumia até não aguentar mais e, quando já não aguentava mais, fazia desintoxicações para voltar a aguentar." Como outros que já ontem tinham falado e outros que hoje ali falarão.

O processo de recuperação nunca acaba: entre os rostos anónimos - a maior parte homens, maiores de 30 anos -, algumas figuras "históricas" como A., que participou nas primeiras reuniões no Porto, em 1989. Consumia. Após uma cura de desintoxicação, em Inglaterra, tornou-se coordenador de um núcleo, num espaço religioso, na Foz. "No início, era só eu. O padre fazia-me companhia."

"Não sei o que este gajo tem"

Na altura, o país dava os primeiros passos em matéria de recuperação de toxicodependência - a epidemia da heroína já se instalara. Para toxicodependentes, durante muito tempo, houvera apenas as consultas de psiquiatria dos hospitais de Santa Maria (Lisboa) e de São João (Porto); só em 1987 aparecera o Projecto Vida e, dentro dele, o Ministério da Saúde criara o Centro das Taipas (Lisboa), a primeira unidade terapêutica para toxicodependentes.

Nos EUA, a evolução foi progressiva e lenta. A primeira reunião de NA acontecera em Lexington, Kentucky, em 1947, como parte de um programa hospitalar de saúde pública do governo federal dos Estados Unidos.

Um reparador de telhados e uns amigos formaram, em 1953, um grupo que se reunia, sob os mesmos princípios, em Los Angeles: já era um grupo de base comunitária, mas ainda não havia consenso nem sobre o nome da "irmandade", nem sobre o modo como iria ser adaptado o programa dos 12 passos dos Alcoólicos Anónimos (AA).

A. lembra-se de sair à noite, limpo, e de estar numa discoteca, radioso, e de um primo o olhar com ar de quem está a pensar: "Não sei o que este gajo tem, mas também quero." Nunca vira alguém que já consumira deixar de o fazer e recuperar uma existência dita normal. Esse espanto atraía aos NA muita gente. As pessoas iam ver o que diabo era aquilo - e a palavra ia passando de boca em boca. "O desespero é tão grande. Só quem viveu é que sabe o drama de ir ao bairro todos os dias", recorda.

Foi esta espécie de luminosidade que encantou C. Uma vez, estava ele numa reunião, ouviu um homem falar sobre a relação dele com a filha. Identificou-se, por completo, com aquilo. Também tinha uma filha, que já nem conseguia ver. Aquele tinha de ser o seu "padrinho".

Nas reuniões, os toxicodependentes partilham experiências e sentimentos. Mas isso, por regra, não chega: os demais membros mais experientes fazem um acompanhamento individual dos novatos. E essas relações podem durar uma vida, como dura a que C. naquele dia elegeu.

Cada um faz o seu caminho. Que o diga um dos pioneiros, L. Foi o traficante que lhe indicou os NA, há 21 anos, no Cais do Sodré: "Apesar de ser numa igreja, fui. Tinha saído do Algarve e entrado em Lisboa à procura de uma solução para mim. Entrei naquela sala e, nesse mesmo dia, deixei de usar drogas. Houve uma identificação muito forte. Não foi um milagre - não há milagres. Eu queria mesmo deixar." Queria mesmo deixar e ali estava um apoio. Ainda está.