O general, o jornalista e o diamante

Se tivermos em conta que o valor pecuniário do Man Booker Prize não chega a 64 mil euros, os cem mil do Prémio LeYa fazem dele um dos mais apetecidos. O vencedor de 2009 foi "O Olho de Hertzog", romance de João Paulo Borges Coelho (n. 1955), historiador e romancista moçambicano. Como da primeira vez, o júri premiou uma saga romanesca de fundo histórico. Em 2008, Murilo Carvalho centrou a intriga na Guerra do Paraguai (1864-1870); agora, foi a vez de Borges Coelho reflectir sobre a história de Moçambique a partir da campanha do general Paul Emil von Lettow-Vorbeck no antigo Tanganika (actual Tanzânia). Digamos que o moçambicano foi melhor sucedido que o brasileiro.

João Paulo Borges Coelho, natural do Porto, professor da Universidade Eduardo Mondlane, foi ainda criança para Moçambique. Ali cresceu e se formou, ali construiu a obra literária: cinco romances, uma novela, duas colectâneas de contos. "O Olho de Hertzog" tem uma ambição que o destaca dos livros precedentes.Ao contrário de "As Visitas do Dr. Valdez", romance de 2004 (e o melhor de todos), "O Olho de Hertzog" não é de leitura fácil. Como quem pinta um grande mural, Borges Coelho descreve as aventuras de Lettow-Vorbeck, general alemão que julgou poder perpetuar o poder do Kaiser na costa oriental de África; as milícias de askaris; a reacção dos mineiros afrikanders à contratação de negros; os primeiros estertores emancipalistas (evocados na figura do jornalista João Albasini, fundador do jornal "O Brado Africano"); a greve dos estivadores laurentinos; o quotidiano de Lourenço Marques nos anos 1918-1920, etc. Tudo se passa no rescaldo da Grande Guerra de 1914-1918, tendo por protagonista Hans Mahrenholz, oficial alemão que se faz passar por empresário inglês.

O título remete para "The Moonstone" (1868), de Wilkie Collins. Tal como o diamante amarelo que viaja de Seringapatam para o Yorkshire, "O Olho de Hertzog" é uma gema cobiçada: "Natalie achava-se com direito ao diamante. Afinal, era como se Bill Foster tivesse dado a vida por ele." Aqui como ali, a pedra "brilha [como] a lua cheia". São várias as fontes de intertextualidade declarada: "Journey Without Maps" (1936), de Graham Greene, é uma delas. Contudo, as mais importantes são "Heia Safari! Deutschlands Kampf in Ostafrika" (1920), o diário de Lettow-Vorbeck, e "O Livro da Dor" (1925), de João Albasini, colectânea de contos publicada depois da morte do autor. Borges Coelho faz um "patchwork" dessas obras, apoiando nele a trama novelística da obra, servida por um estilo seco isento de rodriguinhos.

A afinidade com Wilkie Collins (o inventor do "thriller" moderno) não acaba no título. A construção da intriga obedece, aqui como ali, à de um inquérito em que cada interlocutor apresenta a sua versão dos mesmos acontecimentos. Porém, contra a economia de Collins, Borges Coelho opõe uma constelação de personagens. Uma tábua descritiva, à maneira dos russos (e do Nemésio de "Mau Tempo no Canal"), não seria de descartar em próxima edição.

Um dos aspectos mais curiosos do livro é o da "reconstituição" da Lourenço Marques do pós-guerra 14-18: "uma cidade de pedra envolvida numa falsa azáfama de bem-estar e de progresso, mas cercada de uma auréola cinzenta feita de força bruta, sofrimento e palha: o mundo dos condenados. Numa só cidade, duas. Lado a lado." Vinha longe o afiar de facas, mas um rumor de revolta colava-se às paredes. Afinal, nem todos podiam comer no restaurante do Varietá, sob lustres de cristal, ao som de um "esplêndido quarteto". Para emprestar vida à cidade de então, Borges Coelho recupera editoriais de João Albasini, bem como recortes de imprensa e anúncios comerciais da época. O resultado nem sempre é o desejado, porquanto a acumulação desses "inserts" tende a dificultar a leitura por parte de leitores não-familiarizados com a realidade local. O raciocínio continuaria válido se um inventário com o mesmo tipo de anúncios estivesse reportado a Lisboa ou a Londres. Nesse particular, pesou a costela do historiador.

Sugerir correcção
Comentar