Mergulhar, mergulhar com Caribou

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Aqui há três anos a vida de Dan Snaith deu uma volta. O seu disco "Andorra", o segundo sob o nome Caribou, criou um inesperado brado. Tratava-se de electrónica lúdica, um jogo de "flippers" cósmico que, contrariando a imagem da música electrónica como coisa futurista e maquinal, estava banhado na luz solar com que identificamos alguns dos ícones dos anos 60.

Era um disco de pop electrónica retro-futurista. Era um robô com camisas havaianas e bronzeado que bebia óleo por copos de daiquiri. E era, também e apesar do sucesso, um risco para Snaith: ficar etiquetado para sempre, nunca mais se libertar do rótulo de músico que faz electrónica para quem não gosta de electrónica.

"Eu sabia que as pessoas iam identificar o som de 'Andorra' comigo para sempre", diz Dan Snaith, quando lhe perguntamos se, depois do êxito desse disco, teve receio de ficar preso a uma fórmula. "Eu sabia que iam dizer: 'Ah, Caribou é o tipo que gosta de electrónica e dos anos 60.'"

Esse tipo de comentários não o deixam muito satisfeito. Considera-os não só "tremendamente chatos" como "bastante redutores". Resume as coisas nos mesmos termos que os concorrentes do Big Brother usavam quando falavam com Teresa Guilherme: "Eu não sou só isso."

Como é que um som é líquido?

É verdade, como "Swim", o novo disco, o prova. Não só Snaith não é só isso como "os próprios anos 60 não foram assim tão solares". Esta história é velha: "Cria-se uma narrativa à volta de uma época e essa narrativa sobrepõe-se à realidade." Em termos orwellianos: "Associa-se uma época a um 'slogan'." Mas quando se olha para lá do "slogan" a realidade prega-nos partidas. "O que é a música dos anos 60?", atira. "A música que encontro nos anos 60 era muito variada. Os Silver Apples não soam ao Coltrane e os 13th Floor Elevator não soam aos Beach Boys."
Quando deu pela armadilha, reagiu como os miúdos que se sentem injustiçados: "Fiquei cheio de vontade de fazer um disco que fosse o oposto [de 'Andorra']." Queria que fosse difícil identificá-lo com uma estética. Que não pudessem dizer "Caribou soa aos anos 60". Caribou não soa aos anos 60, soa a um rapaz de 6 anos.

"Swim" é uma tentativa de "fazer música de dança que fosse fluida, que parecesse água". Um tipo ouve esta definição do outro lado da linha do telefone e dá por si a fazer de advogado do diabo: "Como é que um som é líquido?"

É neste ponto que Dan Snaith começa a revelar-se uma personagem curiosa e contraditória: ao mesmo tempo um eremita e um conversador entusiasmado, um pensador da música e um emocionado dos sons, um "geek" da quinquilharia electrónica e um antimatemático.

Conversa sobre tudo, seja o som da sua torradeira ou a frequência de uma nota, com o entusiasmo de uma criança de cinco anos que acabou de passar de nível na sua consola. Tem teorias sobre isto e aquilo, discorre sobre a história da música, vai buscar imagens inusitadas para se explicar.

Conversar com este homem é um prazer porque não há nele um miligrama de pose. Quando lhe perguntamos "Como é que um som é líquido?", mal passou um segundo e ele já tem múltiplas explicações na ponta da língua.

Teoria um: "Se for um som de sintetizador, ou qualquer outro, é preciso que flua de um ouvido para outro, que o 'pitch' suba e desça."
Teoria dois: "O som tem de parecer uma onda. Tem de ser o oposto de um som fixo, ou de um som metálico. O que eu queria era isso: o oposto de um som fixo e metálico."

Teoria três: "Na maior parte dos casos, a música de dança é feita de 'samples' e 'loops', portanto de repetição. Eu quero que os elementos que se repetem não se repitam. Quero que esteja sempre tudo a evoluir, como uma corrente a contornar os seixos no fundo da água."
Teoria quatro: "Se atirarmos pedras ao mesmo tempo para a água, vemos que se forma um padrão complexo a partir da intersecção de simples ondas concêntricas."

Podíamos continuar, mas isto é suficiente para se traçar uma imagem da mente hiperactiva do rapaz. Confessa que "Swim" "é o primeiro disco para o qual tinha um conceito" e isso levou-o a "criar regras": por exemplo, "se um som oscila para a frente e para trás a uma velocidade, outro som tinha de oscilar a outra velocidade".

Dá outros exemplos, uns mais imagéticos, outros mais teóricos, e depois, qual adolescente que nota que está a falar sozinho há minutos, tem um acesso de autoconsciência: "Isto não quer dizer que eu tenha uma aproximação matemática à música." (É difícil não gostar deste rapaz.)
Façamos aqui um interlúdio para rápidas explicações: Snaith consegue mesmo fazer de "Swim" um disco aquático, no sentido em que Robert Wyatt (em "Rock Bottom") ou Matt Elliott ("The Mess We Made") fizeram discos aquáticos. E sem dúvida que a solaridade de "Andorra" surge aqui dirimida. Mas não se pense que "Swim" é um disco com a carga ontológica daqueles atrás mencionados, ou que é apenas uma experiência quase matemática. Snaith é um tipo lúdico, o que torna a sua música, por mais experimental que seja, prazenteira, mas também não é um analista laboratorial.

