Revisitar Keil do Amaral nos cem anos do seu nascimento
Afastando-se deliberadamente das oscilações entre nacionalismo e modernismo encontrou uma terceira via conjugando genuinidade e a modernidade.
Empenhado na construção de um discurso globalizante, Keil registou duas referências éticas e morais determinantes. Por um lado o magistério de mestre Carlos Ramos que o instruiu “na necessidade de ser moderno” e com quem “aprendeu a amar a arquitectura (e) a procurar servi-la e os fins que ela serve, em vez de se servir dela”. E por outro, a postura de Willelm Marinus Dudok com quem aprendeu “a planificar e a construir para o bem estar e felicidade do homem comum”. As premissas enunciadas são o bastante para enquadrar a apologética humanista de Keil e entender o combate que travou com os seus escritos e obras.
Nas obras desenvolveu uma aproximação metodológica orgânica sem impor a nova construção no sítio, procurando de um modo natural fazê-la participar da envolvente. Nos escritos bateu-se por “combater a abusiva importância da especulação, do negócio” quando importava sobretudo “olhar muito e muitas vezes para o sítio onde se pretende construir e para as suas imediações” . O segredo da desejada continuidade com a paisagem, com o sítio, estava em “apreender-lhe o carácter e respeitá-lo; descobrir-lhe as possibilidades e explorá-las. Preocupar-se mais, e com mais humildade, em fazer uma arquitectura certa, justa, adequada, do que em fazer “arquitectura moderna”ou “arquitectura tradicionalista”.
Quando em plena ditadura salazarista a arquitectura portuguesa se divide entre os mentores do regime e o desejo de um funcionalismo de carácter internacional, Keil desenvolve essa terceira via, teoricamente racional e formalmente ligada às identidades locais, apelando a uma linguagem simples e equilibrada, inspirada na continuidade e no sentido integrador que constitui uma constante da arquitectura portuguesa.
Oriundo de uma família de artistas ( bisneto de Giuseppe Cinatti e neto de Alfredo Keil), homem da resistência e do antifascismo, é uma figura referencial para a classe dos arquitectos.
Estuda na Escola de Belas Artes de Lisboa(1928-1934), mas é o trabalho com o modernista Carlos Ramos que marca as tendências funcionalistas e o carácter purista das suas primeiras obras patente no edifício do Instituto Pasteur (Porto, 1933-1935), onde interpreta em largos envidraçados modernos, grafica e abstractamente compostos, a fachada de um velho e estreito lote portuense. Em 1936 obtem o 1º prémio no Concurso para o Pavilhão de Portugal para a Exposição Internacional de Paris (1937), impondo nos programas oficiais um gosto renovador.
Apaixonado pela arquitectura holandesa de Dudok, que visita em 1937, as suas obras começam a manifestar esta influência ( Escola da Secil, Setúbal,1938-1940; Aeroporto de Lisboa, 1938-1942; Estação Ferroviária de Belém, 1939) sobretudo nos diversos projectos de equipamentos que realiza para os Parques de Lisboa (Monsanto, Parque Eduardo VII e Campo Grande) no quadro da sua actividade como arquitecto municipal (1938-1946). Resistente à aplicação directa dos códigos das vanguardas do Movimento Moderno, a inspiração holandesa revela-se num desejo de reinvenção tradicional recorrendo às formas puras da arquitectura regional, num desenho desenvolvido de dentro para fora apostado em trabalhar com uma austera economia de meios e ao mesmo tempo em criar espaços de uma qualificada intimidade.
Os materiais rústicos (aparelho de pedra rústica, tijolo à vista, coberturas de telha) são aplicados numa estrita funcionalidade planimétrica, orgânicamente sensível aos valores da luz e da sombra (Casas do Rodízio; Equipamentos do Parque de Monsanto: Casa de Chá de Montes-Claros, Miradouro dos Moinhos do Mocho, Teatro ao Ar Livre; Estufa Fria no Parque Eduardo VII) .
Nos anos 50, a par de uma qualificada produção no domínio da vivenda unifamiliar onde articula uma intensa organicidade na adaptação ao terreno (Casa Sousa Pinto, Lisboa, 1950, Prémio Valmor), e do desenho de uma série de lojas e equipamentos urbanos introduzindo pioneiramente novos códigos linguísticos ao sabor das influências mais internacionais Brasileiras ou Mexicanas (Sapatarias Arte, Mário, lojas TAP, Seldex, Metropolitano de Lisboa), constrói a Feira das Indústrias de Lisboa (1951-1957), a mais internacional das suas obras. O Estádio de Bagdad, que realizou com Carlos Manuel Ramos (Iraque,1961-1967), diversos planos de urbanização (Porto Santo e Pinhal da Marina de Vilamoura), muitos dos quais não concretizados (Tróia), moradias ( Casa Silva Brito em Lisboa, 1961,Prémio Municipal; casa Mário Soares,1968, Sintra), caracterizam a produção dos anos 60 marcada em Lisboa pela Piscina do Campo Grande, onde retoma a plasticidade do tijolo, o jogo de volumes contaminado de organicidade na abordagem do sítio e na escala humanizada.
Figura ética e moral de referência, polemista, investigador e pedagogo. Keil colabora na Universidade Popular de Bento de Jesus Caraça e co-organiza as Exposições Gerais de Artes Plásticas no pós-guerra.
Participante activo na actividade sindical e política foi eleito presidente do Sindicato em 1948, teve papel activo como fundador do ICAT na organização do I Congresso Nacional de Arquitectura 1948. Foi membro do MUD, apoiante activo na Campanha de Norton de Matos para a presid~encia da república de tal modo que a frontalidade das suas tomadas de posição conduziram ao impedimento do exercício do cargo de de Presidente do Sindicato.
Frontal opositor ao regime (Participa nos Congressos da Oposição democrática), para Keil a arquitectura ultrapassava a mera dimensão profissional.
Foi o incentivador do Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal (que reclamou em “Uma Iniciativa Necessária”, 1948) realizada pelo Sindicato dos Arquitectos (1955-1960) de que resultou a desmistificação da questão da “Casa Portuguesa” nos termos em que era doutrinariamente divulgada por Raul Lino.
Da sua actividade intensa ficaram textos de critica e livros de reflexão sobre a arquitectura e a cidade (A Arquitectura e a Vida; A Moderna Arquitectura Holandesa; O Problema da Habitação; Quero entender o Mundo; Lisboa uma Cidade em Transformação) contribuem para o enquadramento de uma actividade generosa e intensa como profissional e cidadão, de que o Palácio da Cidade (1949-1960), concebido para o remate do Alto do Parque Eduardo VII e nunca construído (defendido pela Câmara Municipal de Lisboa e sucessivamente reprovado pelo MOP), deveria ter coroado a sua diligência cívica e artística.