Manuel João Vieira sem filtro
Isto não é uma entrevista a Manuel João Vieira, isto é uma entrevista aos heterónimos de Manuel João Vieira. O músico, o candidato presidencial, o artista plástico. Uma destas tardes, apareceram todos lá por casa dele, em Lisboa. Ele é muitos.
Nada fica de fora. Sócrates e as escutas, Manuela Ferreira Leite por falar em leite. A pedofilia. Do que gostam os católicos. Educação sexual forçada na terceira idade. Palavras como "singelo" e móveis antropomórficos. Maio de 68 que afinal é Maio de 78. Beckett não é chamado ao barulho. Apesar do absurdo. Mas Agnès Varda, sim, e Bocage.
Há uma radiografia do país feita por Elvis Ramalho, Lello Minsk, Candidato Vieira e Orgasmo Carlos. Há uma biografia sumária do homem por detrás dos personagens, Manuel João.
O que é fazer uma entrevista a um heterónimo? É seguir o fio. E provocar. Jogar no escuro.
Aqui e ali há pequenas incongruências (uma vez diz-se que Elvis Ramalho é o irmão mais novo dos irmãos Catita, outra que é Lello Minsk). E responde como um músico azeiteiro faria ("O papá catita era alguém muito severo"), ou um artista (Aquilo que faço é ao mesmo tempo auto-referencial e irradiante").
A entrevista foi feita à tarde, depois de Manuel João dormir a sesta. Estado: absolutamente sóbrio. Com queixas de uma ressaca da véspera. A casa é a casa de um artista.
Bem-vindo ao admirável mundo de Manuel João Vieira!
... O que interessa realmente nas entrevistas é identificarmo-nos com aquele que é entrevistado; saber por exemplo que é uma pessoa normal como nós. Muitas entrevistas tendem a ser como aquelas que se fazem aos ciclistas quando chegam à meta, ou aos futebolistas, esperanças para o futuro. Existe uma organização implícita.
Um enunciado?
Sim. As respostas também fazem parte de um pacto, e as coisas funcionam segundo esse código, e se funcionarem assim são entrevistas sérias.
Sérias porque ninguém fica defraudado?
Sérias porque é aquilo que é suposto fazer-se. Tudo corre como num filme de Hollywood: há um princípio, um meio e um fim, que é feliz.
Quem vamos começar por entrevistar para furar o enunciado?
Tenho comigo o Orgasmo Carlos, um génio da arte contemporânea, segundo ele próprio. Tenho o Candidato Vieira, que está a fazer uma travessia no deserto. Tenho dois cantores, um que canta nos Ena Pá 2000 e noutras bandas, o Lello Minsk; e um cantor da canção portuguesa, o Elvis Ramalho.
Vamos começar pelo autor da frase: "Se há coisa que me faz mal, é a água mineral".
Isso foi uma tradução que fiz para uma canção que se cantava nos Irmãos Catita. Posso falar imediatamente como Elvis Ramalho... No fundo sou um amante da canção latina como as que havia antigamente. Em Portugal tivemos aquele acidente que foi o salazarismo, mas havia muita canção latina, lembro-me disso. E também era muito latino o facto de nos agarrarmos às canções anglo-saxónicas. Os Conchas, o Concerto Académico, todos esses, pegavam em músicas, tanto italianas como inglesas. A única coisa que me distingue do meu irmão, Lello Minsk, é o facto de me interessar por canções ainda mais foleiras do que ele. Já não o vejo há uns anos. Para mim, o importante é o sentimento, e vivo numa espécie de museu do lixo sentimental, rodeado das minhas próprias fotografias.
Narcisista, portanto.
Sim. Tenho fotografias minhas dos anos 70, em que ainda não pintava o cabelo, com um bigodinho. A minha vida, ao contrário da do Lello Minsk, tem sido uma bebedeira mais de martinis. Ele prefere o bagaço e o whisky, bebidas mais duras. Somos pessoas bastante transparentes. Como irmão dele, acho que é uma pessoa sem qualquer tipo de substância. É volátil como espuma do mar. É diferente de mim. Sou uma pessoa com mais carácter, um bocado mais de consistência.
Você, Elvis Ramalho?
Sem dúvida. Pelo menos foi o que me disseram. Estou a escrever as minhas memórias, mas não me lembro de nada. Quando começar a lembrar-me de qualquer coisa vou escrever. E tenho outro problema: não sei se estou vivo ou se estou morto, e se estou a sonhar ou se estou acordado.
Tiveram pai e mãe?
O Lello lembra-se disso. Sou o irmão mais novo, não me lembro. Vivíamos no Algarve. Somos familiares dos tipos do atum. O Atum Catita era uma parte da família que se dedicava à indústria conserveira; fez algum dinheiro, mas nunca deu um chavo à parte pobre da família, que éramos nós. Emigrámos muito cedo para Lourenço Marques para fazer fortuna, e conseguimos ter um lugar modesto dentro do meio vagamente analfabeto e mundano de Lourenço Marques. Depois voltámos para cá como artistas coloniais, mas nunca chegámos a ter qualquer sucesso.
Quando é que nasceram?
Quem é que se lembra de quando nasceu?
Há os álbuns do bebé, que ajudam a situar.
O papá Catita era alguém muito severo. Quando éramos muito novos, quatro anos de idade, dividíamos uma sardinha de uma lata entre dez irmãos e, quando alguém tirava um bocado a outro, espetávamos um garfo na mão! É preciso dizer que houve fome em Portugal - há muita gente que não se lembra disso. Cresci e nasci para a música. Para mim, o mundo da canção e da música é mais importante do que a realidade. Na realidade, vivo quando estou em palco (isto também se diz neste tipo de entrevista). O sentimento de entrega aos meus fãs seria o sentimento que normalmente um casal, que vive num filme de publicidade, tem um pelo outro. Imagine-se uma família num filme de publicidade, um pai, uma mãe, os filhos...
Um pai sem barriga, uma mãe com um pernão...
A característica em comum é a de serem todos lindíssimos, e estão todos numa casa que parece um catálogo da Moviflor. Para isso prefiro a vida de palco, e gosto de imaginar que vivemos num mundo maravilhoso. Ontem vi um filme da Agnès Varda, um documentário dos anos 60 sobre aquela região de Cannes e Nice; o meu mundo é assim: vivo nos anos 60, quando as cores da moda eram o azul e o amarelo.
Ficou aí cristalizado, no sol e no mar.
Sem dúvida, fiquei. E tenho muita sorte de não ter ficado cristalizado na Idade Média, como muita gente que anda por aí. Nesse aspecto considero-me mais avançado. Tenho o problema de achar que os móveis me ameaçam, que são antropomórficos, agressivos e cruéis, e vivo rodeado de móveis... De resto, sou uma pessoa normal.
Porque é que essa pessoa só existe no palco, ou só se sente bem no palco?