"Pensar matematicamente como funciona a música é uma mentira. É reducionismo", atira. "É interessante saber a que frequência está uma nota, mas isso não quer dizer que se saiba como é que ela resulta emocionalmente ao ouvido das pessoas." O que encanta Snaith na música, tanto enquanto ouvinte como praticante, "é o que fica no espaço entre o que sabemos e o que não sabemos cientificamente da música".
Diz ter prazer nas suas incapacidades e no desconhecido que surge sempre que quer fazer uma faixa. "Adoro quando não sabemos exactamente como algo funciona mas temos uma iluminação de como fazer. Temos um instinto. Se soubéssemos exactamente como fazer as coisas", diz, numa imagem assaz feliz, "se soubéssemos como reproduzir exactamente a música que está na nossa cabeça, não havia interesse nenhum em fazê-la".

O tipo que gostava de falhar

Não saber por completo o que está a fazer pode dar muito prazer ao senhor Caribou mas também dá muito trabalho. A título de exemplo mencione-se o número de faixas que fez para este disco: 600. Leram bem: 600.

Um número destes transmite a imagem de um eremita zangado com a vida, a procurar ultrapassar as suas limitações técnicas. Mas Snaith, pese embora aceitando ser eremita e perfeccionista, rejeita conotações negativas da solidão que este processo implica.

"Eu fiz 600 faixas, é verdade, mas quero que fique claro que não as fiz propositadamente para este disco. Simplesmente, todos os dias acordo e apetece-me fazer canções. Acho que se ninguém me editasse os discos eu fazia-as na mesma."

Resumindo: não é uma fábrica, é um miúdo excitado.

"O ponto de partida pode ser qualquer coisa. Um instrumento ou um som de outro disco. Tenho instrumentos, 'samplers', 'laptop', uma data de coisas diferentes. Posso começar por qualquer lado, posso começar com uma simples brincadeira de mudar digitalmente um som. Num dia acordo com um som de guitarra e produzo-o de modo a que não soe a uma guitarra. Noutro, canto por cima de umas notas de piano e depois retiro o piano. Posso ficar a experimentar gravar o som da minha torradeira e tentar perceber como é que esse som pode encaixar numa faixa." (Vá lá que, dado o tema do disco, não lhe deu para enfiar a torradeira na água da banheira.)

Pelo que entre torradeiras, portas, tachos e panelas, instrumentos electrificados e acústicos, entre parafernália computacional e tralha avulsa, mal acorda Snaith tem muitos brinquedos ao seu dispor. Pelo que, mais que um plano bem traçado que tem de levar a cabo, ele tem milhares de peças de Lego que vai encaixando e que espera que "por milagre" batam certo com a ideia inicial: fazer o Lego soar a mergulho.

Snaith tem verdadeiro gosto em ficar à conversa sobre as possibilidades de criar sons musicais novos a partir de sons a que estamos habituados, seja uma guitarra ou uma torradeira. Repete que uma das coisa que o fascinam é "como fazer um novo som". Também sobre isto tem teorias: "Um dos talentos que se tem de ter é o de reconhecer a potencialidade de um elemento. Pegar numa caixa de ritmo e puxá-la para a frente na mistura e assim criar um novo género. Uma coisa tão simples quanto isto."

Esse lado de constante teorização é outro dos aspectos fascinantes deste rapaz grande para quem tudo são peças de puzzle que encaixam umas nas outras por (faz questão de dizer) mera sorte. De "reconhecer a potencialidade de um novo elemento" salta para uma teoria da história da música que se pode resumir assim: "As grandes mudanças na música têm a ver com tecnologia." Não tem a mínima dúvida disso - no que está absolutamente correcto - e até dá exemplos: "Isto começa logo com o Bach a compor para piano forte." (No que está errado: há exemplos anteriores.)

Mas a graça disto é a distância que vai entre o seu lado de miúdo perdido numa loja de brinquedos e o seu lado teórico. "Para mim e para todos os outros músicos o importante é encontrar um equilíbrio entre lidar com a tecnologia e comunicar uma emoção."

Tem "a impressão de que o que [faz] fica a milhas de distância da música" com que sonha. "Muita da minha música é o resultado de não conseguir fazer o que estava na minha cabeça", diz. Mas se a ideia é, e repete incessantemente, "transmitir algo emocionalmente relevante" para o ouvinte, então está tudo OK: em "Swim" consegue-o de novo. Algo mais sombrio que "Andorra", menos harmónico, mais esguio e hipnótico.

Algo que não lembra uma adolescência hedonista nem os anos 60, mas também não é perigoso como um mergulho de uma escarpa com rochas à espera um metro abaixo da linha de água. Algo que é antes tão simples e complexo como o cruzamento das ondinhas provocadas por várias pedras atiradas para a água. Pensando bem, não é um disco retro. É a infância do futuro.

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