Durante um bocadinho aquilo parecia a melhor coisa do mundo. Estávamos no início da década de 90, o hip-hop já não era visto apenas como uma coisa de pretos, mas também ainda não era verdadeiramente uma coisa de brancos. De repente, dois ou três tipos tiveram uma ideia tão brilhante quanto óbvia - aliás, tão óbvia que a posteriori só nos podemos perguntar como raio é que ninguém se tinha lembrado daquilo antes: unir o hip-hop e o jazz.
À frente dessa legião de músicos estava Keith Elam, um rapper que até então havia editado em duo com DJ Premier, num projecto chamado Gang Starr e que usava o nome artístico Guru.
Guru, 43 anos, faleceu ontem, vítima de um cancro que, segundo o seu actual comparsa musical, Solar, o roía havia pelo menos um ano. Tinha tido uma paragem cardíaca havia um mês e desde então estava em coma. As razões não tinham sido esclarecidas, porque, segundo Solar, "Guru quis que o caso permanecesse privado até vencer a batalha".
Guru acabou por perder. E assim, tal como Solar e Premier e incontáveis outros músicos consideraram, o mundo perdeu um dos poucos e verdadeiros criadores originais a actuar nas últimas duas décadas.
Uma revolução calma
Muito antes de Guru ter editado o seu primeiro álbum a solo, Jazzmatazz (93), em que definiu as coordenadas do género, outros pioneiros da música negra tinham estabelecido ligações inusitadas entre as diversas culturas negras - referimo-nos, fundamentalmente, à década de 70, e a Gil Scott-Heron e aos Last Poets.
TantoScott-Heron como os Last Poets tinham intenções notoriamente políticas na sua música e ambos namoraram com os mais diversos géneros musicais, em parte porque o seu trabalho era a palavra - e portanto, toda a música servia como banda sonora para a mensagem. É muito dúbio que os primeiros agentes do hip-hop tivessem um décimo da consciência política e social de Scott-Herone dos Last Poets, ou, sequer, que soubessem quem eles eram - apesar de eles terem aberto caminho para o hip-hop.
O hip-hop firmou-se inicialmente à volta de um beat, um scratch e rapalhada. Os Public Enemy trouxeram a consciência política, mas faltava um último passo para o hip-hop se tornar numa cultura com capacidade de auto-reflexão: faltava a consciência do passado musical.
O que Guru conseguiu fazer com Jazzmatazz foi exactamente isso: trazer a consciência do passado para o hip-hop. Não se limitou a unir jazz e hip-hop, ele fez de Jazzmatazz uma enciclopédia, uma Bíblia dos músicos negros inclassificáveis. Ao seu lado, entre outros, estavam Branford Marsalis, Donald Byrd e Roy Ayers. Ayers foi (é) um dos monstros da música negra americana, mostrando uma capacidade rara de quebrar barreiras. Byrd era um extraordinário trompetista que havia tocado com Coltrane, Art Blakey, os melhores. Marsalis, mais novo, também tinha tido escola com o louco Blakey.
Mesmo a nível de samples Guru inovou. Já não se usava apenas a velha linha de baixo de James Brown ou um break de bateria de um disco soul - não, recuperavam-se lendas como Freddie Hubbard. Neste cruzamento o hip-hop ganhava uma organicidade que até então desconhecia e ganhava, igualmente, uma tremenda musicalidade. Era como se tivesse sido aberta a caixa do tesouro e a partir daí tudo pudesse ser possível. E estamos aqui a deixar de fora um pormenor incontornável, a voz de Guru, coisa de rufia aristocrático, com cheiro a tabaco.
Para os melómanos, os efeitos de Jazzmatazz foram incalculáveis. Guru, que era uma semiestrela hip-hop para os americanos, tornou-se uma estrela de culto para os europeus. É incontável a quantidade de brancos que gostavam de jazz, mas não ouviam hip-hop e foram a correr tentar perceber o que tinham andado a perder. E é incomensurável o efeito que esta prospecção no passado da música negra teve em toda uma geração de músicos negros que até então só aderia ao hip-hop. Uma nova consciência do passado musical nascia, um novo orgulho nascia.
Curiosamente, Jazzmatazz não passou do lugar 91 no top da Billboard - que é como quem diz, parafraseando Scott-Heron: a revolução não será comercializada. Mas onde Guru não ganhou dinheiro, ganharam os seguidores: os US3, com a sua revisão de Cantaloupe Island, de Herbie Hancock, chamada Cantaloop (Flip Fantasia), chegaram ao Top 10 da Billboard - é, aliás, o primeiro single da mítica editora jazz, Blue Note, a tê-lo feito.
Hip-hop perdeu a vergonha
Foi o pico do chamado "acid jazz", e pode-se afirmar, sem grande margem de erro, que a partir daqui o hip-hop perdeu a vergonha de ser pop. Mas não se pode afirmar que os méritos de Guru se tenham ficado por Jazzmatazz.Já antes do seu disco a solo Guru andava a esticar a corda do que podia ser compreendido por hip-hop. A bordo dos Gang Starr Guru (e DJ Premier) criaram-se obras-primas como Step in the Arena (91) e o absolutamente perfeito Daily Operation (92). Não se pense que não havia ali "política". Havia. Havia uma espécie de dicotomia entre o gueto e o orgulho afrocêntrico.
Foi nesse som e nessa política que bandas com muito mais sucesso comercial, como os Arrested Development ou os saudosos Digable Planets, capitalizaram. E foi essa lição de liberdade que posteriores agentes sonoros fascinados com a música negra, dos Two Banks Four a Pharrell Williams, sorveram.
Se Guru foi ou não o primeiro, pouco importa. Foi dos melhores, arrepiantemente bom nos seus melhores momentos, capaz de levar rapazes brancos às lágrimas (de alegria) perante a descoberta da sua música. Curiosamente, o verdadeiro sucesso musical só chegou tarde, quando Moment of Truth, dos Gang Starr, chegou a disco de ouro por 500 mil unidades vendidas (nos EUA). Ainda assim, um sucesso relativo.
Guru deixou-nos pelo menos três obras-primas e um conjunto de soluções que dão a qualquer aspirante a músico chaves suficientes para descobrir a saída dos mais diversos labirintos musicais. Como disseram os seus amigos: que Deus o tenha em seu descanso.