Para o apressado ritmo de vida que o mundo hoje nos impõe, o comentário que aceitei fazer à "História de Portugal" coordenada por Rui Ramos e editada pela Esfera dos Livros aparece já, talvez, um pouco tarde. A obra foi apresentada em Dezembro com grande relevo publicitário, mereceu um rasgado e incondicional elogio do Prof. António Barreto, conseguiu vendas suficientes para suscitar quatro edições e chamou a atenção do público como uma notável novidade editorial. Já não se fala dele; mas isso não quer dizer nada: a importância de um acontecimento não se mede pelo sucesso imediato, mas pela duração das suas repercussões. Creio que esta obra continuará durante muito tempo a ser tomada como obra de referência, não só pela quantidade e pela pertinência das suas informações, mas também pelo papel que atribui à História no plano do pensamento e da cultura. Por isso queria chamar a atenção para algumas das suas características.
Como "oficial do mesmo ofício", e tendo eu próprio dirigido uma "História de Portugal", embora com características muito diferentes, não queria deixar de exprimir a minha opinião sobre esta que, de certa maneira, se pode considerar um contraponto daquela de que sou responsável. Cerca de três quartos foram escritos por dois colaboradores da "História" que dirigi (Rui Ramos e Nuno Monteiro), um dos quais meu aluno, e são conhecidas as minhas ligações intelectuais e pessoais com o terceiro (Bernardo de Vasconcelos e Sousa) também meu aluno e autor de um doutorado dirigido por mim. Tiveram a gentileza de me dedicar a obra, e de recordar a memória de Luís Krus, meu saudoso discípulo e colaborador em vários projectos de investigação. Embora a tivessem concebido e escrito sem qualquer interferência da minha parte (incluindo as páginas relativas à Idade Média, que li, mas não alterei), não posso rejeitar uma certa relação com ela. Sem reivindicar méritos, pois nunca estudei devidamente a nossa história moderna e contemporânea, de que trata a maioria do volume, creio ter encontrado nela aquilo que eu próprio proponho e em que acredito, em termos de concepção da História, de selecção de dados fundamentais, de método de investigação, de crítica e de forma literária.
Para justificar a atenção que o livro merece, é bom recordar algumas coisas de que a imprensa periódica fala pouco. Quero-me referir, antes de mais, à multiplicidade de "Histórias de Portugal" publicadas em Portugal desde o 25 de Abril, e ao sucesso editorial que algumas delas alcançaram. Sem preocupação de distinguir os géneros e as orientações historiográficas, lembremos as sínteses feitas por um só autor, como as de Oliveira Marques (uma em três volumes, 1972-1974, e outra, mais breve, num só volume, 1994), de Hermano Saraiva (também com duas versões, 1978 e 1993), de David Birmingham (1993), de A. do Carmo Reis (1999), de J.-F. Labourdette (2003) e ainda de A. R. Disney, em dois volumes (2009). Acrescentem-se a estas as "Histórias de Portugal" também num só volume, mas com vários colaboradores - José Tengarrinha (2001) e Roberto Carneiro e A. Teodoro de Matos (2001). Depois, as de um só autor mas de grandes dimensões, como a de Veríssimo Serrão, em 17 volumes (1978-2008), as dirigidas por um director ou coordenador com colaboradores especializados - de Hermano Saraiva em seis volumes (1983); de Joel Serrão e Oliveira Marques em 12 volumes, faltando ainda publicar dois (1985-2004); de José Mattoso em oito volumes (1992-1994); e de João Medina em 15 volumes (1993). Mencione-se, por fim, a colecção dos "Reis de Portugal" dirigida por Roberto Carneiro e A. Teodoro de Matos, com os seus 34 volumes, a qual constitui também uma verdadeira história de Portugal até à proclamação da República.
