A maldição de Katyn
Katyn, 70 anos depois: o local onde foram executados pelas forças soviéticas mais de 21 mil elementos da elite polaca em 1940 tornou-se ontem o local em que caiu o avião que levava o Presidente polaco e dezenas de altos responsáveis do país. A comitiva devia participar numa cerimónia em memória das vítimas.
"É um sítio maldito", disse o antigo Presidente, Aleksander Kwasniewski, à TVN24. "Dá-me arrepios na espinha. Primeiro a elite da Segunda República polaca é assassinada na floresta de Smolensk, agora a elite intelectual da Terceira República morre neste acidente trágico. Esta é uma ferida que vai ser muito difícil de curar."
O que aconteceu em Katyn é uma das questões que mais têm dividido polacos e russos, e é irónico que o acidente de ontem aconteça quando, uns dias antes, a Rússia deu passos importantes: pela primeira vez, um responsável russo, Vladimir Putin, convidou um responsável polaco, o primeiro-ministro, Donald Tusk, para uma cerimónia em Katyn.
Em mais um sinal, Moscovo tinha autorizado a emissão, em estreia, num canal público de televisão, do filme Katyn, do realizador polaco Andrezej Wajda, cujo pai foi morto em Katyn. "Nunca pensei que veria esse dia", reagiu o realizador do filme (que fala também do encobrimento soviético).
A Rússia só admitiu responsabilidade pelas mortes polacas em Katyn em 1990, pela voz do então presidente, Mikhail Gorbachov. Mas ainda assim, até hoje há quem, na Rússia, continue a atribuir a autoria do massacre aos nazis.
Em Setembro de 1939, no início da II Guerra Mundial, Estaline tinha um acordo secreto com a Alemanha que previa a divisão da Polónia entre os dois países. Depois de invadir o país, o Exército Vermelho fez cerca de 230 mil prisioneiros polacos.
Em Outubro, a polícia secreta NKVD, precursora do KGB, interroga os prisioneiros activos politicamente: generais, professores universitários, engenheiros, diplomatas, funcionários públicos, políticos, escritores; membros da elite da Polónia que tinham participado na campanha contra o Exército Vermelho em 1920.
A conclusão dos interrogatórios foi que os prisioneiros "tentam continuar as suas acções contra-revolucionárias e anti-soviéticas", dizia uma resolução secreta do comité central do partido comunista russo de Março de 1940, citado agora pela BBC on-line. "Todos esperam a sua libertação para participar activamente numa luta contra o Governo soviético".
Baseado nesta conclusão, Estaline deu a ordem: os prisioneiros seriam assassinados. Num dia, foram mortos quatro mil polacos e, ao longo de várias semanas, morreram mais de 20 mil às mãos da polícia soviética.
Tusk e Putin juntos
Na cerimónia com Tusk, na quarta-feira passada, Putin criticou "as mentiras cínicas que têm ensombrado a verdade sobre as mortes de Katyn" mas acrescentou que "seria também uma mentira e uma manipulação colocar a culpa destes crimes no povo russo".
Putin não pediu desculpas, algo reivindicado por muitos polacos. A Polónia quer, ainda, acesso aos arquivos sobre o massacre - diz o diário espanhol El País que, dos 183 volumes da investigação sobre Katyn, 116 estão ainda declarados segredo de Estado.
O acidente de ontem não deverá ter grande repercussão nesta reaproximação entre Polónia e Rússia, dizia o antigo editor de Internacional do diário britânico The Telegraph Con Coughlin. Mas terá com certeza um outro efeito: o massacre de Katyn não ficará certamente confinado a um sócapítulo nos manuais escolares de História. Katyn será sinónimo de duas tragédias. M.J.G.