Os lápis Viarco querem ter um museu
Um reclame luminoso da década de 30, desenhos originais de embalagens, um horário escolar que cedeu às regras da ditadura. Espólio nunca antes revelado. A única fábrica de lápis do país quer criar um museu nas suas instalações. A Viarco também pensa no futuro - estará no MoMA em Nova Iorque.
Mora numa caixa de cartão feita à medida. Devidamente acondicio- nado, religiosamente protegido, guardado no escritório da empresa. É uma relíquia. José Miguel Araújo, gerente da Viarco, a única fábrica de lápis do país, situada em São João da Madeira, retira com todo o cuidado o reclame luminoso de um refúgio de décadas. O reclame da década de 1930. "O lápis que glorifica a indústria nacional" é o slogan encaixado entre os vidros emoldurados numa estrutura de madeira rectangular. A frase ganha cor quando a ficha se liga à electricidade. O nome Viarco também.
A empresa ainda não conseguiu refazer os passos e os percursos do reclame, que nunca expôs publicamente e nunca foi sujeito a limpeza "interna", com receio de que alguma peça se perca, ou que deixe de funcionar. A etiqueta desvenda a origem: António Rodrigues Praça, na Rua do Almada, no Porto, especialista em "novidades em reclamos luminosos".
Há mais objectos que a Viarco nunca sujeitou a olhares alheios. Por falta de oportunidade e porque há elementos que só fazem sentido numa exposição alargada sobre a sua própria história. Uma história que atravessou uma ditadura. No horário escolar que a Viarco criou na década de 1960 com o slogan "Um produto português para estudantes portugueses", com um lápis vermelho n.º 2 atravessado na diagonal a toda a largura, há uma mulher com uma saia acima do joelho desenhada cuidadosamente à mão. É o desenho original desse horário que sofreu uma alteração: a saia, entretanto, desceu praticamente até aos tornozelos da senhora. É essa versão final do horário que virá a ser distribuída pela Viarco e que andará na mão dos estudantes de então.
Guardado está outro desenho feito com lápis Viarco e com a figura de Salazar em destaque, com data de 1950. Oferta de António Soares da Silva, funcionário da empresa, que faz questão de assinalar o gesto: "Oferece ao seu mui digno patrão Exmo. senhor Vieira Araújo."
José Miguel Araújo acondicionou numa capa as provas originais para as embalagens dos lápis Viarco, empresa familiar que já vai na quarta geração. A tinta ainda parece fresca. O desenho para a caixa de 12 lápis de cor com uma menina bem-comportada com o abecedário no regaço, ou o sinistro macaco vestido noutra embalagem são também objectos únicos. Não há indicações dos seus autores, mas o gerente da empresa acredita que os nomes serão encontrados. É uma questão de pesquisa. Nas pilhas de livros de contabilidade, no primeiro piso, que o tempo cobriu de pó e ainda não foram remexidos como merecem, estará a descrição precisa do pagamento aos profissionais que a Viarco contratava. E muitas outras histórias.
José Miguel confessa que gosta de mexer nos papéis e de ficar com as mãos cheias de pó, mas a vida de empresário não lhe tem dado a disponibilidade necessária para passar da vontade à investigação. "Mas não tenho dúvidas de que iremos encontrar surpresas engraçadas."
Há, no entanto, um livro de contabilidade que passou a fazer parte do grupo dos objectos de culto. Um livro com capa de madeira já rachada ao meio, da década de 1950, com separadores de couro com as letras do abecedário. Caligrafia perfeita escrita a preto, azul e vermelho. Números no deve, haver e saldo. Clientes de Portimão, Silves, Tondela, Aveiro, Faro, de todo o país.
O lápis como propaganda
Numa caixa de papelão estão embalagens, catálogos, produtos da concorrência. A Viarco tinha de estar atenta ao mercado e de olho no que a Europa andava a produzir. Um catálogo antigo da alemã Faber, uma caixa de lápis da espanhola Alpino, outra da alemã Stabilo, produtos da alemã Staedtler, caixas de minas. "Temos diverso material que muito provavelmente as próprias empresas já não terão", adianta José Miguel.
