O cartão de crédito chegou à meia-idade mas tem uma nova vida pela frente

Foto
Custa mais pagar com dinheiro vivo do que usar um cartão. À esquerda, o "veterano" da então BankAmericard, hoje Visa Alan Schein Photography/CORBIS

Começaram por ser usados por uma elite e em ocasiões especiais. Hoje, são o dobro do número de portugueses e já se preparam para ser incorporados nos telemóveis. Os cartões de pagamento acabam de fazer 40 anos em Portugal

Tinha três faixas horizontais de cor, uma azul, outra dourada e um intervalo branco a dividi-las. A ideia era representar o céu azul e as colinas douradas pelo sol da Califórnia, berço do Bank of America. Em Portugal, foi o banco Pinto e Sotto Mayor, de António Champalimaud, que o lançou. Foi o primeiro cartão de crédito português. Hoje, com chip e uma outra imagem, chamamos-lhe Visa. Há 40 anos tinha outro nome: BankAmericard.

O primeiro cartão daquilo que viria a ser a Visa, hoje líder mundial dos sistemas de pagamento, foi emitido a 16 de Março de 1970. Na altura, os cartões apenas podiam ser usados para crédito e, regra geral, em ocasiões especiais como uma viagem, uma ida ao restaurante ou compras em alguns estabelecimentos. Hoje, há mais cartões do que portugueses e tanto podemos usá-los para comprar o jornal no quiosque da esquina como para fazer compras na Internet.

No total, segundo os últimos dados disponíveis do Banco de Portugal, há cerca de 20 milhões de cartões de pagamento no país, nove milhões dos quais com função de crédito. Esses 20 milhões de cartões foram responsáveis por 893,6 milhões de transacções em 2008, no valor global de 31,1 mil milhões de euros. Há apenas oito anos, em 2000, todos estes números reduziam-se a metade.

"As pessoas estão cada vez mais à vontade a usar os seus cartões", considera Sérgio Botelho, director-geral da Visa em Portugal. Reflexo disso é o aumento dos gastos com cartão. Dados do ano passado mostram que, por cada 100 euros gastos pelos portugueses, 23 euros foram pagos com cartão Visa, o dobro da média europeia.

"Em 40 anos, Portugal sofreu uma grande evolução, passando de elevados níveis de poupança para uma sociedade de endividamento e recurso ao crédito", refere Rafael Marques, professor do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG). De acordo com este sociológo económico, a adopção massiva dos cartões só começou a partir dos anos 80, acompanhando o crescimento da classe média, o hábito de domiciliação dos ordenados nos bancos e a generalização dos novos sistemas de pagamento lá fora.

"Os cartões, que começaram por ser um produto de elites, democratizaram-se e estenderam-se a toda a população", recorda António Ramalho, presidente da Unicre, instituição que emite e gere cartões de pagamento e é responsável por mais de metade das transacções com cartão realizadas em Portugal.

A Visa não tem dados comparativos para Portugal, mas a evolução do negócio da Unicre espelha a expansão do sector. No final de 1974, com o início da operação do primeiro cartão da Unicre (o Unibanco, com a marca MasterCharge, que mais tarde viria a dar origem à Mastercard), havia dez mil cartões, que podiam ser usados numa rede de 3180 comerciantes. Hoje, os cartões da Unicre (que, além do Unibanco, passou a ter a representação da Visa e a Mastercard para vários bancos) chegam a 235 mil e são aceites em 35 mil comerciantes.

Conservadorismo à mistura

Para Miguel Pina e Cunha, professor na Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, os cartões de pagamento conduziram não só a mudanças nos padrões de consumo mas também a uma crescente desmaterialização da própria sociedade. Além disso, acabam por ter um papel na globalização, ao facilitar transacções no estrangeiro. "Antes, quando queríamos viajar, tínhamos de comprar traveler"s cheques ou trocar dinheiro, hoje usamos o cartão", conclui.

Mas há o reverso da medalha: as pessoas estão menos cautelosas na hora de decidir comprar. "Vários estudos mostram que o valor psicológico do dinheiro é superior e que, por isso, nos custa mais dar dinheiro vivo do que pagar com o cartão", revela o docente.

Ainda assim, "embora Portugal tenha aderido massivamente aos meios de pagamento electrónico, o uso do cartão de crédito é mais conservador do que noutros países e o nível de incumprimento também é claramente mais baixo do que nas economias mais desenvolvidas", realça Rafael Marques.

Segundo João Leão, professor do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), o endividamento é mais comum nos Estados Unidos do que na Europa e no Japão e, no caso de Portugal, fica mais a dever-se a outras formas de crédito - habitação ou pessoal - do que aos cartões.

