Sofia Ferreira

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A sua vida e a luta sobressaem como referências maiores de alguém que conhecia o sentido da justiça e da solidariedade

A última vez que falei com Sofia Ferreira foi em 2004, na sede do PCP na Rua Soeiro Pereira Gomes, em Lisboa. O motivo foi um trabalho que realizei então sobre um conjunto de cartas escritas por algumas das mulheres que estavam presas na cela das mulheres em Caxias, em 1961. As cartas destinadas à publicação numa revista política internacional, mais não eram do que denúncias da violência exercida sobre os antifascistas nas cadeias da PIDE. E neste caso com a particularidade raríssima de serem denúncias escritas por mulheres.

Sofia Ferreira não assinava nenhuma dessas cartas, mas aceitou falar comigo assumindo-se como a dirigente do PCP que era à época, em conjunto com Maria Alda Nogueira, responsável pela célula do PCP na cadeia de Caxias. Esta conversa veio-me à memória, quando há uns dias me disseram que Sofia Ferreira estava mal, pois tinha sofrido um AVC. A notícia da sua morte veio dias depois, na quinta-feira.

Faleceu a poucos dias de completar 88 anos (nasceu a 10 de Maio de 1922) uma das mais importantes mulheres que se dedicaram à vida política em Portugal no século XX e uma das mais marcantes e importantes mulheres que conseguiram atingir o topo da hierarquia do centralismo democrático do PCP e integrar a sua direcção máxima, o comité central desde o V Congresso em 1957, no local da Galiza, na freguesia do Estoril, até ao XII Congresso, no Porto, em 1988.

A memória dessa conversa que mantivemos numa das salas do rés-do-chão da Soeiro (a primeira à esquerda, logo ao pé da escada) é a força do seu olhar, bem como a tranquilidade e a certeza que dela emanava de quem não duvida um minuto da bondade e da verdade das convicções pelas quais fez o sacrifício da sua vida dedicada aos outros. Nunca falando de si, tratou de certificar que as cartas eram verdadeiras e de contar a forma como a organização clandestina do PCP cumpriu esta tarefa política de denunciar o que se passava nas cadeias fascistas.

Nunca falou de si. E de pessoal durante toda a conversa só uma discreta pergunta, com um sorriso e alguma ternura nos olhos: "Foi você que fez a biografia da Maria Alda, não foi? Um dia havemos de falar..." E respondi que sim, que Maria Alda Nogueira tinha sido a minha primeira biografada, e ficámos de conversar um dia. A voragem da actualidade e a obsessão da notícia, mais as voltas da vida, acabaram por nunca possibilitar essa conversa.

Irmã de Mercedes Ferreira e de Georgete Ferreira, Sofia Ferreira, que é hoje em Portugal uma personalidade quase desconhecida e uma referência apenas para algumas gerações mais velhas, é uma das figuras que marcam o século XX português, pela sua capacidade de entrega e de abnegação em beneficio da comunidade, desde que em 1946 mergulhou na clandestinidade como militante do PCP. Valores que à luz dos dias de hoje parecem estranhos numa sociedade que cedeu ao individualismo e aos egoísmo mais cruel e desumano.

Sofia Ferreira foi uma das mulheres que mais anos de prisão cumpriu, mais de 13 anos nas cadeias da PIDE (de 25 de Março de 1949 a 4 de Fevereiro de 1953 e de 28 de Maio de 1959 a 6 de Agosto de 1968). Presa a primeira vez com Álvaro Cunhal e com Militão Ribeiro no Luso, é presa a segunda vez em conjunto com o seu marido, António Santo, na rua, em Lisboa. Em 1969, passa algum tempo na União Soviética e assume depois responsabilidades de topo na hierarquia do PCP, antes e depois do 25 de Abril.

A importância real de Sofia Ferreira no aparelho e na história do PCP é conhecida e faz parte da história de Portugal. Teve, de acordo com a sua biografia oficial, responsabilidades diversas e de peso ao longo de décadas. Da imprensa clandestina ao apoio ao secretariado, passando pela responsabilidade de várias organização regionais.

O momento da sua biografia política mais conhecido é o facto de ter sido presa com Álvaro Cunhal e Militão Ribeiro na casa clandestina do Luso em 1949. Sobre a qual fez, aliás, um impressionante depoimento, logo após o 25 de Abril a Rose Nery Nobre de Melo que mostra como de facto Sofia Ferreira sabia exactamente o peso e a importância do seu percurso (Mulheres Portuguesas na Resistência, Seara Nova, 1975).

Senhora de uma segurança imensa, Sofia Ferreira tinha atrás de si a lenda de ter sido presa no Luso com Cunhal e Militão, onde era a companheira da casa clandestina. Era olhada por muitos como uma das namoradas de Cunhal. Mas o seu prestígio e a sua autoridade vinham do que foi o seu percurso e a sua magnífica capacidade de entrega.

Estranhamente ou não, esta mulher discreta e dura, mas afável, era mencionada muitas vezes como a "terrível Sofia". Uma forma de tratamento curiosa, que não era exclusivo seu - havia também a "terrível Alda" e a "terrível Georgete", por exemplo. O que diz muito sobre o PCP, mas sobretudo sobre o Portugal, quer de antes, quer depois do 25 de Abril. O país machista, em que a autoridade de uma mulher não é vista com respeito e por mérito próprio, mas sim como algo que é fruto de um carácter diferente do que é ser mulher, como algo antinatural numa mulher, logo terrível.

Sofia Ferreira foi das poucas mulheres a mostrarem o que era capacidade de luta, de liderança, de sacrifício em nome dos outros, da política e de um projecto. Foi das poucas mulheres na sua época e da sua geração a mostrarem que as mulheres podem ser iguais aos homens. E nesse sentido também uma pioneira. E, por mais que nos distanciemos do seu projecto e o recusemos, não podemos rejeitar o mérito e a grandeza de uma mulher que dedicou a sua vida à luta em que acreditava e sobre a qual estava convencida de que com ela melhoraria a condição dos seres humanos e lhes daria dignidade.

Num país retrógrado e conservador como Portugal em que ainda hoje as mulheres - mesmo trabalhando ao lado do homem ou mais que este e recebendo menos -, são consideradas em função do que é o espaço do lar e o espaço da família, a vida e a luta de Sofia Ferreira sobressaem como referências maiores de alguém que conhecia o sentido da justiça e da solidariedade.

Obrigada Sofia Ferreira por tudo o que deu sempre aos outros e por eles. E desculpe ter-me deixado atropelar pela voragem dos dias e nunca termos tido a oportunidade de ter aquela conversa. Jornalista (sao.jose.almeida@publico.pt)

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