Existo também fora do palco, em fotografias, sobretudo dos concertos. Se for a minha casa, ela está habitada por imensas fotografias, referências, os meus discos de ouro, o meu toucador, as perucas, os bigodes falsos... Só eu é que não estou lá. Mas o que é uma pessoa senão os vestígios que deixa neste mundo?
Pergunta profunda. Qual é a resposta?
Quem sou eu para responder. Sou fundamentalmente uma pessoa muito modesta, de origens muito humildes, e apenas quero entreter as pessoas.
Lorpa: é acusado disso?
Há quem me diga que sou simples. Nunca me interessei pela complexidade. Gosto de coisas singelas. Acho o mundo um sítio maravilhoso, as crianças são maravilhosas, as mulheres são maravilhosas, Portugal é um sítio maravilhoso. Tenho a sorte e o privilégio de viver num dos sítios mais bonitos do mundo. E permita-me que lhe diga que a menina é muito bonita.
Um palavrãozito, nas suas canções, existe?
Sabe o que é? Tenho pessoas que me escrevem as letras, e às vezes sou obrigado a cantar aquilo. Não quer dizer que simpatize com esse tipo de utilização da língua portuguesa, embora entenda que exista essa tradição, desde a poesia medieval galaico-portuguesa, passando pelo Barbosa du Bocage.
Quem é que escreve as letras?
As letras são do meu irmão, Lello Minsk. Eu sou só um cantor romântico. Já lhe disse que a menina é muito bonita? O Lello Mickey, acho-o repugnante!, é uma pessoa sem sentido moral, um bêbedo convulsivo. Tudo o que de mau aconteceu ao mundo, a partir de Maio de 1978, é de certa maneira encarnado nesse... Chama-lhe pessoa; não sei se é uma pessoa.
Antes de falarmos do Lello Minsk...
Ele é Minsk, mas às vezes gosta que lhe chamem Lello Mickey.
A idade mental dele não é a do Rato Mickey, ou é?
Não sei se o Rato Mickey tem uma idade mental. A idade mental do Rato Mickey é a idade mental de quem lê o Rato Mickey. E preferia não falar do meu irmão, se não se importa.
Têm uma relação assim tão atribulada? Temos aqui um Caim e um Abel?
Vivo num mundo maravilhoso e não me interessam as pessoas que vivem fora desse mundo. Pus uma cruz em cima delas. Ou as pessoas são maravilhosas e está tudo bem, ou se não são maravilhosas, com licença, tenho mais que fazer. Já tenho uma certa idade, já tive os meus sarilhos e neste momento gosto de cantar em bailes de debutantes e coisas assim.
Nunca fica com vontade de espreitar por baixo das saias das meninas?
Com certeza que também já fui jovem, e para dizer a verdade a beleza da mulher portuguesa é uma coisa que não pára de me confundir.
E uma trafulhice, nunca lhe passou pela cabeça?
Essas pessoas que pensam em trafulhices deviam emigrar para outros países. Acredito que as pessoas de bem devem entender-se e que o povo português é essencialmente gente trabalhadora e honesta.
Não reagiu quando o provoquei, querendo saber se estes dois irmãos tiveram uma contenda séria. Se se odeiam como Abel e Caim.
É um exemplo bíblico muito limitado, mas é um símbolo daquilo que existe de pior no ser humano, que é a luta fratricida. Quase todas as lutas são fratricidas, menos aquelas que não o são. Nunca entrei pela via da guerra. Sou diplomático a resolver as questões. O meu irmão: não falo com ele nem hei-de lutar com ele; quando muito contrato um tipo para lhe dar uma tareia.
Assim não suja as mãos.
Não, lavo as mãos, mesmo, como Pôncio. Ele é mais novo. Quando éramos novos talvez eu lhe tenha dado carolos a mais e arrependo-me de o ter feito. Mas agora é um pouco tarde. Ele nunca ultrapassou o facto de a mamã gostar mais de mim. Sempre foi um rebelde e eu sempre fui o atinado.
Você nunca ultrapassou o facto de ele se divertir mais.
Não sei se ele se diverte mais. Para começar, acho que ele se droga e devia fazer uma desintoxicação.
Que tipo de substâncias tóxicas é que ele ingere?
Sei lá!, droga.
Mas drogas há muitas. Até as mães tomam drogas em forma de comprimidos para dormir e calmantes.
Parece que sim, ouvi dizer. Tínhamos na nossa família uma senhora que tomava comprimidos, mas eram receitados pelo médico.
Cante-me uma música que seja a preferida do Elvis Ramalho.
Uma original? "Portugal, terra maravilhosa" [canta], "Portugal, terra maravilhosa, terra do bagaço e da sardinha, de Guimarães, de Vila Viçosa, do Patilhas e do Ventoinha. Portugal, terra de cães vadios, terra de meus pais e meus avós, courela de primos e de tios, de marrecos e de Bijagós."
É um bocado palerma, desculpe-me o insulto.
É, mas sabe que a palermice é muito saudável e põe as pessoas mais alegres. O grande defeito do mundo contemporâneo é que as pessoas são demasiado sérias, demasiado negras. Essa negritude, não no sentido africanista do termo, é como a anedota do sonho que tem um pontinho vermelho do lado esquerdo. Conhece?
Qual é a canção mais odiosa do seu irmão, Lello Minsk?
São todas más. Oh, meu Deus, prefiro nem cantar. Há uma que detesto que se chama "Canção conjugal".
Como é?
Já não me lembro. E há outra: "Ó cona, a quanto obrigas", que acho lamentável. Manifesta uma revolta da parte dele, talvez tenha tido falta de carinho. Ele nunca foi um bebé muito bonito, sabe? Ao contrário da minha pessoa. Não é para me gabar, mas ganhei o concurso de Bebé Nestlé, em 1952.
A canção.
"Ó cona, a quanto obrigas, fazes sangue às raparigas" - veja lá. E depois tem um refrão: "Cona, tu és a nossa mãe, cona, de ti a vida vem, estrela peregrina, perfumada e purpurina, amas analfabeto e doutor, patrão, tropa ou ardina, tu és a nossa sina, ó fértil divindade do amor." Um disparate total, um tarado.
A dita, nunca o obrigou a nada? Como é que lhe chama?
Nunca a trato pelo nome. Acredito que a mulher portuguesa, aquilo que traz de mais secreto e mais belo em si, não é susceptível de ser expresso com uma palavra. Essa palavra é de ouro e morre na boca de quem a pronuncia.
Você andou na escola e teve boas notas a Português.
Estive num orfanato.
Num orfanato? O que é que aconteceu aos seus pais?
Ai não lhe disse? Morreram muito novos. A minha mãe morreu com 15 anos.
E teve-o com 13?
Começou a ter filhos com 11. Desconfio que alguns dos meus irmãos são meios-irmãos, senão não era possível haver tantos. Olhe, não sei, prefiro não pensar nisso. Quando começo a ver que as coisas são um bocado complicadas, prefiro não pensar.
Quem é que está a pedalar na bosta há 26 anos?
O meu irmão. Ele é que fez um concerto com esse nome. Devido ao tipo de vida que leva também não vai demorar muito tempo a bater a bota. Tem menos dez anos do que eu e parece dez anos mais velho.
