Nevada City, Califórnia. Cidade fundada durante a Corrida ao Ouro, em meados do século XIX, tornou-se nos anos 60 e 70 refúgio para hippies e beatnicks e todos os demais que aspiravam fugir aos males da civilização. O rio Yuba corre por perto, as Montanhas Rochosas não estão longe e os bosques que rodeiam a cidade estão pintalgados de casas despontando no emaranhado da vegetação. Ali nasceu Joanna Newsom, a 18 de Janeiro de 1982, um ano depois de os pais, médicos e músicos amadores, terem escolhido viver no mesmo espaço que o compositor vanguardista Terry Riley, o poeta beat Gary Snider ou Roger Hodson, vocalista dos Supertramp que, e a sua piscina em forma de guitarra. A cidade diz-nos muito sobre Joanna Newsom. Ou melhor: o muito que Joanna Newsom diz sobre Nevada faz-nos percebê-la melhor.
Recordam-se certamente de quando nos deparámos com ela, ano 2004. Newsom tinha 22 anos, tiaras na cabeça, vestidos campestres e uma harpa ao colo. Tinha uma aguda voz de criança que repelia e fascinava em igual medida, surgia recomendada por Will Oldham e Devendra Banhart, e as suas canções, farrapos de folk muito antiga encenadas como fantasias da Terra Média de Tolkien - não por acaso, qualquer texto sobre ela incluía elfos e unicórnios -, condiziam com aquilo que soubemos depois de ouvir o celebrado "The Milk Eyed-Mender", o seu primeiro álbum. Tudo nela apontava para uma certa ancestralidade, para uma feminilidade trovadoresca: a harpa, instrumento incomum em contexto pop e intimamente feminino; as canções de um etéreo romantismo, indefinidas entre sonho infantil e paixão adulta; uma poética recheada de imagens naturais, estranhas justaposições e arcaísmos de linguagem. Fazia sentido.
Começávamos a falar assiduamente de "free folk" e da "New Weird America", de música que, em busca de salvação contra a deriva tecnológica, enterrava as mãos na terra enquanto recitava uma nova versão do "turn on, tune in, drop out" de Timothy Leary. Joanna Newsom, pareceu-nos então, não poderia representá-la melhor. Pegávamos em "Sadie" e tínhamos a explicação teórica do processo: "This is an old song / These are old blues / And this is not my tune / But it's mine to use".
Tinha crescido numa casa sem televisão, com pais que criavam canções como mnemónica para que as filhas aprendessem a soletrar correctamente "eucalipto", e que a levavam ao Lark Camp, em Mendocino Woodlands, misto de festival folk e acampamento hippie onde era possível ver uma harpista adolescente tocar horas e horas entre a vegetação - era Newsom, claro. Juntemos a isto a história de como aos 18 anos decidiu que deveria cumprir um ritual de passagem à idade adulta. Passou três dias num círculo de pedras contemplando o rio e enfrentando crias de lobo. E ainda, para compor o cenário, o cemitério índio nas proximidades de casa e a presença dos seus espíritos que, conta, se pressentiam a cada momento.
Joanna Newsom, fada da folk, harpista ancestral para os tempos modernos, viajava pelo mundo com o sucesso de "Milk Eyed Mender"; passava pelo Lux, em Lisboa, e, entre o silêncio reverente do público, ouvia um pouco reverente "casa comigo!". Mas era como se nunca tivesse abandonado aquela dimensão fora deste mundo que a sua música habitava - e que julgávamos ser, para ela, a único possível.
Perder a voz no Big Sur
"Have One On Me", o terceiro álbum de Joanna Newsom, é um épico a que já não estamos habituados. 18 canções divididas por três discos, a maioria delas a rondar os sete minutos de duração. Foi gravado numa cabana no Big Sur, a região californiana onde as montanhas de Santa Lucia contemplam o Pacífico, imortalizada por Henry Miller ou Jack Kerouac.
Na cabana, Joanna Newsom, o multi-instrumentista e orquestrador Ryan Francesconi e o percussionista Neal Morgan foram criando a música que ela apresentou à sua editora, a Drag City, como conceptual. Explicou ao "Independent": "Defini-o em termos de "manhã, meio-dia, noite; mesmo se não foi esse o conceito quando o álbum foi composto, a forma como a narrativa progride... sente-se dessa forma". Os momentos do dia são uma metáfora.
"Have One On Me" é a história do princípio e do fim de uma relação. Começa com "Easy", e o idílio gentil de uma paixão que não necessita de nada mais do que a sua própria existência, e há-de terminar em "Does not suffice" com o idílio arrumado e empacotado pela amante que abandona o amante. Mas "Have One On Me" é, também, habitado pelo espírito de um local. O dela: o imaginário natural continua omnipresente, os arcaísmos de linguagem surgem aqui e ali, a sua Califónia natal é referência óbvia em "In California" - "In California, you cross the border of my heart", canta. Não há à vista unicórnios, não há elfos, não há histórias de príncipes ou lendas bretãs. A música continua a ter uma respiração própria, continua a ter assinatura inconfundível, mas aventura-se por terrenos mais reconhecíveis.
