Forte e poderosa, no Red Light District
Trabalhou durante quase seis anos como prostituta e já deixou de o fazer há 20, mas há 16 voltou a ter uma montra no Red Light District de Amesterdão. Para mudar as cabeças dos outros e assim ajudar as prostitutas a andarem de cabeça erguida. Por Sofia Lorena (texto) e Miguel Manso (fotos), em Amesterdão
Foi quando deixou de ser prostituta que Mariska Majoor conseguiu a melhor montra do Red Light District (RLD). No quarteirão da imponente Oude Kerk, a Igreja Velha, sinos a replicarem a cada meia hora. De um lado da montra de Mariska está uma loja de bebidas, produtos de higiene e afins; do outro há um espectáculo Non Stop Hard Porno, com sons que chegam à rua e se misturam com os sinos. Rua abaixo, mais montras, das que têm prostitutas do lado de lá, dia e noite, e das que a câmara de Amesterdão tem vindo a entregar a designers e onde se expõem peças de joalharia.
Era mesmo aqui que Mariska queria estar, no coração do RLD. Já não para se prostituir, mas para falar sobre o que é isto da prostituição ser legal, como é trabalhar atrás de uma montra. "Fundei este centro há 16 anos, antes trabalhava como prostituta. Trabalhei nas montras durante cinco anos, quase seis. Quando decidi parar, quis manter-me em contacto com o assunto. Interessa-me. A maioria das pessoas que anda por aqui não percebe nada disto", conta no interior do Centro de Informação sobre a Prostituição, que é uma montra com uma cadeira e uma loja e é também o seu escritório.
É sábado à tarde e Mariska Majoor acabou há pouco a visita que organiza uma vez por semana. Pelas quatro horas, o centro estava composto: vários turistas, quase todos de meia- idade, uns um pouco mais velhos. Não há guia de Amesterdão que não anuncie o centro de Mariska e não o sugira como uma boa introdução ao RLD e à cidade onde a prostituição é legal e as prostitutas estão à vista de todos.
"As pessoas vêem uma igreja e depois vêem as montras e entram em choque total", descreve. Mariska, que já foi prostituta atrás de uma montra alugada, sabe-o bem. Depois de deixar de ser uma trabalhadora do sexo concluiu que a melhor maneira de continuar ligada à prostituição era dedicando-se a explicar aos outros como é estar do outro lado. Aos 41 anos, continua a querer fazê-lo.
"Para mim tem tudo a ver com liberdade de escolha. É uma forma de ganhar dinheiro e não tem nada a ver com bem ou com mal. Onde a prostituição é ilegal há muito mais violência contra quem trabalha nesta área." Isso chega-lhe e Mariska garante não ser "demasiado romântica" e diz que é também por saber que há chulos, há tráfico e mulheres trazidas de países pobres para Amesterdão que faz o que faz.
Ainda antes do centro vieram as revistas, para ajudar prostitutas e clientes a conhecerem melhor direitos e deveres, opções, a conhecerem-se uns aos outros. A Red Lantern é para prostitutas; a Pleasure Guide para clientes.
Na Red Lantern escreve-se muito sobre impostos e há anúncios de todas as organizações que trabalham para ajudar quem trabalha na prostituição, mesmo daquelas (e são muitas) com as quais Mariska tem divergências importantes. Mas também há textos sobre os riscos da profissão e histórias com finais pouco felizes: "Quando uma mulher decide trabalhar como prostituta, costuma ser uma decisão impulsiva, pouco ponderada. É preciso que alguém nos prepare para o que aí vem." Há ainda histórias sobre prostituição noutras partes do mundo, em países africanos, por exemplo. "É muito importante saber como vivem as colegas." E "pequenas entrevistas com trabalhadoras do sexo, que contam como lidam com os clientes".
Na Pleasure Guide há informações sobre preços e serviços oferecidos, sobre "onde ir e o que fazer", com muitas mensagens importantes sobre sexo seguro "embrulhadas em histórias agradáveis". Também há testemunhos: "Alguns homens gostam de saber como é que uma prostituta se vê."
Esclarecer, acima de tudo
Com as revistas veio o dinheiro dos anúncios (a revista para prostitutas é distribuída gratuitamente, a Pleasure Guide custa três euros). "Depois pedi algum dinheiro emprestado aos meus pais para começar." Assim nascia o centro, a cada ano que passa mais cheio, mas ali desde sempre, com montra e tudo: na loja vendem-se T-shirts, pins, cartazes, livros de fotografia que mostram como o Red Light foi crescendo década após década, revistas, o seu livro When Sex Becames Work, postais, batons.
A missão de Mariska é esclarecer e para isso associa-se a outras organizações e até aos políticos, dos quais "por princípio" discorda. "O ponto de partida das autoridades é que a prostituição é um problema e para mim é um tipo de trabalho. Querem controlar as regras de uma actividade que nem entendem." Mas Mariska colabora com quem quer que faça algo de positivo pelos trabalhadores, mesmo porque são as organizações das quais mais discorda que "têm o dinheiro" para investir, enquanto ela sabe "mais do que as pessoas desses grupos por ter sido prostituta e por estar aqui".