Tem um bocadinho de inveja do seu irmão, não?
Nada, nada, zero, tenho pena.
Imagine que isto era uma daquelas peças de teatro foleiras, em que estamos a falar de uma pessoa e ela bate à porta... Essa pessoa é o Lello Minsk.
Posso ir à casa de banho e chamo-o, ele está ali na sala de espera. (De qualquer maneira tenho mesmo de ir à casa de banho). Não se importa?
[Levanta-se e sai]
O Lello faz-se acompanhar da stripper Nelita Bate-me Uma, da Domadora de Sardinhas Menstruadas, da Barracuda Transmontana. É verdade?
Não sei onde é que foi buscar essa informação, mas há aí uma confusão qualquer, é tudo completamente falso. Como diz Bibi, não deve ser a minha pessoa.
Quem é Bibi?
Bibi é um homem que está preso no escândalo da Casa Pia. A primeira coisa que ouvi o homem dizer na televisão foi isso; gostei dessa frase. Toco com os Ena Pá 2000. Sim, temos de vez em quando algumas raparigas, dançarinas exóticas, que se envolvem no nosso número. Temos um número bastante interessante, sexo, drogas e rock and roll.
Vamos hierarquizar: do que é que gosta mais?
Nem só de drogas vive o homem! Há também o sexo e o rock and roll. É indiferente, é conforme. Também gosto de comer, tipo feijoada e chili com carne, e grandes costeletas de vaca.
Abrimos esta caixa?
Qual caixa? Não vivo dentro de caixas.
Lello Minsk, também chamado Lello Marmelo. Marmelo é por causa da marmelada?
Eu, Lello, gosto de dar a mim próprio vários nomes, porquê? Porque me chateia ter só um. É só isso, mais nada. Marmelo é apenas porque rima com Lello.
Pensei que fosse o gosto pela marmelada.
Não gosto especialmente de marmelada, também gosto de geleia.
Não estou a falar dessa, claro.
Sou muito estúpido. Minsk era o grito do amor em Campo de Ourique, em 1977 ou 1979. Era o grito que se dava quando se via uma tipa muita boa. E é difícil. O Minsk tem de ser gritado a 50 oitavas acima do Ré de porco, que é bastante grave como sabe. [exemplifica] É um grito mais de leitão. Porque é que não me faz perguntas simples?
Do que é que quer falar?
Sinto-me bem com a minha vida, gosto daquilo que faço. De resto não tenho grande coisa a dizer. Sou uma pessoa bastante vazia.
As pessoas pensam que é um malcriadão, um bebedolas que diz palavrões.
Sou apenas um personagem grosseiro, obsceno, algo aviltante. Tenho orgulho em ser um bruto "cervejudo". Bebo cerveja, bebo tudo. Criámos os Ena Pá 2000 de uma maneira muito esquisita. A Virgem Maria apareceu a todos os membros, não me lembro quando, a dizer que tínhamos de formar um grupo de rock. Acordámos ao mesmo tempo, como se tivéssemos estado num transe hipnótico profundo, dirigimo-nos para a frente da Igreja do Santo Condestável, aqui em Campo de Ourique, com as guitarras, e começámos a fazer música.
De adoração à Nossa Senhora, de agradecimento pelo chamamento?
De adoração, não. Esta não é a principal profissão de Nossa Senhora. Ela tem a profissão de ser Nossa Senhora. Mas além disso também é uma pessoa que gosta de música, e como tal "interviu".
"Interviu"? Você dá mostras de ler Camilo Pessanha e diz "interviu"?
Interview é uma revista muito boa. Não sei se ainda existe. Intervir, "interviu"?
Interveio.
Interveio-se, pronto, é isso mesmo.
Nossa Senhora interveio.
Interveio-se. "Interviu-se".
Os católicos nunca lhe cospem em cima, nunca lhe atiram pedras por dizer essas coisas sobre Nossa Senhora?
Sim e não. Falo sempre da Nossa Senhora com algum respeito. O que os surfistas chamam respect. Os católicos são normalmente as pessoas mais obscenas e que mais simpatizam com este tipo de linguagem.
Às escondidas.
Sim, às escondidas ou quando bebem um copo. Existem dois tipos de pessoas: as que existem de dia e as que existem à noite. As que existem à noite são o contrário das que existem de dia. Vamos lá ver se explico isto. Há um filme do Chaplin em que há um bêbedo milionário que ajuda o Charlot; bebem copos e divertem-se à grande, mas, no outro dia de manhã, quando está sóbrio, não o reconhece. As pessoas são assim. E também não se reconhecem a si próprias quando estão bêbedas. Inclusivamente há conflitos interiores dentro das pessoas. Nós estamos a tentar espremer isso tudo como se fosse uma almôndega. A nossa sociedade precisa de nós.
"Nós", Ena Pá 2000?
Sim, sim, falo em nome do grupo, até porque os outros estão fechados num armário e normalmente só se abre esse armário quando há um concerto.
Estão fechados na caixa?
Sim, uma caixa muito grande em forma de armário. Mas é um armário com televisão, com várias coisas interessantes lá dentro.
É o maestro desse grupo?
Tento organizar aquilo, mas nem sempre consigo.
Você é sempre quem manda?
Não sei. Lá por organizar não quer dizer que mande. Por exemplo, temos um primeiro-ministro, não é? Ele tenta organizar, mas será que é ele que manda?
Quem é que manda?
Segundo o Jerónimo de Sousa, é o poder económico. Se perguntar a outros políticos, dirão outra coisa qualquer.
O João Pereira Coutinho, o colunista, também diz que manda quem tiver o livro de cheques.
É a mesma coisa, nisso estão todos de acordo.
Sendo o João Pereira Coutinho de direita e o camarada Jerónimo...
É de direita também. São todos de direita. Ou são todos republicanos, ainda não percebi.
Eu ainda não percebi se os Irmãos Catita se dão bem com os Ena Pá 2000.
Nós já mandámos esses todos para o hospital. Quem está nos Irmãos Catita é o Elvis. Tenho agora um grupo chamado 4444, de rock sinfónico.
Já convidaram o José Cid e o Tozé Brito para o grupo?
Não, foleirada não queremos, obrigado. Somos um grupo dos anos 70, mas não somos foleiros. O José Cid fez umas coisas boas quando fez rock sinfónico, mas depois começou a fazer música comercial, e o Tozé Brito também.
O José Cid é melhor do que o Elton John.
Ai é, porquê?
Porque o José Cid o disse. E porque eu acho que toda a gente é melhor do que o Elton John.
Se você o diz, quem sou eu? Preferia não falar de colegas, embora colegas sejam as putas. Somos todos umas putas, a verdade é essa.
Quando precisa, vai às putas? Tem uma mulher, várias mulheres? Como é que resolve essa parte?