O docente, que esteve nos EUA a fazer doutoramento e estudou o comportamento de consumo no sector dos pagamentos, recorda que "há cerca de 25 anos, a taxa de poupança norte-americana era acima de dez por cento do rendimento das famílias e, em 2006, no auge do crédito barato, era de um por cento negativo." No país, cada detentor de cartão de crédito tem, em média, outros oito cartões. A própria história pode dar umas pistas sobre este "exagero". Afinal, foi nos EUA que os cartões de crédito nasceram, sob o signo do boom económico e de consumo no pós-Segunda Guerra Mundial.

Tudo começou num restaurante

Já nos anos 20, algumas empresas petrolíferas e redes hoteleiras nos EUA tinham começado a emitir cartões, permitindo aos seus clientes habituais comprarem a crédito nos seus estabelecimentos. Mas foi só em 1950, num restaurante em Nova Iorque, que surgiu a ideia de criar uma versão mais aproximada do actual cartão de crédito.

O executivo financeiro Frank McNamara estava a almoçar com outros colegas quando, no momento de pagar a conta, percebeu que se tinha esquecido do dinheiro e do talão de cheques. Como a necessidade aguça o engenho, Frank McNamara teve a ideia de criar um cartão com o nome do dono e em que, ao final de algum tempo, este pudesse pagar a conta. No mesmo ano passou do plano à prática, criando o Diners Club Card.

Inicialmente, este cartão de papel tinha 200 utilizadores e era usado em três dezenas de restaurantes e hotéis em várias localidades. Rapidamente alargou a rede e expandiu-se para outros países, incluindo Portugal, onde constituiu uma sociedade e emitiu os primeiros cartões em 1956, com o apoio do Banco do Alentejo.

Entretanto, nos EUA, nascia o BankAmericard, que já não se destinava apenas a viagens e entretenimento mas a todo o tipo de bens e serviços. A ampla rede de clientes do Bank of America, um dos maiores bancos norte-americanos, e o estabelecimento de acordos com outras instituições financeiras, no país e lá fora, permitiu expandir rapidamente este cartão, que mais tarde assumiria a designação de Visa.

A fórmula foi seguida por outro grupo de bancos norte-americanos, que se apressaram a criar um cartão concorrente, o MasterCharge, que viria a chamar-se Mastercard. Tanto a Visa como a Mastercard, actuais líderes mundiais dos sistemas de pagamento, não tardaram a "emigrar" para Portugal, com poucos anos de diferença.

Uma nova era

No dia 16 de Março de 1970, o antecessor do Visa (o BankAmericard) tornou-se o primeiro cartão de crédito moderno a ser emitido em Portugal pelo Pinto e Sotto Mayor. Um dos seus directores, João Ribeiro da Fonseca, seria aliás o primeiro presidente da Visa na região EMEA (Europa, Médio Oriente e África). Já o cartão MasterCharge só entraria no país em 1974, com a constituição da Unicre por um conjunto de bancos nacionais. Pouco tempo depois, a Unicre absorveu também a operação do Sotto Mayor.

Volvidos 40 anos, os cartões não só se democratizaram e alargaram as suas redes a praticamente tudo o que é comércio e serviços, como estão agora a entrar numa nova era, a do valor acrescentado.

"As pessoas querem que os cartões respondam cada vez melhor às nossas necessidades, que ora são de crédito, ora de fidelidade, ora de bónus", defende António Ramalho. Para o presidente da Unicre, o mercado está a começar a "descomoditizar-se" e a "procurar valor acrescentado". A inovação tornou-se a arma para o conseguir.

Tanto a Visa como a Mastercard têm disputado tecnologias inovadoras de pagamento, como as transacções contactless através de cartão ou de telemóvel, em que basta passar o cartão à frente de um terminal, sem digitar código PIN, para efectuar uma compra de baixo valor.

Em Portugal, à semelhança do que está a acontecer em outros países europeus, a Visa e a Mastercard lançaram em Janeiro dois projectos-piloto para testar estes cartões contactless. Se os bancos derem o aval, esta tecnologia poderá estar acessível em breve a todos os portugueses. "O próximo passo serão os pagamentos contactless por telemóvel", anuncia o director-geral da Visa.

Há 40 anos como agora, o principal desafio continua a ser o mesmo. "O nosso grande concorrente não são outras empresas, mas sim o dinheiro vivo", diz Sérgio Botelho, que foi responsável pela abertura do escritório da Visa em Portugal, em Maio de 1999. Actualmente, 80 por cento das transacções a nível mundial ainda são feitas com notas e moedas. Quando se reformar, o director-geral da Visa portuguesa, de 48 anos, gostaria que a relação de forças já se tivesse invertido. Bastariam mais 20 anos e, provavelmente, mais uns milhões de cartões.

Sugerir correcção