Cem anos depois...

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Estes cem anos mudaram mais a situação das mulheres do que os quinhentos anteriores

Esta semana celebraram-se os cem anos do Dia Internacional da Mulher. Cem anos que mudaram mais a situação das mulheres do que os quinhentos anteriores. Fará assim sentido, ano após ano, lembrar o percurso percorrido e o que ainda falta percorrer, com base na divulgação de estatísticas? Tem sentido uma reflexão "quantitativa" que se limita a somar as "vitórias no combate pela igualdade" ou à visão paternalista e vitimizadora que coloca o ênfase nas desigualdades que ainda vigoram, na necessidade de "quotas" e de "discriminações positivas"? Tentarei ir por outro caminho.

A questão da educação, em primeiro lugar. "A progressão da escolaridade feminina constitui um acontecimento maior do final do século XX", afirma a socióloga Margaret Maruani. É um facto: hoje o nível de escolaridade das mulheres, incluindo a universitária, é superior ao dos homens na grande maioria dos países europeus. Mas as mulheres não estão apenas nas escolas, universidades ou nos corredores do poder à espera da sua vez. Estão em cursos livres que não dão diplomas, nas conferências e palestras, nas salas de teatro, concerto e cinema... Mais do que a ambição (legítima) de progredir nas carreiras e nos salários, encontramos uma curiosidade e uma sede de aprender, sem outro objectivo do que o conhecimento e o enriquecimento pessoal. Talvez por isso se encontre cada vez mais mulheres na investigação científica...

Que transformações trará esta "revolução" nas nossas sociedades? Qual o impacto social, ético, económico e político deste acesso das mulheres à educação e conhecimento? Talvez ainda seja cedo para o sabermos, mas é sem dúvida um impacto fortíssimo que começa na educação dos filhos e se reflecte na sua própria participação activa em todas esferas da sociedade. Trará essa participação alguma mudança nas relações sociais, na relação com a natureza, na política?

A questão da maternidade, em segundo lugar. Será que, como afirma a filósofa feminista Elizabeth Badinter no seu livro Le Conflit, la Femme et la Mère, se assiste nos últimos anos a um retrocesso ideológico relativamente ao papel da mulher, com base numa idealização da maternidade e na sobrevalorização do papel da mulher como mãe? Há, sem duvida, uma tensão permanente numa mulher entre o seu papel de mulher, mãe e de profissional. E embora muitos homens também a sintam, é verdade que a mulher vive essa tensão com muito mais força. Simplesmente não me parece que isso signifique um retrocesso ideológico, mas sim a necessidade de equilibrar o que o ardor do feminismo inicial tendeu a desequilibrar. "A maternidade impede a realização da mulher" era uma frase que se ouvia nos primórdios da criação do movimento feminista, em Paris, nos anos 60. Esta visão, conjugada com o acesso à pílula e ao aborto, ao mercado de trabalho e à educação, levou de facto a um certo desequilíbrio - minimizado nas nossa consciências por frases como: "A qualidade do tempo que se passa com os filhos é mais importante do que a quantidade" ou "uma mulher insatisfeita profissionalmente também não pode ser boa mãe", ideias que, não sendo falsas, têm sobretudo como fim apaziguar as nossas consciências. A tensão da partilha é inevitável e de certo modo salutar porque ela lembra-nos a cada momento a importância da mãe, do pai e da família no desenvolvimento das crianças, importância que a vida se encarrega de nos demonstrar por vezes da forma mais cruel.

A questão da religião, em terceiro lugar. Provavelmente o espaço onde o papel das mulheres progride mais dificilmente. É evidente que quando falamos em religiões, temos de falar em espaços culturais e civilizacionais - o papel das mulheres no cristianismo ou no judaísmo é diferente consoante se situe no Ocidente ou no mundo árabe, tal como o islão em relação às mulheres é diferente na Arábia Saudita, na Turquia ou na Indonésia - embora a visão integrista tenda a uniformizar os comportamentos (arabizando-os, no caso do islão). Não há comparação entre a situação da mulher no mundo judaico/cristão e no mundo islâmico, embora neste último se comece também a manifestar alguma evolução. Mas se há um traço comum é a menorização do papel das mulheres no culto e nas instituições religiosas propriamente ditas. Por que razão não podem as mulheres oficiar nas igrejas, sinagogas e mesquitas? Ou inclusivamente serem papas, rabinas ou imãs? Contrariamente ao mundo arábico-islâmico, onde esta menorização está em relativa sintonia com a situação de inferioridade social da mulher, no mundo ocidental ela está totalmente desfasada, mantendo-se não só devido ao bloqueio da "nomenclatura" religiosa, mas sobretudo por força da indiferença da maioria da população feminina. Numa época em que a religião tem um papel significativo, não só na vida das pessoas, mas na grande maioria dos conflitos e guerras da actualidade, uma participação activa das mulheres poderia ter um impacto decisivo, não só nas próprias leis religiosas, construções humanas por excelência, mas na sociedade de uma forma geral.

Por fim, a idade como forma de discriminação específica. Num mundo em que a juventude e a beleza são sinónimos, em que a velhice é escondida e rejeitada para longe da visibilidade social, a mulher tem muito mais dificuldade do que o homem em encontrar o seu lugar. Não só no mundo do trabalho, mas nas relações amorosas, é mais difícil a uma mulher de idade madura encontrar um parceiro do que o contrário. Não se aborda facilmente este tema, permanece de algum modo um tabu. Mas talvez o envelhecimento das mulheres fosse também um bom tema para o feminismo... Investigadora em assuntos judaicos (esther.mucznik@netcabo.pt)

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