Pedro Amaral no labirinto dos sonhos
Em 1913 Fernando Pessoa transformou Salomé numa personagem que cria a realidade através do sonho. Na sua primeira ópera, Pedro Amaral transforma a mítica figura bíblica num espelho dos heterónimos do poeta. Depois da estreia mundial em Londres, a ópera O Sonho sobe hoje ao palco do Grande Auditório Gulbenkian. Por Cristina Fernandes, em Londres
Sobre um tapete vermelho e um despojado fundo azul movem-se harmoniosamente três figuras femininas vestidas de branco mergulhadas numa luz diáfana. Representam Salomé e as suas Aias, mas também desdobramentos da lendária figura bíblica cujo canto se entrelaça na voz de três sopranos: Carla Caramujo, Ângela Alves e Sara Braga Simões. São figuras que sonham, mas que também foram sonhadas, primeiro por Fernando Pessoa e um século depois pelo compositor e maestro Pedro Amaral e pela encenadora Fernanda Lapa. Fernando Pessoa e os seus heterónimos também vigiam O Sonho, surgindo logo no início, de livro na mão, no palco londrino do Robin Howard Dance Theatre, mais conhecido como The Place, onde foi estreada no passado dia 25 de Abril a primeira ópera de Pedro Amaral.
Hoje, às 19h00, a obra apresenta-se pela primeira vez em Lisboa, no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian, responsável pela encomenda, associando-se à sua delegação do Reino Unido. Além das três sopranos, dão vida a O Sonho três barítonos (Jorge Vaz de Carvalho, Mário Redondo e Armando Possante), um actor (Otelo Lapa) e a London Sinfonietta, agrupamento de referência na área da música contemporânea, que tem colaborado várias vezes com Pedro Amaral e que gravou em 2007 um CD com música do compositor português.
A acuidade técnica e a expressividade da London Sinfonietta, sob a batuta do próprio compositor, foram pilares essenciais do êxito da performance numa partitura com uma escrita instrumental muito minuciosa, refinada e exigente e uma identidade tímbrica fora do vulgar (a instrumentação inclui cinco violoncelos, contrabaixo, três flautas, duas partes de trompa tocadas por quatro instrumentistas, harpa e uma grande variedade de instrumentos de percussão) que vai estabelecendo relações estreitas com a dramaturgia.
The Place, uma sala de espectáculos que está a festejar 40 anos e tem um percurso ligado sobretudo à dança contemporânea, não encheu totalmente para uma estreia pouco divulgada na imprensa londrina, mas teve sentado na plateia o maestro e compositor húngaro Peter Eötvös, com quem Pedro Amaral estudou direcção de orquestra. "É uma honra e uma emoção saber que ele vem", confessou o compositor horas antes da estreia.
Escrita virtuosa
A paixão do compositor português de 38 anos por Fernando Pessoa é antiga. "É um longo namoro. Na minha adolescência lia muito os seus textos, não só para mim mas também em público. Fiz muitos recitais de poesia, pois até determinada idade conciliei a música com a prática do teatro amador. Reunir essa parte de mim ao músico profissional era mais ou menos inevitável", explicou ao P2.
Para Pedro Amaral, Fernando Pessoa é um dos expoentes máximos da arte no século XX, "ao nível de Joyce e de Kandinsky." A versão de Salomé atraiu-o porque o poeta "reinterpreta de forma miraculosa e inovadora a história bíblica" e porque faz dessa reinterpretação "um espelho autobiográfico". Salomé divide-se em várias pessoas pelo que o compositor resolveu usar três cantoras de vozes semelhantes. A certa altura, já não se sabe quem canta o quê e cada uma delas assume sucessivamente a voz da protagonista. A escrita vocal tem longos melismas que se misturam e grande exploração do registo agudo. É uma escrita virtuosística e tecnicamente ambiciosa, que Carla Caramujo, Ângela Alves e Sara Braga Simões defenderam muito bem. As três cantoras actuam praticamente sem descanso e têm ainda de decorar as inúmeras marcações da depurada encenação de Fernanda Lapa, que quase criou uma coreografia para este Sonho. Agem como personagem colectiva num mundo onírico e simbolista, referência estética fundamental no teatro de Pessoa, lembrando por vezes as Três Graças.
A Salomé de Pessoa é a história de uma labirinto de sonhos. A protagonista é uma imagem sonhada, que, por sua vez, sonha com outra personagem: a de São João Baptista. Este último é um profeta que sonha com Deus. Só perto do final Salomé descobre que o seu sonho se transformou em realidade e é aí que seduz o Capitão da Guarda para matar o escravo que lhe trouxe a cabeça do bandido (que era, afinal, a de um santo) numa cintilante bandeja dourada.
