Nos últimos anos - os últimos anos que deixámos de conseguir contar pelos dedos, porque já são para aí uns 15 -, Maria do Céu Ribeiro não foi para o céu, mas foi praticamente para todo o lado (sobretudo para o inferno: o inferno israelo-árabe de "Quatro Horas em Chatila", de Jean Genet, o inferno psiquiátrico de "4.48 Psicose", de Sarah Kane, o inferno gelado de "Persona", de Ingmar Bergman", o inferno post-mortem de "Mãos Mortas", de Howard Barker, o inferno interior de "Molly Bloom", de James Joyce, e podíamos estar horas nisto), quase sempre em salas que não são sequer um décimo desta onde ela corre, a partir de hoje, não pela vida mas contra ela. Nuno Carinhas queria fazer os clássicos no S. João, achou que podia começar com esta "Antígona" que ainda está viva apesar de vir do fundo dos tempos, e do fundo da nossa cabeça de ocidentais (todos gregos, todos filhos do mesmo pai e da mesma mãe: consanguíneos, e às vezes sem olhos, ou cegos daqueles piores, dos que não querem ver), e não se podia fazer a "Antígona" sem ela. Não é só ela a querer ir para todo o lado: é muita gente a querer ir para todo o lado com ela.
"Talvez tenha percebido imediatamente que tinha de fazer a ‘Antígona' com a Maria do Céu quando a vi no ‘Molly Bloom' porque vi coisas com ela que nunca tinha visto. Há uma dureza nela, uma dureza que depois é plasticizada por via de uma técnica e de uma abordagem ao texto extremamente virtuosas, que eu queria muito presenciar", explica ao Ípsilon Nuno Carinhas no final de um ensaio. Não teve de lhe dizer praticamente nada ao longo do processo, nem ela a ele, e não quer dizer que tenha sido fácil porque com ela nunca é: "Ela não é uma Antígona óbvia. Ou melhor, o que ela faz não é propriamente obviar a Antígona".
Também podíamos passar horas nisto: a ouvir os encenadores que já foram com Maria do Céu Ribeiro para todo o lado, até para a guerra como agora Nuno Carinhas, dizer que ela é perigosa. "Perigosa no sentido em que se põe completamente em jogo quando constrói uma personagem e quando está no palco. A Céu tem essa capacidade de se pôr em causa - e isso põe-te em causa. Ela põe-se em risco, põe a sua própria existência em risco", diz Nuno Cardoso, que a enfiou num roupão e numa neurose no final do ano passado, com o "Jardim Zoológico de Cristal" de Tennessee Williams, e vai com ela agora para "A Gaivota", de Tchékhov. "Ela trabalha muito com a emoção, com uma loucura que eu acho muito produtiva - e isso é uma felicidade para quem está fora a encenar e para quem está dentro a contracenar. Foi muito divertido contracenar com ela três minutos na ‘Medeia' das Boas Raparigas [a companhia que Maria do Céu Ribeiro fundou com Carla Miranda quando acabou o curso de Teatro da Academia Contemporânea do Espectáculo, no Porto]. Basicamente, ela pode tudo. É mesmo do melhor que há", continua.
Luís Mestre, que estava fora a encenar essa "Medeia", e que já tinha estado fora a encenar o "4.48 Psicose", de Sarah Kane (ainda nos lembramos do que ele disse então ao Ípsilon: "Percebi que a Maria do Céu Ribeiro era a única actriz em Portugal com quem eu podia fazer isto, e se fosse precisar esperar quatro ou cinco anos por ela eu esperava"), diz que há duas coisas por trás do que a vemos fazer (que é tudo, concorda: "A Céu faz tudo o que o encenador achar que ela é capaz de fazer"): "Um domínio muito virtuoso da palavra e muito trabalho: a Céu é das actrizes que mais trabalham dentro e fora dos ensaios: das actrizes que mais curiosidade têm, que mais lêem, que mais investigam. Está há 15 anos a trabalhar, normalmente à margem dos grandes palcos, e quando a vemos percebemos que todos esses anos estão ali debaixo. É uma actriz de muitas, muitas, muitas camadas. E inteligentíssima". Não se pode viver com ela, não se pode viver sem ela: "Como encenador, há momentos em que não é fácil lutar com uma actriz assim; ao mesmo tempo, qualquer encenador quer lutar com uma actriz assim". "É muito obstinada e muito generosa. A Céu sempre viveu para o teatro. Foi uma opção de vida que ela assumiu integralmente. Não faz outra coisa", acrescenta Carla Miranda.
