Há um livro, "Diários de Bicicleta", e um disco a meias com Fatboy Slim, "Here Lies Love", sobre a vida de Imelda Marcos. De David Byrne habituámo-nos a esperar o inesperado. Mas desta vez foi longe. Ou não. Porque se existe algo que define o músico, o fotógrafo, o escritor, o realizador ou o artista é essa capacidade de se abrir ao mundo e partilhar o seu conhecimento das mais diversas formas - com perplexidade ou ironia, mas sempre com curiosidade. Em Novembro, Byrne e a companheira, a artista Cindy Sherman, estiveram no júri do Estoril Film Festival. Foi ali que falámos com ele.
Já deu o seu passeio matinal de bicicleta?
Sim, mas foi um pequeno passeio, apenas para desentorpecer as pernas. Dei uma grande volta, até Sintra. Não sou militante da bicicleta. Não é nada disso. Essencialmente gosto de andar de bicicleta porque é prático e agradável. Mas não tenho tido muito tempo, entre ver filmes e dar entrevistas.
A percepção dos lugares transforma-se circulando de bicicleta. Isso agrada-lhe?
Sim. Para coisas mais práticas e quotidianas é preferível a bicicleta a andar a pé. Se temos que apanhar um táxi ou um autocarro a viagem transforma-se numa outra coisa: perde a dimensão humana, bairrista. De bicicleta, parece que nunca saímos do nosso bairro.
O livro chama-se "Diários de Bicicleta", mas não é sobre ciclismo. É sobre a forma como olha para as cidades.
É verdade. Mas só tive essa percepção quando comecei a compilar todos os textos que tinha reunido. A princípio era apenas um diário que mantive durante 15 anos. Quando andava em digressão, levava sempre uma bicicleta e acabava por explorar as cidades dessa forma. O mesmo acontece em Nova Iorque onde utilizo quase diariamente a bicicleta, mesmo à noite quando vou a uma inauguração ou a um concerto. Mas o diário foi sendo actualizado, essencialmente, durante as viagens. Quando olhei retrospectivamente para a maior parte dos textos percebi que o ciclismo lúdico poderia servir de elemento de ligação dessas reflexões sobre as cidades. Algumas estão carregadas de história. Outras são lugares imersos em cenas musicais. Noutras é a arte contemporânea que é efervescente. Cada cidade tem a sua identidade e comecei a interrogar-me sobre os seus erros e também o que as faz funcionar de forma saudável.
E o que é que faz uma cidade funcionar?
É uma questão difícil... [risos]. Não creio que exista uma resposta. Diria que em comparação com as cidades americanas, as cidades na Europa estão mais preparadas para o futuro. Têm centros históricos densos, compactos do ponto de vista populacional. Urbanisticamente também me parecem pensadas de forma mais dinâmica e humana, com bairros onde se pode circular a pé ou de bicicleta. As cidades são sítios onde se trocam ideias, mas onde nos podemos permitir falhar também. São locais onde podemos escolher ser quem somos. Por exemplo, uma cidade como Berlim parece funcionar bem. É daquelas cidades onde as transformações operadas melhoraram a cidade, não a aviltaram, o que não é muito comum. É uma grande cidade, mas possui uma escala humana. É surpreendente como funciona muito bem.
Qual é a cidade ideal para um ciclista?
Também não existe um modelo. Se existirem ciclovias para bicicletas, isso é excelente. É importante que os condutores de carros saibam interagir com os ciclistas. Roma, por exemplo, é uma cidade caótica em termos de circulação automóvel, mas magnífica para andar de bicicleta. Nova Iorque, nos anos 80 e 90, era completamente anti-bicicletas. Depois, aos poucos, o panorama foi mudando.
O clima é importante também. Uma temperatura constante faz com que exista mais disponibilidade para pedalar. Lisboa tem isso.
Mas Lisboa, topograficamente, é uma cidade difícil.
Não sinto isso, pelo menos no centro, onde parece ser uma cidade amigável para quem quer ir para o emprego a pé ou de bicicleta. Talvez a bicicleta não faça parte, ainda, da rotina das pessoas, mas tenho dúvidas que o problema seja o relevo acidentado. É antes uma questão civilizacional. De aposta na qualidade de vida de cada um.
Muitas cidades americanas não têm altos e baixos pronunciados, mas temos outros problemas mais graves. É uma sociedade de auto-estradas, totalmente pensada para os carros. Os carros são maravilhosos, mas parece-me que dominam as cidades há demasiado tempo.
Há quem defenda que a derrapagem do preço do petróleo e a crise financeira global apenas vieram mostrar que o estilo de vida ocidental terá que mudar radicalmente. Revê-se nessas teorias?
Totalmente. E isso vai acontecer mais rapidamente do que esperamos. Nos EUA estamos finalmente a discutir com seriedade o problema dos subúrbios, inteiramente imaginados para o carro. Temos que nos aproximar uns dos outros. Os carros e os subúrbios afastam.
Numa das passagens do livro transcreve um passeio de bicicleta por Detroit e o que nos devolve é desolador.
Detroit é um exemplo extremo, aquele de que todas as pessoas falam: é a "cidade-fantasma". Mas neste momento existem outras cidades bem mais bizarras. Os subúrbios têm qualquer coisa de mórbido. Em Phoenix ou em algumas cidades da Flórida, onde a especulação imobiliária foi conduzida ao extremo, vemos famílias inteiras endividadas a regressarem às cidades. O sonho da casa no subúrbio, com jardim e carro estacionado à frente, está a ruir. O centro de Detroit, dentro de 20 anos, poderá ser uma quinta gigante, o que não é mau de todo... [risos]. Mas muitas outras cidades americanas serão "cidades-fantasmas" em 20 anos.
