A praça está viva

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Ela anda há mais de dez anos a deixar-se ir aonde a levam os vídeos de Daniel Blaufuks - e os vídeos de Daniel Blaufuks levaram-na a sair ("Vooum", de 1999) e a entrar ("No Fly Zone", de 2000), a sair e a entrar constantemente, como se não houvesse vida onde não há viagem (muito depois disso, em 2007, o Teatro Nacional S. João voltou a olhar para essas peças, juntou-as num ciclo e chamou-lhes "movimentantes": parecia óbvio). Agora há vida outra vez, em "a praça", a nova criação de Né Barros que tem hoje estreia na Culturgest, em Lisboa: vida em todos os centímetros da Djemaa El-Fnaa, a praça de carne e osso que Daniel Blaufuks filmou numa cidade mais velha do que o mundo, Marraquexe, e vida em todos os centímetros da praça virtual que a coreógrafa constrói em palco, organizando, desorganizando e reorganizando os corpos dos quatro bailarinos (Ángel Montero Vázquez, Joana Castro, Katja Juliana Geiger e Pedro Rosa), enquanto a banda sonora criada de raiz por Alexandre Soares e Jorge Queijo fala pelo menos tantas línguas quantas as que ouviríamos se andássemos por aí, sem parar, e o mundo inteiro fosse o sítio a que chamamos casa.

Casa é isso, diz Né Barros: andar por aí. "'a praça' vem na sequência dos outros trabalhos que eu fiz com o Daniel Blaufuks, muito centrados na ideia da viagem, da paisagem, do humano enquanto paisagem, do nomadismo vivido quase como condição e motor existencial", explica. Tal como os movimentantes que habitavam as suas criações anteriores, e que agora regressam, a praça onde tudo isto se passa é um lugar ambulante: "[Atravessar uma praça] não é como atravessar uma rua (...). Quando estamos na praça deambulamos. Derivamos (...). Representamos também", escreveu a coreógrafa no programa que acompanha a peça. Viu vários vídeos de Daniel Blaufuks antes de fazer "pause" a estes, e de querer ficar por ali, na Djemaa El-Fna, a praça das praças, entre marroquinas às compras, turistas de máquina fotográfica, cegos vindos dos relatos de Elias Canetti, contadores de histórias, encantadores de serpentes, cozinheiros de branco, miúdos da escola, no ponto exacto onde o Ocidente se passa para o lado de lá, explica ao Ípsilon: "É uma praça muito particular, porque tem uma diversidade cultural extremamente evidente. Há marcas muito evidentes das diferenças culturais nestas imagens. Havia outras hipóteses, outras imagens que o Daniel tinha feito na Índia, ou em Nova Iorque, mas todas essas outras viagens, acabam por estar ali".

A praça é a própria viagem.

Barulhos de fundo

Também houve outra coisa que se tornou evidente à medida que a praça ganhou vida, nos ensaios: a praça, enquanto lugar de representação social, é uma metáfora do palco (ou então é o palco que é uma metáfora da praça, de qualquer praça). "Estar no meio de uma praça faz-nos ser qualquer coisa. É o tipo de sítio que está sempre preparado para que algo aconteça. Exactamente como um palco. O [filósofo francês] Michel Serres fala disso, da praça como um corpo nu, à espera de ser construído", sublinha Né Barros.

Depois de ter visto as imagens da praça, repetidamente, trabalhou sozinha em cima delas. Mais do que um cenário, o vídeo de Daniel Blaufuks é de certa forma o coração do espectáculo: "O vídeo interessou-me por esse lado mais abstracto da praça como sítio onde tudo está em potência, mas também pelo concreto do que lá se passa - aquela passagem incessante, aquela frequência, aquela afluência sem objectivo". Há elementos disso no espectáculo - Né Barros andou sozinha pelas ruas do Porto, a fotografar bandos de pássaros, porque eles são como a multidão da Djemaa El-Fnaa: às vezes parecem coreografados - e cenas que funcionam quase como uma extensão ou um contraponto das narrativas sugeridas pelo vídeo, ainda que "a praça" não pretenda ser um duplo da Djemaa El-Fna.

Podemos imaginar "mil histórias" para toda aquela gente, e ela imaginou algumas: a história da banda decadente, por exemplo, que criou para que o grupo de turistas amontoado dentro do vídeo tivesse um espelho ao qual se pudesse olhar. Podemos imaginar "mil histórias", dizíamos, mas não podemos fixar-nos em nenhuma. "a praça" está viva, e vai em todas as direcções ao mesmo tempo. Tudo o que vemos são barulhos de fundo: pessoas de passagem, conversas apanhadas a meio, noutras línguas, mundos paralelos. "As personagens falam, mas não dizem nada. São só vozes. Um dos livros de que chegámos a falar foi 'As Vozes de Marraquexe', do Elias Canetti", nota Né Barros.

Há uma parte nesse livro, mesmo antes de acabar, em que Canetti conta como "ao anoitecer" se punha a caminho da Djemaa El-Fna à procura de "uma pequena trouxa castanha" que emitia "um 'a-a-a-a-a-a-a' profundo, contínuo", perceptível "entre as mil vozes e gritos da praça": "Nunca a via apanhar as moedas que lhe atiravam. Poucas, porque nunca lá estavam mais de duas ou três. Talvez não tivesse braços para apanhar as moedas. Talvez não tivesse língua para dizer todos os sons de 'Alá', reduzindo o nome de Deus a 'a-a-a-a-a-a-a'! Mas vivia, e com total entrega e perseverança dizia o único som que podia dizer, e dizia-o durante horas e horas, até se tornar o único de todo aquele imenso lugar, o som que, afinal, sobrevivia a todos os outros".

A-a-a-a-a-a-a. Se escutarmos com atenção, também o ouvimos aqui.

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