Todos nós, portugueses, vamos às putas de vez em quando. Por alguma razão elas existem. É mais uma daquelas coisas que tentamos pôr debaixo da cama mas que aparecem, sobretudo com uns copitos. E é uma maneira fácil de resolver os problemas conjugais. É mais barato, moralmente, arranjar uma prostituta do que uma amante. Uma amante tem direitos. Ao passo que uma profissional...
Dá menos trabalho, custa menos dinheiro?
De maneira que as profissionais existem para alguma coisa e infelizmente não são dignificadas como deviam ser. Acho que também devia haver mães profissionais, assim como há prostitutas. Há uma agência na Alemanha que tem pessoas que fazem de conta que são mães para homens de negócios. Prostitutas sentimentais, não sexuais. São amas-de-leite, no fundo.
Só que, em vez de dar leite, dão sentimentos.
Também podem dar leite, mas é mais caro.
Viu esta notícia nesse jornal?
Sim, fui eu que a fiz. Tenho um pequeno fanzine, feito em fotocópias. Chama-se O Escarro Ilustrado. A minha ideia é que vivemos num país livre e temos de experimentar até que ponto é que é livre.
Nunca apanhou pela frente Manuela Ferreira Leite, que diz que a liberdade de expressão está ameaçada neste país?
Portanto, continuamos a falar em leite... Ela tem razão, ou então não tem, ou tem mais ou menos. Isto é, não compreendo por que razão algum governante, neste tipo de Estado democrático em que vivemos, se há-de chatear minimamente com qualquer afirmação, por mais irresponsável e atrasada mental que seja, da parte da imprensa ou da televisão.
Tem políticos na audiência dos seus concertos. Eles abordam-no? Outros políticos que não o Candidato Vieira.
Não directamente. Mas já fiz algumas campanhas para o "dr." António Guterres, tocámos em alguns comícios do Partido Socialista, aqui há dez anos. Também já toquei para o dr. Alberto João Jardim. Tenho imenso respeito pelo Candidato Vieira. Sei que representa interesses obscuros, mas quem é que não representa interesses obscuros? No fundo, será que a menina não representa os seus interesses obscuros de vez em quando? Se não representa, talvez devesse representar. O que é que nós representamos? O que é representar?
Não tem filhos, Lello?
Tive oito, mas morreram todos.
Que pena. Morreram de quê?
Foram atropelados por um camião escolar. Eram gémeos. É verdade, sémen dos meus testículos. Adeus. Por outro lado, fiquei aliviado, era uma certa carga que tinha. Oito gémeos, mesmo com amas-de-leite, é complicado. E a mãe morreu com eles, também estava a atravessar a rua.
Ficou livre?
Fiquei livre de quê? O que é a liberdade? O que é a liberdade, diria o meu irmão, sem repressão? Nada. O que é a repressão sem liberdade? Nada.
Isso já é palavreado do Candidato Vieira. Aprendeu com ele?
Antes de mais nada, Anabela, gostaria de lhe desejar uma boa tarde e dizer que gosto muito de si e respeito muito o seu trabalho. Não sou um homem, sou um político, sou uma máquina de fazer propaganda e sou sobretudo uma pessoa que acredita.
Acredita em quê?
Acredito em si, Anabela, assim como acredito em todos os portugueses e portuguesas. Acredito que vocês são capazes de fazer deste país um país melhor. Vocês, com a minha ajuda, com a minha modesta contribuição.
Conte-me o que é que o faz ter tanta confiança em si e achar que as pessoas podem votar em si.
Porque vivemos num país livre, em primeiro lugar. Dois, porque sou o melhor candidato. Três, porque os portugueses têm uma confiança muito grande em mim. Sabem do que sou capaz, sabem que neste momento sou a única alternativa à política tradicional. Sabem que tanto em Portugal como ao nível da política internacional vivemos num estado de absurdo, e apenas um discurso mais absurdo, ou aparentemente absurdo, poderá salvar a nação. Tudo pela nação, nada contra a nação, eu sou a nação, eu sou Portugal. A minha vocação é dar às pessoas o que elas querem. Sou um servidor público, não quero nada para mim.
O que acaba de dizer é o maior pacote de lugares-comuns que ouvi nos últimos tempos.
Fico muito agradecido. Não sei se leu o meu programa. O meu programa é muito simples, tem 320 pontos essenciais e cada um desses pontos tem 10 pontos acessórios, o que multiplica por 10 as possibilidades. Tem este livro? Vou dar-lhe este livro. Cada português devia ter um livro destes em sua casa.
Estava mais magro na capa do livro Vieira, Só Desisto Se For Eleito.
É Photoshop. O dente a mais também é Photoshop.
"Quero uma democracia toda aberta"?
É a chamada inclusão.
"A sua vida vai mudar este livro. Dedico este livro a todos os portugueses de alma e coração e a todas as portuguesas aquele abraço."
No fundo, sou também um ser humano, também tenho sentimentos.
O que é isto na página 36, "Pamela, a secretária traidora"?
Ela é capaz de me ter traído. Este livro tem um pouco de tudo. Esta é a parte mais importante, são as ideias. Essas são umas crónicas que escrevi para uns jornais de Economia. Isto é o meu Visionário programa político e social para um Portugal de sonho.
Aquele onde Elvis Ramalho acha que vive.
"A arte em Portugal deve estar sempre 20 anos atrasada" - é uma máxima. "O burro deve ser um animal sagrado para o português, como o Burro de Barcelos." Tive várias ideias originais, biotecnologias, história, futebol, sexo.
O que é que o Candidato Vieira tem a dizer sobre o sexo?
Temos uma educação sexual forçada para a terceira idade.
Porquê, acha que é preciso?
O sexo visa o prazer e o prazer é soberano. Temos uma conferência na universidade do Pico que vai falar sobre isso. Vamos promover as variedades de sexo regional. Cada localidade portuguesa, assim como tem o seu traje folclórico, também tem o seu estilo sexual. Temos o Broche ó da Guarda, Broche à Nacional n.º 1, Minete à transmontana, Sexo com leitões, na Bairrada, Sexo castiço, Sexo em coro alentejano. Se calhar vamos abolir as provas orais, este ano.
Essas coisas ocorrem-lhe quando está sob o efeito do ópio?
Só bebo água do Luso. Quer um copo de água? Neste momento o que me está a custar é não me candidatar às próximas presidenciais. Não vejo que estejam reunidas as condições e a minha fé na democracia está a vacilar. Não sei se um levantamento militar, um pronunciamento militar, não seria mais favorável à nossa saúde económica, e mesmo à nossa saúde sexual.
Não me diga que tenho um protofascista à minha frente...
Digamos que todos os meios são legítimos para alcançar o poder. Se a democracia está de tal forma viciada e não podemos atingir o poder pela via democrática, devemos tentar outras formas. Devemos levar a bom cabo as nossas ambições.
Quais são as suas ambições?
Quero ser presidente absoluto de Portugal. Vou só beber um bocado de água.
Tem preocupação em relação às conversas que tem ao telemóvel? Acha que um dia as suas conversas mais íntimas podem aparecer transcritas nos jornais?
