Kathryn Bigelow A arquitecta de si própria
É a primeira mulher a ganhar o Óscar de Melhor Realizador nos 82 anos de existência dos Óscares. Mas isso passa ao lado da essência de alguém que não é "uma mulher que realiza", apenas "um cineasta que faz filmes".
Há um paradoxo a desmontar no modo como olhamos para a vitória de Kathryn Bigelow nos Óscares de 2010.
O paradoxo é este: é a primeira vez na história dos Óscares que uma mulher ganha o troféu de Melhor Realizador (e, de caminho, é a primeira vez que um filme realizado por uma mulher ganha o galardão de Melhor Filme). Mas ver as coisas por esse prisma implica a existência de um pressuposto sobre o tipo de filmes que uma mulher pode ou deve realizar que, na prática, já teria deixado de existir há muito tempo.No entanto, a vitória de Bigelow por Estado de Guerra, filme de guerra passado no ambiente hipermasculino de uma brigada de minas e armadilhas do exército americano, desmonta esse pressuposto (mais atávico do que documentado) de que há "filmes de homens" e "filmes de mulheres".
Isolar a vitória de Bigelow por ser uma mulher que realiza apenas confirma aquilo que ela definira há alguns anos numa entrevista ser "uma novidade, mas também uma guetificação". "É algo insultuosa esta percepção de haver um certo tipo de filmes que um homem ou uma mulher podem fazer, porque não pode um homem fazer algo sensível e sereno?" Ou, no caso, porque não pode uma mulher dirigir o único filme feito até hoje nos EUA sobre a guerra do Iraque que recebeu a aclamação unânime da crítica e foi até reconhecido por alguns dos veteranos do conflito?
Ora, a mulher que o fez não se vê como uma mulher que faz filme - apenas como alguém que faz filmes. Numa outra entrevista à revista Première, Kathryn Bigelow dizia nunca ter olhado para o seu sexo como um obstáculo "por duas razões: primeira, não posso mudar o meu sexo; segunda, recuso parar de filmar. É irrelevante quem realizou um filme, o importante é como reagimos perante ele".
Manohla Dargis, a respeitada crítica de cinema do jornal New York Times, propôs em Junho último o que definia como "uma ideia radical: [Bigelow] é, simplesmente, um grande cineasta. Mesmo que seja marginalmente interessante que ela diga "acção" e "corta" em posse de dois cromossomas X, o género é a coisa menos importante no seu cinema cinético."
As outras mulheres
Nisso, pelo menos, Kathryn Bigelow, 58 anos, está em boa companhia quando olhamos para as mulheres anteriormente nomeadas para o Óscar de Melhor Realizador. Foram, apenas, mais três - a italiana Lina Wertmüller (em 1977, por Pasqualino das Sete Beldades), a neozelandesa Jane Campion (em 1994, por O Piano), e a americana Sofia Coppola (em 2004, por Lost in Translation - O Amor É Um Lugar Estranho). Todas elas cineastas com percursos "pessoais e intransmissíveis" que só a espaços se cruzaram com o que Hollywood espera de uma mulher realizadora e que perseguem os seus caminhos fixadas nas suas musas assaz pessoais. O que não lhes facilita necessariamente a vida num mundo do cinema que ainda está dominado pelos homens e que funciona de acordo com formatações bem específicas.
A experiência de Bigelow, a esse nível, é exemplar. A realizadora recorda em muitas entrevistas que, quando entrou no circuito de Hollywood após a sua primeira longa-metragem, The Loveless (1982), um filme de motards estilizado com um estreante Willem Dafoe, apenas recebia guiões de comédias de liceu - porque a Meca do cinema não metia na cabeça que uma mulher realizadora pudesse filmar outra coisa. E, nas suas palavras a Manohla Dargis, "se eu quisesse ter a oportunidade de rodar um filme que me intrigasse, teria de ser a arquitecta do meu próprio destino".