Ora este campo editorial, já tão densamente ocupado, constitui apenas um sector do terreno historiográfico português inundado durante os mesmos anos por uma enorme quantidade de obras de investigação e de divulgação em História publicadas por universidades e academias, institutos, associações, câmaras municipais e editoras comerciais, umas minuciosas e especializadas, outras amplamente abrangentes, quer do ponto de vista temático, quer do ponto de vista cronológico ou espacial. Desde a década de 80 que não há em Portugal nenhum centenário ou comemoração que dispense a edição de obras históricas a justificá-los ou a contribuir para a sua celebração. (Não falemos já das numerosas traduções de livros fundamentais de várias línguas, de romances históricos e de obras teóricas). Podemos fazer uma pequena ideia do que de mais importante se publicou no mesmo período contando as notas da síntese coordenada por Rui Ramos: no texto da sua responsabilidade aparecem nada menos do que 1167 notas remetendo para centenas de obras; os textos dos outros dois colaboradores registam umas 400 notas (o facto de tratarem de períodos mais trabalhados do ponto de vista da síntese dispensou-os de utilizar um aparato bibliográfico tão minucioso como Rui Ramos).
Sem querer aprofundar o assunto, julgo que não é indiferente o facto de toda esta produção surgir num momento de grande viragem da nossa História: em poucos meses Portugal mudava de regime político, perdia as colónias e pedia a integração na Comunidade Europeia. A memória do passado era importante para tomar consciência do que fora vivido colectivamente durante séculos, sem saber bem o que talvez fosse necessário ou dispensável abandonar de si própria e adquirir de novo. As alterações desencadeadas pelo 25 de Abril obrigavam a uma interrogação sobre a identidade nacional. Já não era possível fazer da nossa História uma epopeia heróica cheia de sucessos e de abnegação, nem o relato do cumprimento de um destino providencial. Era preciso responder às acusações de falta de crítica e de ignorância que os adeptos das concepções materialistas ou dos desafios da Nova História lançavam contra a historiografia cultivada nas universidades e academias. Era preciso rever tudo.
O alargamento dos quadros universitários e a necessidade de prestar provas académicas criaram as condições ideais para estimular a investigação e renovar a sua problemática. Os modelos franceses foram aplicados com maior ou menor originalidade, embora a história económica nunca tivesse alcançado grande sucesso; o marxismo "puro e duro" perdeu os seus adeptos. A renovação historiográfica tornou-se evidente a partir de 1985; depois desse ano, alcançou em pouco tempo uma produção verdadeiramente espectacular. Um dos seus efeitos foi o preenchimento dos vazios de conhecimento resultantes do "tabu" salazarista, que lançava sobre os estudos da história económica e social a suspeição de fazer a apologia do materialismo ou da luta de classes, e que excluía da universidade e do liceu a história contemporânea, como uma época de desvario, de atentado às sãs tradições da pátria e de decadência social.
Neste sentido, a obra de Rui Ramos fornece dados para uma resposta clara, fundamentada, muito completa, bem escrita, de boas dimensões para ser lida do princípio ao fim. O cuidado na datação e na geografia dos acontecimentos, na identificação social dos protagonistas, na objectividade possível das informações e na selecção e concatenação dos factos mais importantes deixa para trás qualquer obra congénere anteriormente publicada. Tomando o partido de encarar a nossa História do ponto de vista político, como uma narrativa sequencial com protagonistas individuais ou colectivos bem identificados, com indicação dos factos e dados que condicionaram as decisões e os interesses em causa, a forma como se relacionaram entre si os diversos factores económicos, sociais e culturais, tanto nacionais como internacionais, são os elementos de um itinerário complexo tornado compreensível por mostrar bem o que permaneceu e o que mudou, o que se repetiu e o que veio de novo.
Assim foi possível aos três autores ultrapassar a dicotomia que, desde o tempo de Herculano, opunha a história patriótica e apologética do poder à história liberal e republicana que pretendia desmascarar os responsáveis pelos obstáculos ao progresso e a decadência nacional. Verificados os factos com objectividade, torna-se evidente que se trata de juízos sumários, anacrónicos ou sem fundamento, que as responsabilidades pelos eventuais erros se diluem, que muitos factos adquirem um sentido diferente do que lhes foi dado, e que a lógica do encadeamento factual dificilmente poderia ter sido diferente. Parece-me muito salutar ter reduzido tais polémicas a um juízo isento de preconceitos ideológicos. O carácter irreverente de Rui Ramos vem, por vezes, à tona em alguns dos seus comentários, o que talvez lhe traga a má vontade de alguns leitores. Creio, porém, que não será fácil contestar a vastidão das suas informações e a pertinência das suas interpretações. Temos de agradecer o cuidado com que ele e os seus colaboradores libertaram a História das deformações impostas por razões ideológicas.
