Até 1974, uma vez que I República gostava pouco de monárquicos e o Estado Novo pouco do liberalismo, o século XIX era um território virgem, situação que se tem vindo a alterar. Um dos historiadores que mais têm ajudado a compreender o período é Maria de Fátima Bonifácio, cujo livro "A Monarquia Constitucional, 1807/1910", agora editado, é indispensável.
Dir-me-ão talvez que o regime não começou em 1807, mas em 1820 ou 1834, mas a autora explica o motivo que a levou a escolher a primeira data: o facto de a Revolução ter vindo do exterior. Foram as Invasões Francesas, não a estrutura social indígena, que deram cabo do Antigo Regime. À época, a sociedade portuguesa era esmagadoramente rural, pobre e analfabeta. Com a possível excepção de Lisboa, não pululavam os salões onde se discutissem as Luzes. O que, pelo contrário, existia era uma aristocracia titular, "umas cinquenta famílias firmemente adstritas à corte e dependentes da Coroa", alheia ao movimento intelectual europeu e incapaz de imaginar um mundo diferente daquele que lhe conferia a supremacia. Não havia um grupo alargado capaz de criticar a legitimidade do rei absoluto em nome dos princípios da soberania nacional e da igualdade cívica. Foi presença do invasor francês e as lutas dela decorrentes que levaram à ruína das antigas instituições.
Em 1820, começou um período, instável por natureza e ambivalente por necessidade. Durante várias décadas, isto é, até à repressão das revoluções de 1848, foi impossível viver em paz. A instabilidade é mais visível do que a ambivalência ideológica, mas é esta que explica aquela. Maria de Fátima Bonifácio distingue, e bem, os fundamentos do liberalismo e da democracia. Só com base nesta distinção é possível explicar, como o faz, a ascensão e queda do setembrismo: "O posterior desenrolar dos acontecimentos demonstrou a impossibilidade de o setembrismo oficial, moderado e respeitável, governar com a sua 'cauda de descamisados'; morreria, por isso, às mãos dela. Mas mostraria também a impossibilidade de se conservar no poder sem o apoio dela: uma vez provado que não conseguia gerir e controlar a ameaça revolucionária, o setembrismo tornou-se redundante".
Outro ponto original do livro é a atenção conferida ao anticlericalismo como motor da republicanização da monarquia. A partir da Regeneração de 1851, ou, mais concretamente a partir de 1857, o sentimento anticlerical substitui o democratismo jacobino enquanto inspiração do radicalismo. A partir de então, a identificação entre reacção religiosa e reacção política ficou estabelecida. Sem que pudesse reprimir os primeiros nem apoiar os segundos, a Monarquia Constitucional viu-se entalada.
A autora relembra ainda a importância de Lisboa no panorama político. Num país eminentemente agrário, conservador e católico - 80 por cento da população vivia no e do campo - a classe política era de esquerda, ou seja, liberal, anticlerical e democrática. Portugal era um país dual, com a agravante de, a partir de certa altura, os partidos rotativos, úteis para enquadrar a província, se terem tornado incapazes de abranger as massas urbanas. Ao dualismo geográfico sobrepôs-se outro fenómeno, de natureza sociológica, a exiguidade da uma classe média que pudesse servir de tampão às exigências do "povo". João Franco fez o que pôde, mas, a partir do assassinato de D. Carlos, a monarquia estava condenada.
O carácter sucinto da obra - 212 páginas - não é um dos seus menores méritos. Por muito preguiçoso que o leitor seja, é improvável que não consiga arranjar tempo para ler esta obra, cuja prosa é clara, o raciocínio límpido e os argumentos bem apresentados. A partir de agora, deixou de haver desculpas para se desconhecer o século XIX. No final, a autora incluiu uma excelente cronologia e uma muito bem organizada bibliografia.
Não é esta a única obra recentemente publicada pela autora. No ano passado, com o intuito de abordar os anos entre 1834 e 1851, saiu Uma História de Violência Política. É das voltas e reviravoltas deste período que Maria de Fátima Bonifácio nos fala, demonstrando como se deve fazer investigação e se deve escrever História. Dois homens sobressaem na narrativa, Costa Cabral, o qual, como afirma, funcionava por "exclusão" - era, como hoje diríamos, um "conviction politician" - e Rodrigo da Fonseca, que o fazia por atracção, ou seja, usando ainda termos modernos, um "político inclusivo". Ambos forjaram uma época.Curiosamente, não são estas figuras que mais me atraem, mas o Marechal-Duque de Saldanha. Gostos são gostos, ou seja, não quero com isto dizer que a autora não tenha analisado bem as outras personagens, apenas que Saldanha é, na minha opinião, o mais fascinante. O capítulo de que mais gostei foi o que se debruça sobre a Regeneração, o pronunciamento militar por ele chefiado a 7 de Abril de 1851. Um mês antes do golpe, o conde das Antas dissera-lhe que, perante o descontentamento do país, estava a ser preparada uma revolução, que rebentaria no mês de Maio seguinte, tendo acrescentado que "todo o partido progressista se comprometia, sem quaisquer condições, a submeter-se inteiramente à direcção e determinação do marechal". Para sua surpresa, Saldanha recusou-se a aderir, tendo declarado sem pudor: "Não consentirei que a vossa revolução tenha lugar, dado que eu própria tenciono fazer uma".
E fez; só que ia falhando. Não vou contar as peripécias da insurreição de 1851, porque o respectivo capítulo se lê como um thriller, mas não resisto a citar outra pérola retórica do Marechal-Duque, proferida, alguns anos depois, reinava já D. Pedro V. O rei, um intelectual idealista, odiava-o. A certa altura, recebeu-o no Paço. Presidia aquele ao 22º governo constitucional, o qual, embora estável, atravessava uma crise. Eis o que Saldanha lhe disse: "Portugal, com vossa Majestade absoluto e eu Ministro, era um país feliz". Tivesse Saldanha vivo e sabe Deus o que lhe teria passado pela cabeça, mas felizmente jaz sob as pedras do palácio da Anunciada, pertença da sua família, os condes de Rio Maior. Podemos ir sossegadamente para casa a fim de ler as duas obras recentes de Maria de Fátima Bonifácio.