Esse destino desenhou-se-lhe numa sessão dupla com dois filmes-chave da "nova Hollywood" dos anos 1960 e 1970. Até então, Bigelow, nascida e criada em San Carlos, nos arredores de São Francisco, filha de uma professora e bibilotecária e do director de uma fábrica de tintas, estava destinada às artes plásticas. Começou a pintar aos seis anos de idade, estudou no Instituto de Arte de São Francisco, mergulhou de cabeça em teorias semióticas no seu mestrado em cinema na Escola de Belas-Artes da Columbia University, bebeu da fonte da lendária ensaísta Susan Sontag, fez parte da filial nova-iorquina do colectivo de arte conceptual Art & Language. "Comecei por estar interessada na arte abstracta expressionista, material agressivo, cinético. Ao fim de um tempo passei para a arte conceptual, política, e isso deu-me uma abordagem analítica e crítica sobre a mercantilização da cultura. E depois traduzi isso para o cinema."
E depois viu Os Cavaleiros do Asfalto, de Martin Scorsese (1973), e A Quadrilha Selvagem, de Sam Peckinpah (1968), e tudo mudou.
Essa sessão dupla pegou "em toda a minha saturação desconstrutivisto-lacaniano-semiótica e distorceu-a completamente". O cinema tornara-se na "intersecção" dos conceitos teóricos e abstractos que absorvera na sua educação artística: "Quando pintava, não havia nada que eu fizesse que não tivesse uma referência. Mas quando comecei a trabalhar com cinema, descobri uma alegria pura, crua, no que estava a ver e a fazer." E a descoberta do cinema visceral, violento, virtuoso de Scorsese e Peckinpah, que trazia uma identidade unicamente americana e um olhar enformado puramente pelo acto de ver e pelo processo de filmar, acordou outra coisa em Bigelow, uma abordagem mais urgente que ressoou com a sua própria técnica de pintura. A Manohla Dargis, a realizadora diz que, "quando pintava, adorava peças grandes, gestuais, viscerais, cruas, imediatas. Nada que fosse preciso e paciente e cuidadoso e talvez mais introspectivo mexia comigo."
Mas não olha para isto como a explicação definitiva ou ideal da sua atracção pelo cinema de acção, que chegou a admitir entre risos poder ser um "defeito de sensibilidade". Anos antes, a Johanna Schneller, da extinta edição americana da revista Première, Bigelow já definira a sua atitude perante um projecto. "Creio que foi Scorsese que fez uma vez uma distinção: há cineastas (filmmakers) e realizadores (directors). Os cineastas desenvolvem os seus próprios projectos, e isso quer dizer fazer toda a pesquisa, moldar o guião. Preciso de conhecer o meu assunto de dentro para fora, de o ter na ponta da língua. Mas, se receber um guião pronto a filmar, é como receber um quadro acabado que só precisa de ser emoldurado. Não sei filmar assim."
O macho alfa
Como sabe, então, ela filmar? Com muita preparação - cinco anos para Estado de Guerra, que foi rodado na Jordânia, paredes-meias com o Iraque onde tudo se passa e onde a realizadora (e o seu director de fotografia, Barry Ackroyd, cúmplice habitual de Ken Loach) ainda contemplou fazer umas quantas incursões à socapa antes de os seguranças a dissuadirem. Outros quatro para K-19 (2002), o seu thriller de submarino baseado num caso real da guerra fria, para o qual viajou várias vezes à Rússia para pesquisar os pormenores mais minuciosos, conseguindo até a bênção da viúva do comandante interpretado por Harrison Ford no filme - e mandou que o décor do submarino fosse construído em tamanho real.
