Em 2004, Joanna Newsom surgia em cena. Orelhinhas de elfo perfeitas, aura de menina cândida, vestidos impecáveis, voz de miúda travessa, uma harpa do domínio dos sonhos, um disco fundamental, "The Milk-Eyed Mender".
No mesmo ano, Devendra Banhart lançava "Rejoicing in the Hands" e tornava-se, como Joanna, um ícone "indie". A figura - um rapaz alto, magro, de frondosa barba e aspecto de quem esteve congelado 40 anos, praticamente desde o fim da a revolução "hippie" - casava com a música, canções folk que lembravam a graça de Donovan e o lado trovadoresco do Marc Bolan dos primeiros discos dos T. Rex. Também na América, nesse mesmo ano, as CocoRosie, amigas de Banhart, começavam a mostrar a sua música feita de guitarras acústicas, brinquedos e pozinhos de electrónica.
Estes e outros artistas vinham embrulhados numa aura de estranheza que lhes dava um encanto extra em termos mediáticos. A bem da verdade, Banhart e Newsom não eram mais estranhos do que qualquer músico folk dos anos 60, mas, nesta década de maravilhamento tecnológico, qualquer sugestão de regresso ao campo não podia se não ser entendida como uma bizarria. A esta trupe de rapazes e raparigas de roupas fora do comum e pinta de "hippies" aburguesados, foi imediatamente colado o rótulo "freak folk" ou "New Weird America", expressão que fazia parte do título de uma reportagem de David Keenan na revista "Wire" de Agosto de 2003 (ver caixa).
O artigo de Keenan não referia os nomes de Joanna, nem de Devendra, mas a força da expressão tornou-a irresistível para muitos jornalistas. Joanna e Devendra acabariam por ascender a um estatuto mais "mainstream", abrindo a sua música a novas estéticas - o primeiro assinou pela multinacional Warner e incorporaria nas suas canções o rock'n'roll, a música popular brasileira e até o reggae; a segunda transformar-se-ia numa inventora de megalómanos sonhos orquestrais.
De repente, a gaveta "New Weird America" perdeu fulgor. Mas o seu espírito original encontra-se no "underground", fora do radar da comunicação social de massas e da indústria fonográfica.
Na verdade, está onde sempre esteve. Longe dos holofotes, a década continuou a oferecer vários sinais de recuperação das tradições americanas do psicadelismo e da folk, campos abertos a contaminações com o free jazz, o noise e outros idiomas.
O legado de John Fahey e Robbie Basho, guitarristas seminais que, a partir dos anos 60, transformaram a folk num território de aventura, absorvendo, por exemplo, o hipnotismo das ragas indianas, continuou a ser campo a explorar para artistas como Jack Rose (ver caixa), que morreu em Dezembro passado, Glenn Jones e Ben Chasny (Six Organs of Admittance). Os Sunburned Hand of the Man e os No-Neck Blues Band mantiveram-se psicadélicos até à medula - discos e concertos são um território sem rede, totalmente entregue à improvisação. Tara Burke (Fursaxa), uma espécie de Nico rural, manteve-se fixada no som contínuo dos teclados. A lista podia continuar: há um número sustentado de pequenas editoras (tradicionais ou que editam CD-R e cassetes), festivais e lojas de discos abertas a estes sons, ainda hoje.
"Só vejo uma relação superficial [entre os mundos de Joanna Newsom e Devendra Banhart e a 'free folk']", diz David Keenan, ao telefone com o Ípsilon. A sua definição original de "free folk" (ou "New Weird America") "não punha a tónica na folk, mas no 'free'", refere. Sem questionar a sua honestidade artística, Keeenan vê no Devendra cantor folk "uma variação de Donovan" e de T-Rex e em Joanna Newsom uma "outra tradição", de uma certa pop no feminino, a de Tori Amos e Kate Bush. O ressurgimento da folk no "mainstream" foi, para ele, uma mera forma de "revivalismo", nos antípodas do sentido original que deu ao termo "New Weird America".
De Nova Iorque para o Vermont
Matt Valentine e Erika Elder são um dos melhores exemplos do "lado B" do fenómeno. O duo, que actuou em Portugal no final do mês passado, estranha quando o associam à etiqueta "freak folk", que entendem como uma derivação sem sentido do termo "free folk", que Matt inventou para baptizar o festival que montou em 2003, em Brattleboro, no estado de Vermont. "É estranho quando nos metem nisso porque não só é incorrecto, como é o mais longe que pode estar da nossa estética e ideologia", diz Matt, em conversa com o "Ípsilon" num restaurante de Santa Maria da Feira, depois do concerto no Festival para Gente Sentada. E remata, com um copo de Porto branco: "A free folk não deve ser uma prisão".
O percurso de Matt e Erika ajuda a perceber que música é esta e que motivações tem. Nos anos 90, em Nova Iorque, Matt fundou os Tower Recordings, pioneiros das aproximações da folk a outras músicas. "Os tipos do grunge na costa Oeste punham os amplificadores no 10 [valor máximo], nós púnhamos no dois. Os Tower Recordings foram, de certa forma, uma reacção ao lado palhaço do grunge", conta. Numa altura em que o rock alternativo era rei, os Tower Recordings tocavam música acústica "como manifesto". "Toquei com John Fahey, Sandy Bull...
Conheci-os, foi muito importante para mim. Até tocámos com os Cluster [pioneiros da electrónica ambiental]. A música deles estava, na altura, fora do radar. Hoje, estes artistas são falados", observa.
Não satisfeitos a 100 por cento com a vida na grande cidade, Matt e Erika mudaram-se em 2002 para a pachorrenta cidade de Brattleboro, à procura de um local mais calmo para viver e para fazer música. Têm um estúdio caseiro onde gravam muitos dos discos que lançam por ano. "Quem está de fora pode achar que há muitos discos, mas para nós trata-se apenas da nossa ética de trabalho, de trabalhar muito. Uma banda que faz um disco de cinco em cinco anos é preguiçosa", diz Matt. Só em 2010 planeiam lançar seis discos - algo normal nesta gente.
O casal, apaixonado pelo lado menos conhecido da história da música popular (de Fred Neil a Roky Erickson, passando pelo duo folk britânico dos anos 70 Hunt & Turner ou por Michael Hurley), lança vários discos por conta própria, através da editora caseira Child of Microtones, ou noutras pequenas editoras. "Tinha um emprego em Nova Iorque. Não vou dizer o nome, mas usei as fotocopiadoras a 'laser' da empresa para fazer o segundo e o terceiro discos da Child of Microtones", conta Erika, a rir-se.
A dois ou com bandas constituídas por amigos, Matt e Erika elevam os blues para territórios celestes (em Santa Maria da Feira lançaram-se numa versão de "I'm Satisfied", de Mississippi John Hurt, cheia de poeira cósmica), exploram a folk, totalmente liberta das amarras formais, mas, ainda assim, ciente da história do género, e malhas rock'n'roll à Neil Young, sempre com margem para a improvisação. A palavra a Matt Valentine: "Toco o que quero ouvir. O que sai é este som 'free folk'".