Desde o piso superior até às arrecadações nas traseiras da fábrica, há objectos que a Viarco guarda com cuidado. Numa pequena caixa de papelão estão centenas de nomes de empresas, de logótipos, de slogans, de antigos clientes que usavam lápis como propaganda, ao longo das últimas décadas. Fábricas que ainda laboram, outras que já desapareceram, algumas que mudaram de produto. Os pequenos cartões podem ser importantes. Um ponto de partida para contar percursos a partir da publicidade que era feita nos lápis. "Poderá fazer-se a história dessas indústrias, das suas actividades ao longo dos tempos e da própria mudança relativamente aos consumidores deste tipo de produto até aos nossos dias."
E há muito por onde remexer. "Temos desde retrosarias a multinacionais, da Coca-Cola à Nestlé. O lápis é um produto transversal a várias empresas." O licor Beirão também constava na lista. Em 1951, a Água de Carvalhelhos encomendava dez grosas de lápis amarelos, cabeça vermelha, com publicidade a preto. O Café Alegria da Manhã, em Lisboa, pedia cinco grosas de várias cores em 1954 e a quantidade foi aumentando ao longo dessa década. A Viarco guarda também um completo mostruário das penas de aço da fábrica Zeferino Alves Moreira, em Lisboa, de 1962, altura em que produzia canetas de aparo.
A empresa organizava passeios pelo país e mandava imprimir um pequeno roteiro da viagem com indicações úteis. Além da foto a preto e branco dessa excursão de 1956, com um grupo de trabalhadores, a Viarco conserva um papel dobrado em várias partes, em que se refere o número de indústrias são-joanenses no activo nesse ano. Dezanove fábricas de chapéus, 120 de calçado, oito de bonés, seis de vassouras e uma única de lápis. "Nessa altura, havia esse cuidado de se saber o que existia, hoje já não é bem assim...", repara José Miguel.
Na parte da produção da Viarco, há uma máquina que parou de laborar há cerca de dois anos e que desapareceu do mapa da indústria do sector há mais de 40. Um equipamento de ferro muito escuro, com estruturas coladas à parede, que serviam para pintar a cabeça dos lápis de uma forma artesanal. Balde de tinta em baixo, com a cor pretendida, lápis metidos num pedaço de madeira, com furos para o encaixe. Os ferros desciam e subiam para molhar a ponta do lápis ou pintar as canetas de aparo. Os "braços" da máquina já não funcionam, mas ainda se guardam os toros de madeira que serviam para mexer a tinta. Como preciosas recordações. Pedaços de todas as cores que, com o tempo e anos de serviço, foram ganhando as suas formas, normalmente uma pequena bola na ponta.
No museu dos chapéus
Neste momento, há um objecto da Viarco, criado para fins comerciais, que está a chamar a atenção de designers. Os Magneto"s são 36 modelos diferentes de lápis com a aplicação magnética que permite fixá-los em superfícies metálicas, como frigoríficos ou secretárias. E estão a causar furor. Os lápis estão expostos numa bola de metal que causa um surpreendente efeito visual. Há clientes da Viarco interessados em comprar os Magneto"s sobretudo por causa do expositor. "Temos um cliente em Espanha que está a personalizar os expositores e a vendê-los para museus de todo o mundo." Desde Dezembro do ano passado, o cliente já gastou cerca de 10 mil euros nessa mercadoria.
Até 9 de Maio, a fábrica de lápis mostra pela primeira vez algum do seu espólio no Museu da Chapelaria de São João da Madeira. A empresa mostra também alguns objectos do seu processo de fabrico: uma máquina de impressão, uma balança com argila e grafite, os sacos para a secagem da grafite em estufa, um tabuleiro de minas, uma tábua de medição, pigmentos de cor. A grafite chega da Alemanha e entra num forno regulado a mil graus. O Museu da Chapelaria, por sua vez, investigou a fundo um novo universo e revela que John Steinbeck utilizou mais de 300 lápis para escrever A Leste do Paraíso; que a revista Forbes considerou o lápis a quarta invenção mais importante para a humanidade, à frente do telescópio ou da agulha; e que um lápis normal, de 18 centímetros, consegue riscar uma linha de 55 quilómetros ou escrever mais de 45 mil palavras.