A música, a arte e a cultura em geral estão intimamente ligadas ao desenvolvimento e dinâmica das cidades. Em Nova Iorque, nos anos 70, quando os Talking Heads surgiram, falava-se imenso de Manhattan. Agora parece ser Brooklyn, o bairro onde tudo parece acontecer nas artes e na música.
Sim. Passo o tempo a assistir a concertos ou performances em Brooklyn. Os restaurantes também são óptimos. Mas a maior parte das galerias estão a mudar-se para Manhattan, de maneira que vamos recuperar o encanto perdido outra vez... [risos]. Essas dinâmicas são interessantes, claro, dinamizam a vida da cidade. Brooklyn já está a ficar caro, por isso, muito rapidamente outro local nascerá para albergar artistas, músicos e boémios. Não é nenhum drama. É um processo normal.
As cidades são mais reconhecidas por essas "cenas", que irrompem com espontaneidade, do que pela cultura mais institucionalizada, não lhe parece?
Absolutamente. Não é pelo facto de uma cidade ter uma "pera, uma orquestra sinfónica ou uma série de monumentos que nos vamos lembrar dela. Mas se tiver uma "cena" artística vibrante e uma vida cultural que estimule, isso fará a diferença. Não só para as pessoas que vivem nesse local, como para quem vem de fora. Não basta construir apartamentos e estradas. É preciso criar estímulos criativos. E nisso a cultura é fundamental. É necessário que as cidades sejam locais onde apetece viver, onde nos sintamos inspirados, onde tenhamos a experiência de criar, sejamos artistas ou homens de negócios.
Quando chega a uma cidade tem objectivos, uma lista de coisas do que quer fazer e dos locais que deseja visitar, ou deixa-se ir?
Gosto de me perder, mas não muito... [risos]. Gosto da vida orgânica, no sentido em que privilegio os cafés, as pequenas lojas e os mercados. É a partir daí que apreendo um pouco da pulsação da cidade, falando com as pessoas. É na rua que está a inspiração. Olhar para as pessoas, os gestos, o que dizem, tentar percebê-las.
No livro, diz que uma das suas cidades preferidas é Nova Orleães. Outra é Nova Iorque. Duas metrópoles que passaram, nos últimos anos, por acontecimentos traumatizantes. Já superaram?
Não arrisco uma resposta definitiva, mas diria que o facto de serem cidades com uma identidade bem definida, ajudou-as a superar as dificuldades de forma mais rápida. A maior parte das cidades americanas são imitações umas das outras. Essas duas não. Portland e São Francisco também possuem identidade. Há um temperamento nas pessoas e nos lugares muito forte. Há uma estrutura. Qualquer coisa que lhes permite reerguer, mesmo nos momentos mais complicados. E são também cidades de música.
Fala com alguma veneração da Europa. Nasceu na Escócia, mas cresceu nos EUA. Sente-se europeu?
Não sei. Gosto dos EUA, mas também gosto de manter distância. Às vezes sinto-me um pouco estrangeiro. Numa série de áreas - transportes, saúde, cultura, urbanismo - os europeus tomaram uma série de medidas que gostava que os americanos seguissem. Os europeus são mais maduros, nesse sentido.
Falando agora de música. Algumas das bandas mais relevantes dos últimos anos, como Arcade Fire, Dirty Projectors ou Vampire Weekend, citam os Talking Heads como grande influência. Como reage a essa veneração?
É surpreendente. Durante muitos anos, talvez parte da década de 90 e princípio dos anos 00, ninguém ligou muito aos Talking Heads. Enfim, estas coisas nem sempre têm uma lógica precisa, mas pensei que a termos alguma influência sobre o futuro da música popular isso já teria acontecido. Acontecer agora é lisonjeador, mas também muito inesperado.
O facto de terem criado uma música simultaneamente meditativa e física, que ia recolher referências às mais diversas partes do mundo, terá algo a ver com isso?
Talvez. Não sei muito bem. O problema é quando essas vagas de inspiração apenas se alimentam da nostalgia. Não tenho paciência para isso. No caso dos grupos que mencionou não é isso que se passa, são dos grupos que sigo com atenção. Mas neles os Talking Heads são apenas uma influência no meio de outras.
Imagino que já tenham sido aliciados para um regresso?
Sim, mas é algo que não me interessa. Os meus discos não vendem tanto como os dos Talking Heads, mas não é por aí. Criativamente estou noutro ponto e é isso que me interessa.
Acabou um projecto com Fatboy Slim sobre a vida de Imelda Marcos. Como é que se foi meter nisso?
Diz bem... [risos]. É um projecto meio louco, que demorou muito mais do que o previsto, uma espécie de "disco-ópera" com mais de vinte convidados, como St. Vincent, Róisin Murphy, Sharon Jones, Tori Amos, Santigold ou Natalie Merchant.
Qual foi o critério na escolha de todas essas cantoras?
Algumas são simplesmente amigas, as outras eram cantoras de que gostava e que encaixavam em determinadas canções.
Essencialmente é um disco de música de dança, com alguma exuberância pelo meio. É um disco emocional e dramático, como a própria Imelda Marcos... [risos]. É possível que venha a ser apresentado um musical em Nova Iorque, numa pequena sala, mas ainda não é certo.
Digamos que Fatboy Slim não é propriamente Brian Eno...
Muita gente diz o mesmo. Mas isso também é interessante. O método de trabalho não foi muito diferente daquele que utilizaria com Brian Eno. No fim de contas, trata-se de trocar ficheiros musicais durante meses, recorrendo a "samples" e "loops", até criarmos uma canção. O que importa é a ideia que se quer transmitir e em função dela escolhem-se os sons e as vozes e, nesse processo de negociação, foi óptimo trabalhar com alguém como Fatboy Slim.