Já foram. O facto é que estou sob escuta. As pessoas utilizam aquilo que ouvem nas minhas conversas telefónicas para as atribuir a outros políticos, que me copiam sem qualquer tipo de pudor. Estou a ser roubado e vou falar com a SPA para saber se as escutas telefónicas também podem ser objecto de protecção.
Relate uma conversa que tenha sido apropriada por algum político.
Todas. Principalmente algumas. Tudo aquilo que tem vindo a lume sobre o primeiro-ministro sei que não é sobre ele, porque as escutas foram feitas à minha pessoa e apropriadas pelo primeiro-ministro e pelas pessoas que rodeiam o primeiro-ministro. Mesmo o caso do Freeport não envolve o primeiro-ministro, envolve-me a mim. Eu é que sou a pessoa corrupta! Aliás, fiz tudo: corrompi-me a mim próprio, paguei-me a mim próprio. As pessoas precisam de movimentações. Os deslizes judiciários, ilegais, estão a ser utilizados para distrair o povo.
Distrair de quê?
Da realidade. A realidade é que só há uma força neste momento que pode melhorar as condições de vida neste país, que é o Vieira e o "vieirismo" puro e duro. Tenho ideias muito boas para Portugal. Por exemplo, mudar o nome da capital para "Vieirópolis". O Santana queria fazer o mesmo com "Santanópolis", ou quase o fez, na Figueira da Foz.
Gosta de fazer campanhas eleitorais, não desiste. Porque é que faz isso?
O meu sangue bombeia a uma maior velocidade quando estou na estrada, em comício, é verdade.
Isso é porque é adorado.
Não gosto de dizer isto, mas sou idolatrado pelas multidões. Gostaria aqui de dizer também: as eleições nunca foram legítimas (ninguém sabe isto) e os resultados, a percentagem ridícula que me deram, são manifestamente falsos. Fui roubado!
Quantas pessoas oficialmente votaram em si?
Oficialmente, nenhuma. Mas sei de fonte segura que dois milhões de portugueses votaram em mim.
Se não votaram, gostariam de votar.
Aí está. Porque não um sistema de voto mais simples para os portugueses? Um sistema de voto em que basta uma pessoa pensar para que o voto... O voto pela Internet tem de ser imediatamente utilizado. Temos de acabar com os formalismos legais, com toda a papelada que é necessária para legitimar um candidato: 7500 assinaturas é ridículo, porque pressupõe que existe um aparelho, um secretariado. Essa burocracia está ao serviço dos partidos, nitidamente. O homem das salsichas Nobre conseguiu-o, com certeza.
O homem das salsichas Nobre?
O senhor António Nobre é um exemplo.
É Fernando.
Esse mesmo, o Manuel Nobre. Acho muito bem que o Nóbrega tenha conseguido. As pessoas têm de compreender que chegaram ao fim de um ciclo, ao fundo do poço, e que já não há água. Só eu lhes posso dar a chuva. Isto é um ano um bocado especial em termos de pluviosidade, os políticos nunca falam disto, mas está a chover muito.
Vi-o num programa de televisão a meter-se com um papagaio; pensou em matá-lo e fazer com ele um arrozinho de papagaio.
Isso é totalmente infundado e falso. É uma afirmação sem pés nem cabeça. Receitas brasileiras, não tenho nada a ver com isso. Com todo o respeito, não estamos a falar dos problemas reais do país. Os portugueses precisam de amor-próprio e de dinheiro. E de satisfação sexual e sentimental nas suas vidas. Isso tudo dá saúde, lá está. A alegria de viver dá saúde. Temos de descobrir os "Brasis", mas esses "Brasis", essas terras, estão dentro de nós próprios, e nós podemos encontrá-las. Somos uma nação riquíssima, somos conquistadores. Temos de começar por nos conquistar a nós próprios.
Por falar em Brasis, falemos do Orgasmo Carlos, que imagino que conheça.
Orgasmo Carlos é uma pessoa que tem evidentes afinidades com Portugal.
É afilhado do Roberto Carlos?
Não, é filho do Roberto e do Erasmo Carlos. É um artista contemporâneo dos PALOP. Tanto é um artista africano, como português, como macaense. É um artista cuja obra universal exprime a sua profunda lusitanidade. E é um homem que tendo feito exposições nos principais museus e galerias da Terra e Marte, escolheu Portugal para viver - o que é, para nós portugueses, muito lisonjeiro.
Como é que ele agora se junta à conversa?
Ó Orgasmo, podias fazer o favor de cá chegar?
E nisto...
Em primeiro lugar queria pedir desculpa por estar atrasado. Estou a ser seguido na rua. Não é só o Candidato Vieira. Há pessoas que me querem liquidar - pelo menos duas. Existe uma máfia na Art World que quer acabar comigo, talvez por ser o maior artista vivo da actualidade. Vivo, por enquanto. Não sei se saio daqui e sou morto em dois ou três minutos. Estão a apertar o cerco. Ainda bem que estou a falar consigo, porque pode ser a minha última conversa. Não sei se viu as minhas exposições.
Não vi as suas exposições. Mas vi as exposições de pessoas que julgo que aprecia, o Manuel João Vieira, o Pedro Proença, o Fernando Brito, o Xana.
Não tem nada a ver. São artistas portugueses da década de 80. Faz parte, marcou uma época, mas estão ultrapassadas. Hoje em dia existem coisas mais importantes. Não digo que a arte deva ser pedagógica, embora a minha arte seja, e seja de certa maneira "explicadista". A minha obra não se limita ao "explicadismo". Aquilo que faço é ao mesmo tempo auto-referencial e irradiante. Os raios de comunicação que partem desse sol central, que é a arte de Orgasmo Carlos, espalham-se um pouco em todas as direcções. Não como os tentáculos de um polvo, mas como os raios de um sol que contagia e inebria.
Como um orgasmo.
Um orgasmo é um momento.
Mas irradia.
Sem dúvida, é uma explosão. E vai tocar em vários pontos importantes. Já ouviu falar no orgasmo permanente? Gostava de ouvir falar? A noção de orgasmo permanente está na base das obras do Orgasmo Carlos; isto é, de mim próprio. E peço imensa desculpa, não consigo deixar de falar de mim próprio na terceira pessoa. Ajuda-me, porque não caibo em mim próprio. Recomendaria aos jovens artistas que olhassem para lá do seu mundo. Hoje em dia qualquer pessoa que pendura um cordel num armazém é um artista plástico. A vanguarda chegou a um extremo, chegou à fronteira do deserto. A vanguarda nunca acaba e a arte nunca deixa, como Saturno, de devorar os seus próprios filhos, e produzir nova arte. O canibalismo é arte, assim como o excremento é arte.
Gilbert & George fazem arte com o seu excremento.