"Num certo sentido, Pessoa é um João Baptista, é uma cabeça que só consegue viver em sonho. Essa reinterpretação do mito à imagem do poeta é fascinante como ponto de partida para uma peça de teatro musical", diz Pedro Amaral. O facto de ser um texto inacabado, um pouco como foi o Woyzeck de Georg Büchner para o compositorAlban Berg, foi uma vantagem, já que assim há maior liberdade. "Por exemplo, a liberdade de incluir um fragmento manuscrito que Pessoa não dactilografou e deixou na sua arca", refere o compositor. Teresa Rita Lopes tinha criado uma montagem dos fragmentos de Salomé e de outros textos dramáticos de Pessoa em 1977, mas Pedro Amaral preferiu fazer a sua própria ordenação.
"Desde o princípio sabia que o texto era desequilibrado. Tem um grande monólogo e depois um enorme trio entre essas três sonhadoras, que são como as veladoras de O Marinheiro, outra peça de Pessoa. Segue-se depois uma acção muito concentrada", explica Amaral, que se serviu do monólogo e do trio como "aquilo a que o Umberto Eco chamou uma temporização" até chegar à parte em que o escravo que desmente Salomé vai ser morto. Esse desequilíbrio patente no texto sente-se inevitavelmente na música. Em mais de metade da ópera, a acção é sobretudo interior e acompanhada por uma linguagem musical mais hermética. Mas nas cenas finais dá-se uma revelação. Há uma explosão de gestos dramáticos no próprio discurso musical e de cores tímbricas, às quais a sonoridade calorosa dos violoncelos que acompanham Herodes (nesta peça o pai de Salomé e não o padrasto) dá um contributo envolvente de grande lirismo. A escrita vocal de Herodes (numa exemplar prestação de Jorge Vaz de Carvalho) é de uma grande clareza, assim como as do Capitão (Mário Redondo) e do Escravo (Armando Possante), contrastando com as linhas sinuosas das Salomés.
Como um sismógrafo
"Para cada pequena ondulação dramatúrgica na palavra, a música tem de ser como um sismógrafo ultra-sensível. Caso contrário, seria uma música arenosa e eu não queria isso de todo", explica Pedro Amaral. "No realismo do pai de Salomé e do Capitão é necessário que o texto seja claro. São diálogos rápidos e de carácter oral. As deambulações de Salomé sobre o sonho não precisam de ser sempre inteligíveis, são uma aura de palavras na qual penetramos com maior ou menor lucidez", acrescenta.
"O próprio texto tem uma sonoridade particular, que tem de ser recriada. Sempre me surpreendeu como é possível ter textos tão diferentes e usar uma orquestra igual. No século XX, com a panóplia de combinações que existe não faz sentido usar uma orquestra-padrão", diz Pedro Amaral. "A nível instrumental, o mundo de Salomé é um mundo cintilante, dado por uma série de percussões e pela harpa. Quando Salomé se divide em três, há três flautas que são como que a sua sombra."
O compositor explica que, durante a primeira parte da ópera, os cinco violoncelos e o contrabaixo fornecem a estabilidade do contexto harmónico no qual se inscreve todo o monólogo de Salomé e depois o trio. Mais tarde esses instrumentos vão constituir o tecido instrumental de Herodes. As trompas têm também um significado especial. "Uma parte da minha formação como músico foi feita em França. Em francês, trompa diz-se cor, pronunciando-se da mesma maneira que corp (corpo). Quando associadas a Salomé, as trompas nunca são identificáveis como tal, são corpos dos quais se sente a alma mas não se sente a materialidade." Mais tarde as trompas assumem também uma função associada à destruição. "Quando manda matar o escravo, o Capitão tem trompas a acompanhar. Como se fosse música a cair por ali abaixo. É algo que se vai partir em pedaços e aí ouve-se o corpo, um corpo que vai morrer."
Pedro Amaral, que estudou com Lopes-Graça e Emmanuel Nunes e foi depois assistente de Stockhausen, acha que se vive um momento privilegiado para a composição de ópera. "Nos anos 50 havia uma necessidade de depuração da linguagem inconciliável com a necessidade dramática. Mas assim que se ultrapassou essa época de laboratório os compositores começaram logo a experimentar formas teatrais. Vejam-se os casos de Stockhausen, Nono, Berio, Ligeti... Hoje temos uma linguagem muito mais maleável que nos dá elasticidade para fazer desta maneira ou daquela."
Pedro Amaral gostaria de continuar a trabalhar o universo de Fernando Pessoa. "Talvez venha a reduzir algumas partes e faça de O Sonho o segundo acto de uma ópera completa. O primeiro e o terceiro seriam sobre Pessoa e os seus heterónimos, a partir de algumas partes do Fausto [de Pessoa] que são teatralmente muito dinâmicas. Haveria assim um primeiro e terceiro actos mais teatrais e um segundo acto onde Pessoa e os heterónimos se sentam para assistir ao sonho de Salomé."
O P2 viajou a convite da Fundação Gulbenkian