Um Século, Dez Lápis, Cem Desenhos é outra exposição que a Viarco planeou e que está patente na torre da metalúrgica Oliva, até 17 de Abril, também em São João da Madeira. O projecto começou a ser idealizado em 2006 com o Espaço de Intervenção Cultural Maus Hábitos e a Associação Cultural Saco Azul. A ideia era colocar lápis a circular de mão em mão. E assim nasceu o Viarco Express com um lápis fabricado propositadamente para a ocasião: com 22 centímetros, mais quatro do que o habitual, e uma mina mais larga para durar mais tempo. Dez lápis circularam por mãos de artistas durante três anos. Paula Rego, Joana Vasconcelos, Siza Vieira, Ângelo de Sousa, Pedro Cabrita Reis, Miguel Vieira, José Emídio, Graça Morais. Noventa e quatro artistas para perto de cem desenhos numa exposição que foi inaugurada no museu da Presidência da República em Outubro do ano passado, que passou para São João da Madeira e prepara-se para circular pelo país. José Miguel garante que a exposição permite fazer parte da história da cartografia do desenho em Portugal. A passagem dos lápis está registada e dessa forma é possível perceber ligações. "É possível traçar o percurso de relacionamento entre os artistas, as suas opções. E o que também é interessante neste projecto é que não há aqui um curador." No final do ano, as obras serão leiloadas: um terço será dividido pelos artistas participantes e um terço pelos Maus Hábitos. O terço que sobra ficará nas mãos da Viarco, que irá aplicá-lo em materiais escolares para doar a escolas com crianças carenciadas.
Criar o museu do lápis nunca saiu dos planos da Viarco. Mas falta ligar os motores, conjugar parcerias, limpar o pó a muita documentação, criar um roteiro coerente. José Miguel defende que esse museu só faz sentido dentro da própria fábrica. "O lugar das minas é ali, ali onde elas estão", justifica. O valor do espólio parece consensual. Em 2003, o Instituto Português de Museus foi ao local analisar se um projecto museológico teria pernas para andar. O parecer foi positivo. "O instituto produziu um relatório no qual referia que o património da Viarco tinha interesse e relevância." O gerente tem, porém, um pressentimento: "Se a fábrica tivesse fechado, o museu já existia. Temos exemplos sucessivos, em que surgem museus em espaços representativos da arqueologia industrial." Por outro lado, José Miguel tem também noção dos constrangimentos que possam existir por a Viarco ser uma empresa privada.
Mesmo assim, o empresário defende um museu vivo, no activo, no seu habitat natural. "Não queremos um museu para ficarmos agarrados ao passado, mas sim para utilizá-lo em benefício do futuro", revela. "O espólio existe, o espaço também e temos a possibilidade de mostrar um património que é de todos, que faz parte da memória colectiva." Com outra missão que José Miguel faz questão de sublinhar. "Ao mesmo tempo, esse museu terá de ter outra função, ou seja, comunicar a empresa, funcionar como um instrumento de marketing, promover a imagem da Viarco", explica. Promover o futuro. Sempre com mais planos. "Poderemos ter a maior colecção de lápis do mundo nesse museu. Temos uma colecção e conhecemos muita gente que também colecciona."
