A Curraleira mudou de nome, mas as pessoas não mudaram de vida
Já quase não há barracas. Também não há espaços verdes, nem sítios para passear. Apenas escadarias sujas e sombrias onde a cada minuto se trocam notas por heroína. O dia-a-dia dos bairros sociais onde vivia e, supostamente, vendia droga o actor de telenovelas, Tiago Fernandes
Um gueto. Em Lisboa, bem dentro da malha da cidade, na zona das Olaias, a antiga Curraleira já foi demolida há vários anos. A imensidão de barracas deu lugar a prédios de habitação social. Mudou-se o nome do local. Morreu a Curraleira e apareceu a Quinta do Lavrado. Se antes se vendia droga nas barracas, agora vende-se nos prédios, por vezes ombro a ombro com polícias ali destacados para fazerem serviços gratificados, fora do horário normal de trabalho. Foi neste bairro, onde continua a cheirar a miséria, que a polícia prendeu Tiago Fernandes, 19 anos, suspeito de liderar um grupo que vendia heroína.
Tiago tem um currículo considerável na televisão. Desde criança que participa em telenovelas e séries: de Médico de Família e Floribella, para a SIC, a Anjo Selvagem, Doce Fugitiva e Olhos nos Olhos, para a TVI, passando por Tudo por Amor e Liberdade 21, para a RTP. António Cordeiro, responsável pela direcção de actores de Doce Fugitiva, em 2007, pouco se lembra dele. Mas não tem dúvidas: este tipo de situação "pode acontecer a qualquer um, os actores têm é mais visibilidade, estão mais expostos".
Mas com a notícia da detenção do actor, na sexta-feira, expôs-se também este bairro e os que o rodeiam.
"Para a Quinta do Lavrado?... Vai para um bonito sítio...", diz o taxista quando lhe transmitimos o local de destino. O local é deprimente. Há uma fileira de prédios do lado direito e em frente uma estrada sem saída. Nos pátios estão em permanência algumas pessoas. Muitos são escanzelados. Têm no corpo as marcas da droga. "O Tiago? Sei bem quem é. Foi preso ali naquele canto", diz um dos poucos indivíduos que acede falar. A custo aponta o caminho para a casa do antigo actor de novelas.
Chega-se rapidamente ao Bairro Horizonte, a poucos passos do Lavrado. O casario é ainda mais velho - já existia quando a Curraleira era um mar de barracas - e as ruas e becos são uma espécie de depósitos de lixo e entulho. Ainda se limpam os estragos provocados por uma tromba de água.
Na sombra de um emaranhado de escadas um grupo de jovens esconde-se. No cimo da rua uma voz de mulher chama um dos indivíduos. "Vem já para aqui. Vem tratar do teu filho. Larga esse cabrão desse boi..."
Um rapaz sobe as escadas. A mãe continua a ralhar-lhe, enquanto um homem tenta evitar que outro indivíduo vá à escadaria sombria para ajustar contas com "o filho da puta da camisola verde".
"Não há espiga... É sempre assim", sentencia um homem encostado a uma parede. São, portanto, normais, as ameaças e cenas de pancadaria no Horizonte. "É por causa da droga", diz ainda, impassível, o mesmo homem.
Metralhadoras e Porsche
A "normalidade" deste quase ajuste de contas tem paralelo com outro ocorrido dois dias antes na Quinta do Lavrado. Os dois agentes da Polícia Municipal contratados para guardarem duas garagens onde vai nascer um centro municipal de apoio para toxicodependentes, alcoólicos, prostitutas, sobressaltam-se ligeiramente com um matraquear inesperado. "Isto foi uma rajada de metralhadora", diz um deles.
Não se escutam mais tiros e no pátio por cima das garagens, a menos de dois metros dos polícias, vendedores e compradores de droga prosseguem nas suas negociatas. Na rua continuam a girar inúmeros automóveis. "Isto é tudo malta que vem comprar produto", diz um dos agentes. Passam carros de gama alta. De um deles, um Porsche, sai uma provocação para os polícias à porta da garagem: "Até se cagaram todos."
"Isto é normal. Rajadas de metralhadora acho que é a segunda vez que as oiço aqui. Agora tiros isolados acontece muitas vezes. É normal", diz um dos agentes.
