"Cerejeira é muito mais complexo do que parece à primeira"

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O cardeal Cerejeira (segundo à esq.) liderou a Igreja em Portugal durante mais de quatro décadas

A historiadora aventurou-se pela biografia de Manuel Gonçalves Cerejeira e escreveu um livro em que expõe as tensões entre o cardeal e Salazar

A historiadora Irene Pimentel tinha uma "visão caricatural" da figura do cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira. Também por isso, lançou-se ao desafio de escrever a biografia Cardeal Cerejeira - O Príncipe da Igreja (editora Esfera dos Livros), para conhecer e entender melhor a figura do homem que dirigiu o patriarcado de Lisboa e a Igreja Católica em Portugal durante mais de quatro décadas.

No final do trabalho, apresentado ao fim da tarde de ontem em Lisboa pelos historiadores Rita Almeida Carvalho e António Matos Ferreira, a autora admite que Cerejeira não é a figura dos lugares-comuns que sobre ele existem. O cardeal era "conservador, oriundo de família tradicional", sim. E a sua prioridade era defender os interesses institucionais da Igreja e de a manter separada do Estado.

Só que Cerejeira é uma figura "muito mais complexa" do que parece à primeira, diz a historiadora ao P2. E teve divergências importantes com Salazar, embora nunca tivesse rompido com o ditador, de quem era amigo desde os tempos da universidade.

Relação com Salazar

Valha a verdade que não é a primeira vez que Irene Pimentel se aproxima da figura do antigo cardeal-patriarca de Lisboa. É seu o texto da Fotobiografia de Cerejeira, editada pelo Círculo de Leitores, em 2002. "Não sabia nada de história da Igreja, achei que seria um desafio." Sendo historiador, e "rigoroso", Cerejeira captou também, por essa via, a empatia de Pimentel.

Na obra agora publicada, Irene Pimentel segue a mesma opção de há nove anos, não dando importância a aspectos da vida privada de Cerejeira, a não ser quando eles são relevantes: "A importância do cardeal advém da sua dimensão pública." E há outra dificuldade: os arquivos do patriarcado estão a ser tratados e, em parte, por desclassificar.

Mesmo assim, Pimentel conseguiu descobrir ou reinterpretar várias facetas do cardeal. "A perspectiva de Cerejeira e Salazar unidos durante a ditadura já há muito que a tinha perdido", diz. Nesse sentido, o livro tenta "dar mais luz a aspectos contraditórios" entre ambos.

Houve um primeiro episódio de divergência: Cerejeira intercedeu junto do então Presidente Óscar Carmona em favor de um grupo que estaria a preparar um golpe de Estado, em 1930. Salazar, então ministro das Finanças, ficou ressentido por não saber da carta do cardeal em primeira mão e este, conta-se no livro, teve que enviar duas cartas de apaziguamento, lamentando ter magoado o amigo.

A separação consuma-se quando Salazar é escolhido para Presidente do Conselho e vai ao patriarcado apresentar cumprimentos a Cerejeira. Irene Pimentel segue a narrativa de Franco Nogueira: "Salazar manifestou junto de Cerejeira o desejo de "que o Estado e a Igreja" mantivessem "boas relações de colaboração". Após a concordância deste último, Salazar ter-lhe-ia dito, "frio, gelado, grave": "Manuel, a partir deste momento os nossos destinos separam-se completamente.""

Para Cerejeira, a preocupação era recuperar bens e algumas benesses perdidos com a República. O cardeal defendia a política do ralliement, proposta pelo Papa Leão XIII (1878-1903). Segundo esta, a questão do regime (monárquico ou republicano) era secundária, devendo antes os católicos opor-se à legislação que fosse hostil à Igreja.

As divergências acentuam-se em vários episódios: Cerejeira insiste com Salazar para que este aceite uma Concordata com o Vaticano. No final da negociação, escreve a Salazar, dizendo que o Vaticano cedera o que não cedera em mais caso nenhum e que Portugal não dera nada em troca. Salazar responde: "Porque já deu."

De início, Cerejeira protesta contra a criação da Mocidade Portuguesa (MP) e critica os riscos do totalitarismo - argumento que retoma várias vezes - mas defendendo que o Estado Novo não é um regime totalitário. Em 1945, quando alguns católicos se juntam ao Movimento de Unidade Democrática, Salazar espera uma atitude mais firme, que um hesitante Cerejeira adia sempre.

Na década de 50, o comunismo é o inimigo principal de Salazar - e Cerejeira tem a mesma tese, em nome da qual não tolera o envolvimento de católicos e padres na contestação ao regime. Esses anos culminam com a "carta do bispo do Porto" a Salazar, e Cerejeira joga de novo na defesa da ordem. Na década de 60, o cardeal vê aumentar a contestação católica ao regime e enfrenta graves casos no patriarcado - padre Felicidade e Seminário dos Olivais.

Salazar foi mais astuto do que Cerejeira, admite Irene Pimentel, na utilização estratégica que ambos faziam um do outro. O cardeal, que não era "um homem da Igreja moderna", mas no início tinha sido "um homem moderno", viajante e preocupado com a arte, por exemplo, viu-se confrontado com uma realidade em que "o Estado é que mandava". O ditador ganhou sempre.

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