Sim, e com algumas tecnologias um pouco mais modernas. O excremento é uma metáfora do corpo humano e do funcionamento do mundo da arte e da transmissão do conhecimento simbólico. Quando falo em irradiação, falo a todos os níveis. Quando, a partir do século XIX, se substituiu a religião oficial pela arte e pela literatura (estamos a falar de uma elite), houve qualquer coisa que fracassou. Ainda existe um grande vazio na vida das pessoas a partir do momento em que Deus deixa de existir. Não é possível preencher esse vazio com obras de arte de nenhum artista, a não ser com as obras do Orgasmo Carlos. Não por ele ser um artista particularmente xamanista.
Particularmente o quê?
"Xamanístico". Ele é um xamã lusófono.
Xamã com "x"?
Com "sch".
O que é um "schamã"?
É diferente de xamã com "x". Eu diria mesmo que Orgasmo Carlos, em vez de "sch", ou com "x", será um "chamã". Mesmo tipo "chamon", porque é português e porque é lusófono. Toda a gente sabe que devemos ir às nossas raízes, porque são elas que nos permitem ser simultaneamente originais...
Estou um pouco embrulhada.
... e transcendermos essa originalidade e sermos universais.
Tem um discípulo que é um urso.
O Ricardo Rocha. É um jovem talentoso que encontrei nas montanhas, perto da serra da Estrela. Estava preso a uma árvore e vivia mais ou menos de subterfúgios, pedia esmola. Eu estava a precisar de qualquer coisa de novo. Fui a Basel e não tinha nada. Não tinha um trabalho com profundidade suficiente e que ao mesmo tempo influenciasse as pessoas. Esse urso salvou uma parte da minha carreira. Nas nossas performances eu tocava realejo e o urso recitava de cor todos os textos de Marx. Isso tornou-se uma obra lendária no mundo da arte conceptual. Foi a partir daí que consegui reorganizar a minha carreira. Antes disso pintava velhos pescadores com cachimbo e mulheres nuas com vasos de flores.
Na parte das mulheres nuas com vasos de flores, um bocadinho como o Boticcelli?
Não, não, era mesmo muito mau aquilo que fazia.
O urso já participou naquela filmagem que fizeram no cemitério, em que havia uma stripper no lugar do morto? (Isto aconteceu.)
Esse filme é importante. Fala-nos da ressurreição, da morte, da vida e do amor. O script é simples: o herói vai ao cemitério colocar uma flor na campa dos pais, os pais ressuscitam, começam imediatamente a fazer amor, ele vai atrás deles, com o urso - aliás, o urso estava à espera na carrinha funerária. Os mortos vão para a carrinha funerária e vão circulando pela cidade de Lisboa enquanto fazem amor, no lugar do morto. Por acaso, o camião deita imenso fumo e essa parte é engraçada. Depois vamos até à Gulbenkian, a uma exposição de arte moderna.
Não vos reconheceram e prenderam-vos.
Não, simplesmente ficaram inanes, e nós continuámos a desempenhar o nosso papel e a nossa performance até ao fim, e saímos sem qualquer problema. Foi um filme relativamente barato.
Concorreram ao subsídio?
Isso está viciado. Preferimos fazer as coisas por nós próprios, sem contar com ninguém. Conto com os fundos da Orgasmo Carlos Foundation, ou, se quiser, da Colecção Orgasmo Carlos Foundation.
O Orgasmos Carlos é um pintor que se considera o maior do mundo, mas é também a cara de uma cooperativa de pessoas?
Não sei do que está a falar. O Orgasmo Carlos tem, é certo, como os anões do Pai Natal, ajudantes. Hoje em dia é raro o artista, o criador de obras de arte contemporânea, que utilize a sua mão nas suas obras; utilizam-se assistentes. O artista é uma espécie de general que fala com os coronéis e os tenentes para desencadear as operações militares.
O Orgasmo Carlos alguma vez fez alguma coisa com o urso?
Fez várias performances, e além disso há a história de vida do Orgasmo Carlos. A história, estamos a trabalhar nisso, os meus escritores estão a escrever. Tem uma estrutura parecida com Assim Falava Zaratustra. Só que tem homens e ursos.
Não há relações bestiais?
Quase nenhuma. Mas o urso é pedófilo e de vez em quando anda com um ursinho de peluche mais pequeno que ele. O urso tem dois metros, anda com um ursinho para aí com 50 centímetros. Além de que ele é castanho-escuro e o outro é cinzento-claro, quase azul. Eles viviam comigo numa vivenda no Algarve e cansei-me de ver aquilo à minha frente. "Meu amigo, se é para isso que estás aqui, se é esse o teu tipo de vida..." Dei-lhe tudo, ensinei-lhe tudo, e ele começou a dar entrevistas e a falar da sua obra como se não tivesse havido qualquer influência da minha pessoa no seu trabalho.
Que relação existe entre estas pessoas com quem tenho vindo a falar e o Manuel João Vieira?
Nada. São exercícios de matemática, de xadrez, de álgebra, exercícios de natação.
Eles aparecem ao longo do dia do Manuel João Vieira, quando está a fazer uma torrada ou quando vai à fisioterapia?
Um dia é um holocausto, uma torrada é uma torrada. Eles desaparecem, aparecem. Às vezes tenho baratas em casa, não as tenho visto ultimamente. As baratas, as formigas, aparecem e desaparecem; essas pessoas também.
Os seus vizinhos, quando o encontram na rua, estão à espera de encontrar o Manuel João Vieira?
Não tenho vizinhos, vivo num hospital psiquiátrico há 20 anos. Estou a tentar sair daqui.
Agora estou a falar com quem?
Não sei.
Se quiser falar com o Manuel João Vieira, posso?
Olá Anabela, sou eu, está boa? Não tenho assim grande coisa para dizer, sou uma pessoa normal, vivo aqui neste sítio.
É verdade que não tem grande graça enquanto Manuel João Vieira?
É, lamento.
Dados biográficos do Manuel João Vieira.
Nasci em 1962, frequentei o Liceu Pedro Nunes e a Escola de Belas-Artes, e outros sítios. Sou sócio minoritário de um espaço nocturno [Maxime]. A única coisa que gosto mesmo de fazer é pintar, desenhar. Sou um tipo de Campo de Ourique como outro qualquer, estou cá há 44 anos. Gosto de beber uns copos ao fim-de-semana, como toda a gente, e toco ao mesmo tempo. Como uns amigos que se encontram numa garagem para ensaiar. A única diferença é que gosto de ensaiar ao vivo porque sempre ganho algum, é mais prático.
Nas Belas-Artes encontrou um grupo de amigos e formaram os Homeostéticos. Seria outro se não tivesse encontrado aquelas pessoas?
Talvez esse seja um ponto de viragem. Na verdade, queria fazer banda desenhada, e estive a trabalhar nisso até entrar nas Belas-Artes. O meu pai, sendo pintor [João Vieira], encorajou-me e tentou explicar-me as vantagens da arte com "A" grande. Mas eu estava obstinado em relação à banda desenhada. Depois houve uma transição entre a banda desenhada e a pintura, que aconteceu naturalmente e com a influência desse grupo. Foi bastante interessante, mas já foi há muito tempo.
Quando se vê o documentário do Bruno de Almeida sobre os Homeostéticos, o que se percebe é que se divertiram à grande.