De um ponto de vista historiográfico, queria sublinhar três novidades importantes, até agora ausentes das sínteses anteriores: a incidência da diferença regional sobre o decurso dos acontecimentos nacionais; a inserção da história portuguesa na história europeia e, sempre que foi possível, isto é quando existem informações fiáveis, a utilização de dados quantitativos globais, como os dados demográficos, o valor das importações e exportações, o PIB, e outros indicadores objectivos. Creio ser a primeira vez que estes factores fundamentais são tomados em linha de conta de forma tão sistemática, como base da compreensão e explicação dos fenómenos peculiares da nossa História. Tendo eu próprio feito do primeiro destes critérios a base da interpretação das origens de Portugal, sempre me pareceu que as estruturas regionais se mantiveram desde então até hoje, e que, por isso, se devia encontrar nelas a explicação (ou uma das explicações) de muitos outros fenómenos fundamentais do nosso passado. Também sempre sonhei com uma História de Portugal em que se explicasse por que razão a diversidade regional nunca evoluiu no sentido de se tornar a base de uma estrutura de poder intermediária entre o centro e a periferia (concretamente entre o poder central e os municípios e senhorios). Rui Ramos e Nuno Monteiro mostraram com clareza que a consolidação da diversidade regional verificada já desde o princípio da Idade Média obrigava a uma partilha do poder central, ou seja ao seu enfraquecimento; o monarca neutralizou-a favorecendo a pulverização do poder local, ou seja a multiplicação dos municípios e dos senhorios. Como diz Rui Ramos, a concentração do poder político e económico em Lisboa vai até ao ponto de a tornar uma espécie de cidade-estado. Como é evidente, a macrocefalia de Lisboa sempre teve variadíssimas consequências na distribuição social dos agentes do Estado, na estrutura e evolução da nobreza, na distribuição dos papeis que os homens políticos e os detentores do poder económico foram tendo e na maneira como jogaram em cada grande viragem histórica.
Uma obra perfeita? Quase. Para o ser, precisava, na minha opinião pelo menos, de explicar melhor, e de forma convincente, o papel que a Igreja desempenhou na nossa História. Apesar de a mencionarem frequentemente, não me parece que os autores a tenham compreendido devidamente. A verdade, porém, é que este sector da nossa História não dispõe ainda de estudos essenciais. Dos anos 80 até hoje, apareceram muitas monografias de mosteiros, e algumas obras sobre ordens religiosas e dioceses; vieram alargar um pouco os dados recolhidos com um espírito positivista e apologético por Fortunato de Almeida e por três ou quatro autores do mesmo género que se ocuparam de dioceses e de uma ordem (os Jesuítas), mas o espírito que os informa pouco difere do que, a respeito da Igreja, existia antes do 25 de Abril. Só há pouco tempo começaram a surgir investigações baseadas numa efectiva compreensão da função histórica da Igreja antes da Revolução Francesa.
Com efeito, as alterações trazidas com as novas concepções do Estado e da propriedade levaram os historiadores do século XIX, incluindo os próprios membros da Igreja, a ignorar a verdadeira natureza dos fenómenos religiosos do Antigo Regime. Em Portugal essa incompreensão foi ainda mais deturpante do que noutros países do Ocidente. É preciso rever o que Herculano, Oliveira Martins e o próprio Fortunato de Almeida dizem acerca de fenómenos tão importantes como as lutas entre os reis e o clero no século XIII, a acção das ordens religiosas, as alterações da piedade e da espiritualidade no século XV, etc, etc. Ora a acção da Igreja é de tal modo importante (e de tal modo diferente do que a religião representa no mundo actual) que a ignorância do seu papel constitui uma lacuna efectiva numa síntese que pretende definir e explicar o essencial. É verdade que existe já uma "História da Igreja" em Portugal e um "Dicionário de História da Igreja" em vários volumes. Trata-se de uma obra desigual, com alguns artigos excelentes, mas, no conjunto, imatura, incompleta, e que ignora frequentemente o essencial. Neste capítulo há ainda muito a investigar. Esperemos que a pujança da historiografia portuguesa se estenda também aos fenómenos religiosos de forma que, numa futura revisão, a síntese de Rui Ramos e dos seus colaboradores se torne ainda mais completa e inovadora.