"Envolvo-me em tudo o que posso, faço actividades com estudantes de todo o mundo que querem saber com que tipo de problemas lidamos. Colaboro com organizações que fazem acções de treino de auto-defesa, com grupos que fazem prevenção de VIH. Também participei com o Governo na criação de um número de telefone anónimo para atender vítimas de tráfico. Dou-lhes páginas nas minhas revistas para anunciarem e explicarem os seus projectos. Por exemplo, se há uma sede de um grupo em Haia é bom anunciarem porque a minha revista é distribuída gratuitamente em todo o país", explica. "Mas o principal é sempre financiar o meu centro."
É a partir do centro que quer mudar a cabeça das pessoas. Hoje, talvez mais do que nunca, isso significa também combater as autoridades e os seus projectos para o RLD. Com o projecto Red Light Design, a câmara já fechou mais de 100 montras e entregou-as a artistas. A ideia é tornar o centro da cidade mais apetecível para quem se sente incomodado com as prostitutas, mais fashion e menos shady (sombrio), como o próprio município anuncia.
"Há uma parte do conselho municipal que quer mudar a imagem do Red Light, que sempre foi uma parte muito especial da cidade. O problema é essas pessoas verem a zona como o seu projecto. Têm esta ideia de encher a zona história com hotéis elegantes e a indústria do sexo está no caminho. Há restaurantes que querem expandir os negócios. O problema é que o querem fazer à custa das prostitutas. E eu odeio isso. Ao expulsar daqui as mulheres só as estão a empurrar para a clandestinidade, ao fecharem bordéis não estão a ajudar as verdadeiras vítimas do tráfico", defende.
Se é preciso combater as autoridades, combate-se. Mariska está cá para o que for preciso. Conta, com orgulho, como a câmara já foi obrigada a desistir de encerrar todas as montras em redor da Oude Kerk. As prostitutas argumentaram em tribunal que prestam um serviço social na zona e ganharam.
O que mais enfurece Mariska no actual discurso do município é que este sublinha cada preconceito que as pessoas têm sobre a prostituição. "É uma confirmação. Permite às pessoas dizerem: "Vêem, tínhamos razão. Isto é mau. Se eles dizem, é porque é verdade."" E este é que é o seu combate. "[Se] te olham de cima, vais ter mais dificuldades em acreditar que mereces respeito e em exigir os teus direitos."
Para além das visitas ao sábado, Mariska já organizou "dias abertos", em que leva grupos a passear por todo o RLD, montras incluídas, e a conversar com quem por ali vive e trabalha. Virão mais, o próximo já em Abril ou Maio. "Assim respondemos, devolvemos o murro."
Eu e a minha grande boca
Mariska é como a estátua que demorou anos a conseguir inaugurar no seu RLD: Belle, que tem a cabeça erguida, os dois pés assentes no chão e pede "respeito pelos trabalhadores do sexo de todo o mundo". Apesar dos guias de viagem falarem das "ex-prostitutas" que trabalham no seu centro, o centro é mesmo só ela. "Sou eu e a minha grande boca. Às vezes as pessoas pensam que isto é uma grande coisa, porque eu pertenço a várias organizações, tenho os livros e as brochuras e sou ex-prostituta."
Apesar de tudo, Mariska não pensa que os preconceitos sociais contra a prostituição tenham vindo sempre a piorar. "Depende, se lermos os livros de História, percebemos que já foi pior. A Igreja neste país não é tão forte como era há 100 anos e, se dependesse da Igreja, a prostituição seria sempre ilegal. Mas há mais violência contra as trabalhadoras do sexo do que há alguns anos", diz. Por isso é que ela acusa as autoridades de travarem as batalhas erradas. Se ela mandasse, declarava guerra total aos chulos: "A polícia é mole. Os senhorios sabem quem são e dizem que não sabem. Se eu tivesse forças, partia-lhes os joelhos, corria com eles à pancada."
Cá fora ainda é de dia e é quando há luz do sol que o RLD é mais irreal: prostitutas sentadas e não em pose, como estarão à noite, umas bebem sumos, outras enviam sms. Há montras vazias, só com as cadeiras. Alguns turistas param especados. Um tenta tirar uma fotografia e acaba a dizer palavrões e a atirar com uma lata a uma montra, depois de ter sido mandado embora. Quando fica escuro, acendem-se as luzes vermelhas e cor-de-rosa em redor das montras e as suas ocupantes exibem a melhor lingerie e mostram-se produzidas. O ambiente é estranhamente glamoroso. Há homens que se portam como se estivessem num circo, mas outros são discretos e tentam escolher ao longe, para só se aproximarem quando souberem o que querem, como se aconselha.
Mariska Majoor sabe que naquelas montras não há só mulheres informadas e senhoras do seu nariz. Mas acredita que a prostituição de montra, que existe noutras nove cidades holandesas, é aquela em que as mulheres podem ser mais independentes, como escreve no seu livro. "Paga-se renda pelo quarto e enquanto se trabalha ali aquela é a nossa loja. Somos empregadas de nós mesmas e podemos decidir os nossos preços e métodos de trabalho." Ao início, explica, pode ser assustador para qualquer mulher, mas com o tempo e a atitude certa é possível sentir-se "forte e poderosa".