Sim, mas tínhamos idade para isso. Uma pessoa pode divertir-se em qualquer idade. O Pai Natal também se diverte, o Pai Natal tem umas amiguinhas... a
anabela.mota.ribeiro@publico.ptA característica em comum é a de serem todos lindíssimos, e estão todos numa casa que parece um catálogo da Moviflor. Para isso prefiro a vida de palco, e gosto de imaginar que vivemos num mundo maravilhoso. Ontem vi um filme da Agnès Varda, um documentário dos anos 60 sobre aquela região de Cannes e Nice; o meu mundo é assim: vivo nos anos 60, quando as cores da moda eram o azul e o amarelo.
Ficou aí cristalizado, no sol e no mar.
Sem dúvida, fiquei. E tenho muita sorte de não ter ficado cristalizado na Idade Média, como muita gente que anda por aí. Nesse aspecto considero-me mais avançado. Tenho o problema de achar que os móveis me ameaçam, que são antropomórficos, agressivos e cruéis, e vivo rodeado de móveis... De resto, sou uma pessoa normal.
Porque é que essa pessoa só existe no palco, ou só se sente bem no palco?
Existo também fora do palco, em fotografias, sobretudo dos concertos. Se for a minha casa, ela está habitada por imensas fotografias, referências, os meus discos de ouro, o meu toucador, as perucas, os bigodes falsos... Só eu é que não estou lá. Mas o que é uma pessoa senão os vestígios que deixa neste mundo?
Pergunta profunda. Qual é a resposta?
Quem sou eu para responder. Sou fundamentalmente uma pessoa muito modesta, de origens muito humildes, e apenas quero entreter as pessoas.
Lorpa: é acusado disso?
Há quem me diga que sou simples. Nunca me interessei pela complexidade. Gosto de coisas singelas. Acho o mundo um sítio maravilhoso, as crianças são maravilhosas, as mulheres são maravilhosas, Portugal é um sítio maravilhoso. Tenho a sorte e o privilégio de viver num dos sítios mais bonitos do mundo. E permita-me que lhe diga que a menina é muito bonita.
Um palavrãozito, nas suas canções, existe?
Sabe o que é? Tenho pessoas que me escrevem as letras, e às vezes sou obrigado a cantar aquilo. Não quer dizer que simpatize com esse tipo de utilização da língua portuguesa, embora entenda que exista essa tradição, desde a poesia medieval galaico-portuguesa, passando pelo Barbosa du Bocage.
Quem é que escreve as letras?
As letras são do meu irmão, Lello Minsk. A característica em comum é a de serem todos lindíssimos, e estão todos numa casa que parece um catálogo da Moviflor. Para isso prefiro a vida de palco, e gosto de imaginar que vivemos num mundo maravilhoso. Ontem vi um filme da Agnès Varda, um documentário dos anos 60 sobre aquela região de Cannes e Nice; o meu mundo é assim: vivo nos anos 60, quando as cores da moda eram o azul e o amarelo.
Ficou aí cristalizado, no sol e no mar.
Sem dúvida, fiquei. E tenho muita sorte de não ter ficado cristalizado na Idade Média, como muita gente que anda por aí. Nesse aspecto considero-me mais avançado. Tenho o problema de achar que os móveis me ameaçam, que são antropomórficos, agressivos e cruéis, e vivo rodeado de móveis... De resto, sou uma pessoa normal.
Porque é que essa pessoa só existe no palco, ou só se sente bem no palco?
Existo também fora do palco, em fotografias, sobretudo dos concertos. Se for a minha casa, ela está habitada por imensas fotografias, referências, os meus discos de ouro, o meu toucador, as perucas, os bigodes falsos... Só eu é que não estou lá. Mas o que é uma pessoa senão os vestígios que deixa neste mundo?
Pergunta profunda. Qual é a resposta?
Quem sou eu para responder. Sou fundamentalmente uma pessoa muito modesta, de origens muito humildes, e apenas quero entreter as pessoas.
Lorpa: é acusado disso?
Há quem me diga que sou simples. Nunca me interessei pela complexidade. Gosto de coisas singelas. Acho o mundo um sítio maravilhoso, as crianças são maravilhosas, as mulheres são maravilhosas, Portugal é um sítio maravilhoso. Tenho a sorte e o privilégio de viver num dos sítios mais bonitos do mundo. E permita-me que lhe diga que a menina é muito bonita.
Um palavrãozito, nas suas canções, existe?
Sabe o que é? Tenho pessoas que me escrevem as letras, e às vezes sou obrigado a cantar aquilo. Não quer dizer que simpatize com esse tipo de utilização da língua portuguesa, embora entenda que exista essa tradição, desde a poesia medieval galaico-portuguesa, passando pelo Barbosa du Bocage.
Quem é que escreve as letras?
As letras são do meu irmão, Lello Minsk. A característica em comum é a de serem todos lindíssimos, e estão todos numa casa que parece um catálogo da Moviflor. Para isso prefiro a vida de palco, e gosto de imaginar que vivemos num mundo maravilhoso. Ontem vi um filme da Agnès Varda, um documentário dos anos 60 sobre aquela região de Cannes e Nice; o meu mundo é assim: vivo nos anos 60, quando as cores da moda eram o azul e o amarelo.
Ficou aí cristalizado, no sol e no mar.
Sem dúvida, fiquei. E tenho muita sorte de não ter ficado cristalizado na Idade Média, como muita gente que anda por aí. Nesse aspecto considero-me mais avançado. Tenho o problema de achar que os móveis me ameaçam, que são antropomórficos, agressivos e cruéis, e vivo rodeado de móveis... De resto, sou uma pessoa normal.
Porque é que essa pessoa só existe no palco, ou só se sente bem no palco?
Existo também fora do palco, em fotografias, sobretudo dos concertos. Se for a minha casa, ela está habitada por imensas fotografias, referências, os meus discos de ouro, o meu toucador, as perucas, os bigodes falsos... Só eu é que não estou lá. Mas o que é uma pessoa senão os vestígios que deixa neste mundo?
Pergunta profunda. Qual é a resposta?
Quem sou eu para responder. Sou fundamentalmente uma pessoa muito modesta, de origens muito humildes, e apenas quero entreter as pessoas.
Lorpa: é acusado disso?
Há quem me diga que sou simples. Nunca me interessei pela complexidade. Gosto de coisas singelas. Acho o mundo um sítio maravilhoso, as crianças são maravilhosas, as mulheres são maravilhosas, Portugal é um sítio maravilhoso. Tenho a sorte e o privilégio de viver num dos sítios mais bonitos do mundo. E permita-me que lhe diga que a menina é muito bonita.
Um palavrãozito, nas suas canções, existe?
Sabe o que é? Tenho pessoas que me escrevem as letras, e às vezes sou obrigado a cantar aquilo. Não quer dizer que simpatize com esse tipo de utilização da língua portuguesa, embora entenda que exista essa tradição, desde a poesia medieval galaico-portuguesa, passando pelo Barbosa du Bocage.