Os polícias municipais vincam que só estão na Quinta do Lavrado porque estão em serviço remunerado, mas asseguram que os outros colegas, os que estão afectos a esquadras e ao patrulhamento, cumprem a preceito a missão de combater o tráfico. "Isto é difícil. A polícia é sempre vista a aproximar-se, mas de vez em quando é possível apanhá-los", conta um agente.
Numa operação recente houve polícias que se disfarçaram de operários da construção civil (e fingiram que estavam a trabalhar nas garagens destinadas ao centro de apoio). Quando apareceram as carrinhas a encerrar a estrada e os vendedores de droga começaram a correr até ao descampado no final do alcatrão, os falsos trabalhadores da construção saíram-lhes ao caminho e apanharam-nos. "Foi uma surpresa. Mas é uma artimanha que só dá para utilizar uma vez", diz um dos agentes.
"Andava por aí"
Na Quinta do Lavrado quando alguém diz umas palavras sobre Tiago Fernandes fá-lo com indiferença. A indiferença de quem acha normal que aos 19 anos alguém possa desinvestir numa carreira na televisão para se dedicar à venda de droga.
"Sim, ele aparecia por aí todos os dias", conta um dos "agarrados". Um polícia confirma a assiduidade do jovem que agora se encontra preso: "Às vezes, quando ele chegava, ouvíamos dizer: "Olha o carro do actor, olha o carro do actor...""
Luísa Ambrósio Fernandes, avó de Tiago, tem tempo para trocar algumas palavras com o P2 enquanto aguarda que uma neta, irmã do jovem agora preso preventivamente, a venha buscar para irem visitá-lo na cadeia, na zona prisional anexa à Polícia Judiciária. "Eu não acredito no que por aí se diz. Há sempre gente que fala muito e que fala daquilo que não deve e não sabe."
A avó não sabe se o neto vendia droga. "O que é que ele fazia? Agora não estava nas novelas. Às vezes ficava em casa a ver filmes, outras vezes ia até lá abaixo [à Quinta do Lavrado] com os amigos... Há lá uma casa da juventude, sabe? Andava por aí."Não andava na escola.
Tanto a avó como o irmão de Tiago, Bruno Fernandes, de 15 anos, acreditam na inocência do actor, tanto mais que este, pouco depois de ter sido levado pela PSP, terá garantido que horas depois haveria de estar a comer lagosta. "O meu irmão é uma pessoa alegre e divertida, que ajuda toda a gente", diz Bruno.
A família garante que Tiago tem bom coração. "O meu neto nunca teve nada que se lhe apontasse", diz Luísa Fernandes, que, no entanto, não consegue explicar por que motivo, cerca de duas semanas antes da prisão, apareceram lá em casa diversos polícias a passar revista a tudo e, principalmente, aos pertences do actor.
No meio das telenovelas, poucos se lembram do jovem. António Cordeiro recorda-o mais pelo facto de ter sido mordido, em Outubro de 2004 por um pitbull, o que o levou a ficar internado no Hospital de D. Estefânia. Já Tiago tinha participado em duas telenovelas de grande sucesso. "Normalmente os pais acompanham-nos, cuidam deles. E na maioria dos casos falamos de famílias bem estruturadas. Mas todos se fascinam, famílias e crianças [com a televisão]. E nem todas as crianças têm as mesmas qualidades para lidar com a situação", diz Cordeiro. Na SP Televisão, com que actualmente trabalha, há pessoas atentas, responsáveis por seguir os mais jovens, explica: "Há um controlo o maior possível sobre a actividade fora da família, tem de se acompanhar."
Na Quinta do Lavrado, onde Tiago foi preso, e no Bairro Horizonte, onde mora com os pais e é vizinho da avó, já não há barracas de madeira e zinco, imagem de marca da antiga Curraleira. Mas ainda por lá cirandam os que procuram as doses diárias de heroína. Ali bem perto, de costas voltadas para os bairros sociais, ergue-se imponente, no alto de uma colina, o cemitério do Alto de S. João.
A interminável fileira de jazigos parece querer mandar um recado cá para baixo, onde o corrupio de automóveis não cessa. O carro estaciona-se mas não se desliga: apressado, um dos ocupantes anda cinco ou seis metros, cumprimenta o vendedor e troca dinheiro por uma dose de heroína ou de cocaína. Tudo num ápice, ali a dois passos dos polícias de gratificado que vigiam as garagens em obras. Com Ana Machado