Joanna alterna o piano com a harpa, põe violinos a saborear a country, acolhe a bateria como parte integrante de várias canções. Não levita sobre o mundo, integra nele a sua idiossincracia. E por isso, pela primeira vez, iremos ver o seu nome directamente associado a Joni Mitchell ou Cat Power, cantautoras que conseguiram impor uma personalidade musical vincada a um público alargado. De certa forma, há aqui algo de libertador. O facto de ter perdido a voz durante as gravações na cabana no Big Sur - "demasiado fumo de lareira e demasiado whisky", justificou à Time; "demasiado bourbon", confessou ao Wall Street Journal -, e de, depois de dois meses de silêncio e de comunicação via quadro de giz, a ter recuperado mais grave, menos estridente, é uma coincidência interessante.
Correndo em roupa interior
Entre "Milk Eyed Mender", o seu primeiro álbum, e "Have One On Me", este que agora edita, Joanna Newsom lançou "Ys". Com cinco canções e 70 e muitos minutos, foi a confirmação de que havia nela bem mais do que uma tocante excentricidade.
Obra-prima de corpo inteiro, juntava uma linguagem poética densa, traduzida com imaginação torrencial em fábulas e astronomia tornada refrão, a uma ambição musical que, noutras mãos, redundaria muito facilmente em desastre. No caso dela, resultou num maravilhoso labirinto musical que revelava novas dimensões a cada nova audição, resultou num trabalho que levou o mítico Van Dyke Parks, celebrado orquestrador que colaborou, entre outros, com Brian Wilson, a exclamar "nunca tive um desafio tão grande, ou maior alegria na descoberta". Parks foi o orquestrador de "Ys", disco gravado por Steve Albini, herói do "underground" americano (fundador dos Big Black ou dos Shellac, produtor de Nirvana ou PJ Harvey), misturado por Jim O'Rourke e que contou com a participação do músico Bill Callahan, então seu namorado.
Com "Ys", com este contexto, Joanna Newsom passou de alvo de culto a obsessão. Há fãs a estudar minuciosamente todas as letras em busca de sentidos por desvendar, há um livro, "Visions Of Joanna Newsom", de Brad Buchanan (Roan Press, 2010), que compila biografia, análise poética e ensaios (o escritor Dave Eggers, por exemplo, explica porque desejava, à primeira audição, que Newsom não fosse uma mulher bonita). Ainda rodeada por uma aura "fora deste mundo", tornou-se respeitada pelo virtuosismo musical e pela visão artística. Mas, depois deste disco, teve de fugir - seria impossível reproduzir algo tão intenso e meticuloso.
"Ao gravar este disco, senti-me como uma criança a chegar a casa da igreja. Cheguei com o meu vestido de marinheiro, justo e áspero, e com ásperos sapatos de couro. Foi como rasgar tudo e correr para a rua em roupa interior", disse à "Time".
Acompanhando as notícias que sobre ela têm sido produzidas nos últimos tempos, diríamos então que temos assistido ao contrário de "correr para a rua em roupa interior". Tem-se vestido. De mamã coquete, em vaporoso vestido salmão, no último vídeo dos MGMT, o de "Kids". De modelo fotográfico numa campanha recente da Armani. De "hipster" posando anónima em blogue de moda de rua nova-iorquina: encontrem-na em mistermort.typepad.com, numa bizarra "gabardine cobertor" assinada pela marca japonesa Comme Des Garçons. E, apreciando as fotos promocionais do seu novo álbum, descobrimo-la enquanto adorável Lolita (faz sentido, adora Nabokov), sem quaisquer sinais da misteriosa neo-hippie que conhecemos pela primeira vez em 2004.
Joanna Newson, 28 anos, já não é a mesma mulher. Ou talvez nunca tenha sido quem julgávamos que era. Num longo artigo publicado recentemente pela "New York Times Magazine", queixava-se de como, no passado, sempre que a agrupavam com Devendra Banhart, traduziam as excentricidades dele como "conscientes do mundo e 'xamânicas'" e as dela como "infantis e ingénuas": "Senti como se minimizassem a minha inteligência".
Ela que explodiu ao "Wall Street Journal" que "viver numa cidade é como observar formas de vida extraterrestre" passa agora grande parte do tempo em Nova Iorque. É lá que vive o namorado Andy Samberg, comediante do programa "Saturday Night Live", é lá que vê concertos de Dirty Projectors, uma das suas bandas preferidas. Mas ainda vive em Nevada. Comprou ali uma casa e visita os pais todas as semanas. Aparte um computador portátil, não exibe grandes sinais de modernidade. O recheio é adquirido a horas tardias porque sofre de insónias e passa noites a navegar a net em busca de antiguidades - agrupou as que lhe decoram a sala na capa de "Have One On Me". Mas o passado não é uma obsessão. "Não me importaria de [ter vivido] na Paris dos anos 20, ou os anos 70 na Califórnia, mas não conheceria as pessoas que conheço".
Hoje, Joanna Newsom é uma mulher do mundo, este mundo onde, como nunca antes, parecem coexistir vários tempos, várias formas de viver o tempo. Definitivamente, não é um elfo saltitando graciosamente entre unicórnios e pequenos lobos brancos. Preferimo-la assim, carne e vida.