É de regra que qualquer super-herói tenha uma "história de origem" que sublinhe a sua inadaptação ao mundo e à sociedade em que vive e que o leve a justificar a sua devoção à causa da justiça e do amor ao próximo. Não é preciso ir mais longe da "santíssima trindade" Homem-Aranha/Batman/Super-Homem: liceal anónimo, filho de milionário traumatizado, alienígena de um planeta distante, todos eles procurando compensar a sensação de estarem à margem do mundo. Sobre-compensando, diriam os psiquiatras mais atreitos à freudianização do super-herói tão em voga nas últimas décadas, desde que o comic-book americano se tornou numa forma de arte reconhecida como maior.
Sejam, portanto, bem-vindos à "história de origem" de um herói que tem pouco de super e certamente tudo de cromo - e que, em rigor, não deixa de ser cromo nem passa a ser super mesmo depois de se tornar herói. Dave Lizewski (Aaron Johnson) é o arquétipo do puto que gosta de ler histórias de super-heróis porque os super-heróis são sempre gajos como ele, e que decide dar o passo em frente para trazer a fantasia para a vida real. Mas como a invulnerabilidade não existe fora das páginas dos comic-books, Dave Lizewski, rebaptizado Kick-Ass por obra e graça de um feiíssimo fato de mergulho verde em saldo e do seu voluntarismo francamente ingénuo, farta-se de levar porrada. E ainda por cima, sem dar por isso, cai no meio de uma vingança movida por uma peculiar dupla de pai e filha (um Nicolas Cage alucinado e Chloë Grace Moretz) contra um mafioso particularmente impiedoso (Mark Strong).
O jogo meta-textual a que o britânico Matthew Vaughn, antigo produtor de Guy Ritchie, se entrega em "Kick-Ass - O Novo Super-Herói" chama-se, em tradução livre do inglês "have your cake and eat it too", "ter mais olhos que barriga e querer comer tudo na mesma". Esta é uma adaptação de um comic-book (escrito por Mark Millar e John Romita) que desconstrói o género (e por arrastamento as respectivas adaptações) com singular prazer, ao mesmo tempo que se quer igualar aos comic-books de super-heróis tradicionais fingindo que é um comic-book subversivo - não é, mas a lata com que finge é simpática. Bem mais interessante é a opção deliberada por eliminar a ideia dos super-poderes e substituí-la por uma combinação de obsessão, engenho e ingenuidade (conjugada com algum treino maníaco quase militar): ser um cromo não é forçosamente o melhor caminho para se ser super-herói (convém também ter uma boa conta bancária e alguma desenvoltura física). A esse nível, "Kick-Ass" é digno sucessor do anterior filme de Vaughn, o excelente e tão subestimado "O Mistério da Estrela Cadente" (2007), também ele adaptado de uma leitura lateral dos contos-de-fadas (uma novela gráfica de Neil Gaiman).
O que vai deixar muito boa gente incomodada é a violência gráfica, sobretudo quando praticada por uma miudinha de onze anos que mata que se farta, interpretada com pinta por uma Chloë Grace Moretz que rouba o filme (não andamos longe da Gogo Yubari do "Kill Bill" de Tarantino). É uma violência que oscila entre o cartoonesco assumido e o realismo brutal, mas que faz todo o sentido dentro da atitude "cuidado com o que desejas" desta história de cromos armados em super-heróis e super-heróis armados em cromos.
É, por isso, pena que a subversão bem-disposta e bonacheirona dos lugares-comuns do filme de super-heróis que Vaughan persegue se perca um bom par de vezes na necessidade de os cumprir para levar a areia à sua camioneta: a "vingança familiar" que o filme parece descartar logo de princípio como impulso da trama acaba por ser abertamente invocada em direcção ao final, toda a trama criminosa lastra o filme (em termos de energia tanto como de duração), e a conclusão está-se mesmo a fazer à sequela. Dá a sensação de um filme que travou a sua ousadia a meio do percurso - mas, mesmo que faltem uns quantos furos a "Kick-Ass" para ser um grande filme, está muitos furos acima da média do "blockbuster" americano contemporâneo.