É, em parte, isso que explica porque é que, em quase 30 anos de cinema, Bigelow só tenha assinado oito filmes. Depois de The Loveless, vieram Depois do Anoitecer (1987), Aço Azul (1989), Ruptura Explosiva (1991), Estranhos Prazeres (1995), The Weight of Water (1999), K-19 e Estado de Guerra. Só um foi um significativo êxito comercial: Ruptura Explosiva, um delirante policial hipercinético com Keanu Reeves no papel de um agente do FBI que se infiltra num gangue de criminosos viciados em adrenalina, liderado por Patrick Swayze - e mesmo nesse Bigelow lutou para impor Reeves no papel principal, contra a vontade da produção. Nenhum deles foi escolhido pelo seu potencial comercial: Bigelow apenas é capaz de filmar o que a apaixona, o que a intriga - e que nunca encaixou naquilo que Hollywood achava que ela devia fazer. Dos oito, só Estranhos Prazeres, um caldeirão de ficção científica presciente e policial de conspiração, foi realizado para um estúdio, embora resguardado das interferências pelo seu argumentista e produtor, James Cameron - sim, o mesmo James Cameron de Avatar que Bigelow derrotou há uma semana, com quem foi casada dois anos.
A relação trouxe um picante especial à corrida dos Óscares, pelo que reflectia da própria dimensão dos dois filmes (o "David" Estado de Guerra, rodado por tostões em independência absoluta, e o "Golias" Avatar, filme mais caro e mais rentável de sempre) mas também das personalidades do ex-casal. Cameron é um macho alfa que tem tendência a escolher como parceiras "mulheres de armas" (a produtora Gale Anne Hurd e a actriz Linda Hamilton, a Sarah Connor original dos dois Exterminadores Implacáveis). Bigelow é uma mulher de desafios e riscos que ganhou a pulso o respeito dos seus pares (Harrison Ford, que ela dirigiu em K-19, disse irritadamente à revista Première que "ela pode ter sido a primeira mulher que me dirigiu, mas nunca teria aceitado o filme por ela ser uma mulher. Ela já provou o que tinha a provar"). Quando Cameron produziu Estranhos Prazeres, o casal já estava divorciado há muito, mas continuaram amigos e ele não hesitou em dizer publicamente que achava que a ex-mulher merecia ganhar mais do que ele.
Filmes tensos
Mas a verdade é que todas estas tentativas de "agarrar" Kathryn Bigelow em termos de um soundbite ou de uma imagem acabam por esbarrar na própria figura da realizadora. A mulher alta e esbelta que desfilou na passadeira vermelha parece não jogar com os filmes tensos e pulsantes, aparentemente pouco femininos, que dirige. Estes não jogam com o que sabemos do seu passado académico e vanguardista e este por seu lado não bate com a ideia de um thriller que nenhum estúdio quis financiar sobre um tema que até hoje tem sido "veneno de bilheteira", que esteve longos meses à espera de ser comprado para distribuição, que é o filme com piores resultados de bilheteira a alguma vez ganhar o Óscar, mas que tem sido unanimemente aclamado por quem o viu como um clássico instantâneo.
É precisamente essa dificuldade de reduzir Kathryn Bigelow a uma única faceta que define melhor o que a torna tão fascinante: como é que se consegue manter o equilíbrio precário, na corda-bamba, que caracteriza o seu trabalho? Como é que se conseguem fazer filmes que saciem ao mesmo tempo os anseios estéticos e teóricos da cinefilia e da crítica dentro das coordenadas do cinema de género comercial?
A resposta vem por portas travessas, na entrevista que Bigelow concedeu a Aaron Hillis, do Village Voice, quando da estreia americana de Estado de Guerra: "Penso nos meus filmes nos mesmos parâmetros que usava para trabalhar no mundo da arte. Acho que penso em termos de equilíbrios tonais, de acessibilidade e substância. E existe uma tensão maravilhosa entre a acessibilidade e a substância - e se encontrarmos o equilíbrio certo entre ambos, é aí que está a arte."
Arte? Num filme de guerra? Parece um paradoxo. Mas com Kathryn Bigelow os paradoxos estão lá para serem desmontados. Afinal, as mulheres não são supostas dirigir filmes de guerra - e muito menos ganharem Óscares por eles. Podemos começar a deixar esses pressupostos definitivamente para trás? a
jorge.mourinha@gmail.com