Pisão espera há 50 anos por uma barragem

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A população vê as promessas de fuga ao isolamento e à pobreza como uma miragem António Carrapato

No Pisão, pequena aldeia do concelho do Crato que há cerca de 50 anos, qual Aldeia da Luz, aguarda ser submersa pelas águas, todos acreditam que é mais fácil acertar nas chaves vencedoras do Euromilhões durante duas semanas consecutivas do que ver a desejada e prometida obra pronta.

Não são mais do que 50 os actuais habitantes do Pisão, lugar escondido das estradas, acoitado num barranco fundo, entre o Crato e Portalegre, que tem como vizinhos o minúsculo lugarejo denominado Monte da Velha e a límpida (e agora furiosa) Ribeira de Seda.

Foi com o fito de aproveitar o caudal desta ribeira, que corre desde a Serra de S. Mamede até à Barragem do Maranhão, que os peritos do Estado Novo, corria a década de 1940, imaginaram a albufeira do Pisão. Haveria de ser algo em grande, com uma capacidade de rega de terrenos agrícolas para, pelo menos, os concelhos do Crato, Alter do Chão e Fronteira. Também teria aproveitamento turístico e, acima de tudo, iria criar postos de trabalho e ajudar a sedentarizar a população. O progresso e a riqueza tantas vezes anunciados teriam apenas um senão: o desaparecimento, por submersão, do Pisão. Nada que o povo, e já lá vai meio século, não tivesse aceite.

"Em 1970 o Pisão tinha mais de 200 habitantes, tinha sete tascas e duas mercearias", diz António João Felizardo, dono do último café que resta no povoado. Ali, paredes meias com a sala destinada aos jantares - quase sempre de peixe apanhado na ribeira vizinha ou à conta das imensas caçadas aos javalis que pejam o local (todos falam de uma batida realizada a cerca de um quilómetro da aldeia e que terminou com 98 porcos abatidos) -, o negócio consiste na venda de dois ou três copos de vinho e outras tantas minis.

"O Pisão está de rastos", diz João Luís Meira, agricultor de 52 anos passados nos campos em redor da aldeia. Explica que o povoado definha a cada dia que passa e dá conta que "30 por cento das casas [as que ficam mais próximas da ribeira] nem sequer têm esgotos". A seu lado é António João Felizardo quem dá mais uma achega para explicar por que motivo definha a terra: "Nos outros lados [noutros povoados] as juntas constroem para a população. Aqui, teve de ser a população, em 1984 ou 1985, a oferecer uma casa para a junta..."

Guterres e nova desilusão

"Já lá vão 50 anos e outros 50 se hão-de passar até que construam a barragem", afirma João Luís Meira, dando assim o seu parecer acerca da obra mais desejada do concelho do Crato e talvez até em todo o distrito de Portalegre.


Na sede do município a obra é uma espécie de bandeira eleitoral agitada por todos os candidatos à câmara local. É assim há 30 anos. Para se conquistarem uns quantos votos (a desertificação do concelho é quase galopante) lá vem à baila, de quatro em quatro anos, a mirífica Barragem do Pisão. Depois, conquistada a vitória eleitoral, a barragem ainda é argumento que se esgrime durante meses, com os autarcas, tão diligentes como isolados do poder central, a desdobrarem-se nos contactos com Lisboa, lembrando que o projecto é uma tábua de salvação no meio de um mar de escolhos mortais.

Em 1997 o sonho quase se tornou realidade. António Guterres era o primeiro-ministro e, de passagem pelo distrito, para ajudar os autarcas socialistas na campanha para autárquicas que então se avizinhavam, lá foi desviado da estrada nacional e levado, ribanceira abaixo, até ao Pisão. Aí, rodeado de jornalistas e no meio da desconfiança do eleitorado local (tradicionalmente comunista), anunciou que a barragem iria ser uma realidade, pois que até já havia o assentimento de Bruxelas para os inevitáveis financiamentos.

A esperança foi maior do que nunca. Muitos dos habitantes começaram a pensar seriamente na mudança. No Crato até já havia terrenos para se construírem as futuras casas dos que para ali se quisessem mudar. Mas eram poucos. A maior parte queria apenas deslocar-se "coisa de 500 metros em linha recta, para o Monte da Velha". "Íamos para o Crato, para junto da praça de touros, para o meio dos ciganos? Não... Mudar para pior não pode ser", dizem.

Mas o sonho da mudança desvaneceu-se quase tão depressa como veio. É que o Partido Socialista perdeu as autárquicas e António Guterres, desiludido, abandonou o Governo. Vieram eleições legislativas e o Partido Social Democrata venceu. O projecto da Barragem do Pisão, obra em vias de se concretizar pela acção de oponentes políticos, passou num ápice ao esquecimento.

A última criança na escola

"O que é que eu penso? O que eu penso é que há muita falta de vontade política. Andamos aqui a engadanhar [a marcar passo] por falta de vontade política. Não me digam que não há 70 milhões de euros para fazer a barragem", diz João Meira, lembrando os "rios de dinheiro que já se gastaram em estudos e mais estudos e que depois são arrumados a um canto para ficar tudo como está".


O lento marcar passo do Pisão "vê-se nas mais pequenas coisas". "Os nossos mortos vão para o Cemitério de Nossa Senhora dos Mártires, a três quilómetros. Não há multibanco e para pagar qualquer conta é preciso ir ao Crato. Médico é de oito em oito dias e é quando é", resume António João Felizardo, que é também o pai de um dos raros menores que ainda há no povoado.

A filha de António João foi, de resto, em 2005, a última criança que frequentou a escola primária no Pisão. "Era ela e a professora. Não havia mais ninguém. Quando a cachopa foi para o Crato, até tive receio, porque ela não estava habituada a estar com mais gente", conta o pai.

As poucas pessoas que ainda moram no Pisão repartem o seu tempo "nas lenhas e na construção e também na cortiça, em sendo tempo dela". Mas já são mesmo muito poucos. Há quatro vezes mais casas fechadas do que aquelas que estão habitadas.

A esperança de ver as ruas cheias "ou pelo menos compostas" passa, ainda e sempre, pela barragem.

No Pisão, terra onde os casamentos já são uma recordação tão distante que até tem barbas, só praticamente os velhos ali permanecem "até ao dia que Deus queira". Isabel Carrilho Bonito tem 73 anos, os últimos 14 dos quais na condição de viúva. Tem 11 filhos, 17 netos e três bisnetos. Dos filhos, apenas três ainda estão na terra. É verdade que há mais dois a morar no Monte da Velha, mas os restantes há muito que foram em demanda de melhor vida para outros sítios, seja no concelho, seja para bem mais longe, como, por exemplo, Coimbra.

"Sempre morei aqui e a minha vida sempre foi vida de pobre", diz a mulher de quem se diz ter sido responsável, em tempos, pelo povoamento de metade da aldeia. "Se algum dia vou sair daqui? Só se for para o Monte da Velha. Mas não acredito nisso. Já passaram 50 anos e outros se 50 se hão-de passar ainda até que façam a barragem. Mas nisso ninguém acredita..."

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