Quem é que escreve as letras?
As letras são do meu irmão, Lello Minsk. com várias coisas interessantes lá dentro.
É o maestro desse grupo?
Tento organizar aquilo, mas nem sempre consigo.
Você é sempre quem manda?
Não sei. Lá por organizar não quer dizer que mande. Por exemplo, temos um primeiro-ministro, não é? Ele tenta organizar, mas será que é ele que manda?
Quem é que manda?
Segundo o Jerónimo de Sousa, é o poder económico. Se perguntar a outros políticos, dirão outra coisa qualquer.
O João Pereira Coutinho, o colunista, também diz que manda quem tiver o livro de cheques.
É a mesma coisa, nisso estão todos de acordo.
Sendo o João Pereira Coutinho de direita e o camarada Jerónimo...
É de direita também. São todos de direita. Ou são todos republicanos, ainda não percebi.
Eu ainda não percebi se os Irmãos Catita se dão bem com os Ena Pá 2000.
Nós já mandámos esses todos para o hospital. Quem está nos Irmãos Catita é o Elvis. Tenho agora um grupo chamado 4444, de rock sinfónico.
Já convidaram o José Cid e o Tozé Brito para o grupo?
Não, foleirada não queremos, obrigado. Somos um grupo dos anos 70, mas não somos foleiros. O José Cid fez umas coisas boas quando fez rock sinfónico, mas depois começou a fazer música comercial, e o Tozé Brito também.
O José Cid é melhor do que o Elton John.
Ai é, porquê?
Porque o José Cid o disse. E porque eu acho que toda a gente é melhor do que o Elton John.
Nada fica de fora. Sócrates e as escutas, Manuela Ferreira Leite por falar em leite. A pedofilia. Do que gostam os católicos. Educação sexual forçada na terceira idade. Palavras como "singelo" e móveis antropomórficos. Maio de 68 que afinal é Maio de 78. Beckett não é chamado ao barulho. Apesar do absurdo. Mas Agnès Varda, sim, e Bocage.
Há uma radiografia do país feita por Elvis Ramalho, Lello Minsk, Candidato Vieira e Orgasmo Carlos. Há uma biografia sumária do homem por detrás dos personagens, Manuel João.
O que é fazer uma entrevista a um heterónimo? É seguir o fio. E provocar. Jogar no escuro.
Aqui e ali há pequenas incongruências (uma vez diz-se que Elvis Ramalho é o irmão mais novo dos irmãos Catita, outra que é Lello Minsk). E responde como um músico azeiteiro faria ("O papá catita era alguém muito severo"), ou um artista (Aquilo que faço é ao mesmo tempo auto-referencial e irradiante").
A entrevista foi feita à tarde, depois de Manuel João dormir a sesta. Estado: absolutamente sóbrio. Com queixas de uma ressaca da véspera. A casa é a casa de um artista.
Bem-vindo ao admirável mundo de Manuel João Vieira!
... O que interessa realmente nas entrevistas é identificarmo-nos com aquele que é entrevistado; saber por exemplo que é uma pessoa normal como nós. Muitas entrevistas tendem a ser como aquelas que se fazem aos ciclistas quando chegam à meta, ou aos futebolistas, esperanças para o futuro. Existe uma organização implícita.
Um enunciado?
Sim. As respostas também fazem parte de um pacto, e as coisas funcionam segundo esse código, e se funcionarem assim são entrevistas sérias.
Sérias porque ninguém fica defraudado?
Sérias porque é aquilo que é suposto fazer-se. Tudo corre como num filme de Hollywood: há um princípio, um meio e um fim, que é feliz.
Quem vamos começar por entrevistar para furar o enunciado?
Tenho comigo o Orgasmo Carlos, um génio da arte contemporânea, segundo ele próprio. Tenho o Candidato Vieira, que está a fazer uma travessia no deserto. Tenho dois cantores, um que canta nos Ena Pá 2000 e noutras bandas, o Lello Minsk; e um cantor da canção portuguesa, o Elvis Ramalho.
Vamos começar pelo autor da frase: "Se há coisa que me faz mal, é a água mineral."
Isso foi uma tradução que fiz para uma canção que se cantava nos Irmãos Catita. Posso falar imediatamente como Elvis Ramalho... No fundo sou um amante da canção latina como as que havia antigamente. Em Portugal tiveNada fica de fora. Sócrates e as escutas, Manuela Ferreira Leite por falar em leite. A pedofilia. Do que gostam os católicos. Educação sexual forçada na terceira idade. Palavras como "singelo" e móveis antropomórficos. Maio de 68 que afinal é Maio de 78. Beckett não é chamado ao barulho. Apesar do absurdo. Mas Agnès Varda, sim, e Bocage.
Há uma radiografia do país feita por Elvis Ramalho, Lello Minsk, Candidato Vieira e Orgasmo Carlos. Há uma biografia sumária do homem por detrás dos personagens, Manuel João.
O que é fazer uma entrevista a um heterónimo? É seguir o fio. E provocar. Jogar no escuro.
Aqui e ali há pequenas incongruências (uma vez diz-se que Elvis Ramalho é o irmão mais novo dos irmãos Catita, outra que é Lello Minsk). E responde como um músico azeiteiro faria ("O papá catita era alguém muito severo"), ou um artista (Aquilo que faço é ao mesmo tempo auto-referencial e irradiante").
A entrevista foi feita à tarde, depois de Manuel João dormir a sesta. Estado: absolutamente sóbrio. Com queixas de uma ressaca da véspera. A casa é a casa de um artista.
Bem-vindo ao admirável mundo de Manuel João Vieira!
... O que interessa realmente nas entrevistas é identificarmo-nos com aquele que é entrevistado; saber por exemplo que é uma pessoa normal como nós. Muitas entrevistas tendem a ser como aquelas que se fazem aos ciclistas quando chegam à meta, ou aos futebolistas, esperanças para o futuro. Existe uma organização implícita.
Um enunciado?
Sim. As respostas também fazem parte de um pacto, e as coisas funcionam segundo esse código, e se funcionarem assim são entrevistas sérias.
Sérias porque ninguém fica defraudado?
Sérias porque é aquilo que é suposto fazer-se. Tudo corre como num filme de Hollywood: há um princípio, um meio e um fim, que é feliz.
Quem vamos começar por entrevistar para furar o enunciado?
Tenho comigo o Orgasmo Carlos, um génio da arte contemporânea, segundo ele próprio. Tenho o Candidato Vieira, que está a fazer uma travessia no deserto. Tenho dois cantores, um que canta nos Ena Pá 2000 e noutras bandas, o Lello Minsk; e um cantor da canção portuguesa, o Elvis Ramalho.
Vamos começar pelo autor da frase: "Se há coisa que me faz mal, é a água mineral."
Isso foi uma tradução que fiz para uma canção que se cantava nos Irmãos Catita. Posso falar imediatamente como Elvis Ramalho... No fundo sou um amante da canção latina como as que havia antigamente. Em Portugal tive