A Viarco está constantemente a inovar: a sua linha ArtGraf, com aguarela de grafite e bastão artesanal de grafite aguarelável, são inovações mundiais. Os novos produtos da Viarco estarão no MoMA, no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, a partir de Maio, inseridos numa exposição de produtos portugueses. Mas há fortes possibilidades de posteriormente integrarem a exposição permanente da loja do museu norte-americano. E já há contactos para que a nova linha da Viarco chegue ao MoMA do Japão. Recentemente, a empresa lançou para o mercado os Soft Carbon, lápis muito semelhantes aos de carvão tradicional, mas macios no contacto com o papel, envoltos numa embalagem com design vintage. E há ainda edições contadas. Viarco Silkscreen Séries, 24 lápis de cor aguareláveis, são uma produção limitada a 1500 unidades com uma embalagem em cartão serigrafado. Economicamente falando, a Viarco move-se sobretudo no mercado português, cerca de 90 por cento da produção é escoada em território nacional, mas este ano o espaço externo será meticulosamente explorado, com mais vendas para a Alemanha e entrada no mercado francês, com uma distribuição assente em representantes locais. No ano passado, a empresa facturou cerca de 500 mil euros.
Ideias: a matéria-prima
A Viarco não esquece quem são os clientes e utilizadores dos seus produtos. É habitual recolher sugestões, fazer perguntas, incomodar artistas, designers. "Amigos que cravamos absoluta e absurdamente até ao limite", admite José Miguel. "A melhor matéria-prima que temos disponível são as ideias, sem elas estamos desprovidos de competitividade", acrescenta. No Verão de 2008, o gerente da Viarco decidiu disponibilizar 500 metros quadrados da antiga fábrica de chapelaria, que funcionou nas instalações da empresa, a dois artistas: um designer de moda e um artista plástico. José Miguel chama-lhe laboratórios de ideias. A empresa cede o espaço gratuitamente, os inquilinos experimentam os produtos que estão a ser analisados, antes de serem lançados no mercado. "Temos o espaço disponível, o que não representa um investimento para nós. E nós necessitamos de conhecimento se quisermos aprofundar e desenvolver produtos. Temos de desenvolver o conhecimento interno para percebermos quais as necessidades potenciais e efectivas dos materiais que os artistas utilizam", sublinha, realçando que o contacto com gente criativa é sempre uma mais-valia. "Gente desprovida de pruridos, que avança, que não tem medo de propor, de dizer, de sugerir", concretiza.
A parceria tem corrido bem. O artista plástico Diogo Pimentão, que actualmente reside e trabalha em França, fez uma residência de dez dias no atelier da Viarco. Quase duas semanas a sujar as mãos com grafite. Deu resultado. Pimentão, colaborador de uma revista francesa de desenho, voltou a França com vontade de dar a conhecer os produtos da única fábrica de lápis portuguesa. "O que é fantástico. Temos um profissional que acaba por dar a cara por nós", diz José Miguel que olha para os seus ateliers como "uma oportunidade de negócios". "Não temos um sistema apurado de investigação: há muito experimentalismo, muita observação, muita conversa com artistas, com designers." "Por vezes, perguntas disparatadas podem despertar outras ideias", acrescenta. Tudo é visto como um ponto de partida que pode conduzir a qualquer lado. "Não há uma fixação no que nos é pedido. Há uma proposta, há aspectos que são filtrados e tenta-se perceber quais são as necessidades."
No espaço cedido pela Viarco, com mobiliário do século passado, máquinas antigas de costura e de lápis, está Pedro Alves, designer de calçado, chapéus e marroquinaria, autor da marca UMU, que chegou a trabalhar na Hugo Boss, em Itália. Essa disponibilidade da empresa permitiu-lhe executar algumas peças de cariz artesanal, exactamente o que pretende. "Foi óptimo terem-me cedido este espaço. O "Zé" Miguel é uma pessoa com grande coração, um empreendedor que quer criar oportunidades para os artistas crescerem e divulgarem o seu trabalho." Ricardo Pistola, artista plástico, divide o espaço com uma luz imensa com Pedro Alves. Os lápis e as grafites são objectos obrigatórios na sua bancada de trabalho. "Continuamos a trabalhar nos materiais e, sempre que existe um produto novo, vou testando-o", refere. Pistola agradece a possibilidade de criar numa fábrica de lápis, matéria-prima de excelência. "É uma óptima oportunidade ter um espaço para trabalhar e é vantajoso para a Viarco, já que vou sugerindo alguns ajustes." a
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