João Pedro Vaz, que passou anos a ser espectador dela antes de a encenar em "Persona" - onde ela era uma actriz que se calava para sempre depois de fazer a "Electra", o tipo de coisa que também podia acontecer a Maria do Céu Ribeiro, "depois de tantos textos violentos, depois de tantos Howard Barker", o dramaturgo da catástrofe que o teatro britânico praticamente escorraçou e com quem as Boas Raparigas têm quase um pacto de sangue -, ficou surpreendido com a insegurança dela. "Dá-lhe muita disponibilidade, e muita capacidade de trabalho. A Céu tem uma relação muito profunda com os textos, é muito intensa, muito obstinada, mas sobretudo uma relação muito profunda com as personagens, que está ao nível da emoção. São coisas lá dela, como actriz e como pessoa, de que ninguém sabe", argumenta. O crítico e investigador do Centro de Estudos do Teatro Paulo Eduardo Carvalho também vai por aí: "A Céu tem uma energia, uma vibração um bocadinho inexplicável. E isso faz com que uma personagem como a Antígona, que está numa vertigem quase suicidária, lhe caia muito bem. Tenho excelentes memórias de trabalhos dela - excelentes, indeléveis. Sou um fã inveterado".
São todos. Afinal uma das melhores actrizes portuguesas estava mesmo aqui, só que era segredo.
Questões de sangue
Falamos dela com outros, na terceira pessoa, e depois fomos falar dela com ela, mas também é na terceira pessoa. Há um homem da vida das Boas Raparigas, um homem com quem elas vão para todo o lado, Rogério de Carvalho (que o Ípsilon não conseguiu contactar, porque está fora do país), e ele é tudo o que Maria do Céu Ribeiro sabe do teatro. "Nem sei como é que lhe hei-de chamar. O Rogério é uma forma de estar na vida que implica tudo. Ele tanto está a falar de teatro como de física quântica ou de futebol - para além das experiências com actores que só ele é que faz, porque sempre foi um dos mais delicados e mais sensíveis encenadores que há, tem essa capacidade de não se fixar só no teatro", diz.
Antes de ter aprendido tudo o que sabe com ele, houve outras coisas: um "Auto da Índia" no ginásio da escola, uns cinco anos no Teatro Universitário do Porto, um curso de Estudos Portugueses "que era engano" e o curso na Academia Contemporânea do Espectáculo, onde Maria do Céu Ribeiro foi das primeiras alunas (ainda dá lá aulas, de voz). "Quando acabámos o curso foi complicado porque só havia três companhias de teatro no Porto. Foi por isso que fizemos as Boas Raparigas - porque não sabíamos o que queríamos fazer, mas sabíamos o que não queríamos fazer. Continua a ser assim". Entre os textos que fez com a companhia, houve um, "Antes que a Noite Venha", da Eduarda Dionísio, em que ela foi uma espécie de Antígona: "Já tinha algum imaginário da Antígona. E é muito difícil fazer teatro e não ser tocado pela determinação dela. Nesta profissão é preciso ser resistente e ela é um exemplo, caramba". Quando o director do S. João lhe telefonou a dizer que queria ir com ela para este território que andava há anos a rondar - com a "Medeia", com a actriz que se cala depois da "Electra", com todas as tragédias de Howard Barker -, era como se já lá estivesse. Mas tinha umas contas a ajustar com o TNSJ: "Eu estreei-me aqui, com ‘A Tempestade', encenada pelo Silviu Purcarete. Foi um desastre: eu fazia a Miranda e agarrei a coisa toda pelo lado da emoção, as pessoas não percebiam o que eu dizia. Desta vez, mal cheguei aqui e comecei a falar, percebi que era assunto resolvido".
Tal como Nuno Carinhas, Maria do Céu Ribeiro acha que Antígona, a rapariga condenada à morte por enterrar o irmão contra as leis da cidade, está aí. "A coisa dela não se resume à teimosia. A certo ponto pensei que ela podia ser uma mula. Mas não é, porque há razões, e as razões são de fundo, são essenciais. Isto continua tudo por resolver. Continuamos a ter as mesmas sombras dos gregos, é por isso que a psicanálise lá vai buscar tudo". Ao longo do processo, confirma o encenador, a equipa lembrou-se "obviamente daquela mulher que fez greve de fome porque não lhe era permitido entrar na sua pátria [o Sara Ocidental]". "Há centenas de Antígonas e centenas de Creontes por aí. E é preciso não esquecer que tanto nas guerras como nas catástrofes naturais essa história dos que ficam por sepultar é muito marcante. Estes gestos quase conservadores da Antígona são gestos de combate: há aqui um direito de sangue, um direito corpo-a-corpo, que se quer espezinhar".
Nuno Carinhas tornou-a ainda mais marcante ao colocar toda esta história, que é grega e por isso nossa, a dançar nas bordas de um vulcão, com tudo o que é vivo e ainda mexe a ser irremediavelmente sugado para o inferno debaixo da terra. "É tudo em redução, em esvaziamento, em queda: as mortes sucessivas, a perda do poder, tudo converge para o centro da terra, tudo caminha para a morte e a desvitalização".
Nisso, é a história mais velha do mundo.