É uma história contada pelo próprio numa entrevista à revista "Cahiers du Cinema" e relativamente conhecida dos cinéfilos: em Londres, para onde tinha viajado com um bolsa para estudar na London Film School of Film Technique, João César Monteiro esqueceu as aulas para ver todos os dias "A Batalha de San Romano", de Paolo Ucello, na National Gallery. Não se trata de uma mera curiosidade na biografia do cineasta, antes um sintoma de um afecto pela pintura, sobretudo a renascentista, que pode ser olhado em "À Flor do Mar" (1986) - para o qual desejava cores próximas das de Piero della Francecsa - ou nalguns dos planos de "Veredas" (1978), pinturas enquadradas de Giotto ou Brughel. Dito isto, a relação do cinema de João César Monteiro com as artes plásticas podia ficar por aqui, mas não se lhe reduz. Há um universo do autor de "Recordações da Casa Amarela" (1989), e neste, uma forma de fazer, que prolonga tal relação. É isso que "João César Monteiro, assim e não assado", com a curadoria de Ana Matos, Emanuel Cameira e Felipa Paes de Vasconcellos, e obras de Ana Jotta, Ramiro Guerreiro, Rita Magalhães, Francisco Vidal e Pedro Gomes, vem reconhecer. O tamanho de uma obra passível de ser lida pela prática de um conjunto de artistas; como inspiração, mote para.
O processo e a riqueza plástica
O projecto surgiu no âmbito de um mestrado em curadoria de belas artes da Fundação Calouste Gulbenkian e não tem subjacente uma homenagem. "Trata-se apenas de uma exposição de arte contemporânea a partir de um cinema de natureza transdisciplinar, bastante complexo e cheio de várias camadas e níveis de leitura", nota Ana Matos. Um cinema onde não faltam outros reptos (mais directos) que Emanuel Cameira reconhece, com humor: "À medida que fomos vendo os filmes, havia certas passagens que quase nos obrigavam a fazer uma exposição. Lembro-me na "A Comédia de Deus" (1995), do João [de Deus] dizer 'Não sois vós que me expulsam, eu é que vos condeno a ficar'. E no fim de 'Recordações da Casa Amarela', da frase do Lívio, 'Vai e dá-lhes trabalho'".
O reencontro com a obra cinematográfica precedeu a escolha dos nomes. Procuraram-se ligações, afinidades entre cenas e ideias, entre elementos e universos e, em seguida, foi investigado o corpus do trabalho de cada artista. O curador enuncia os outros critérios: "artistas que trabalhassem vários suportes, com uma atenção não apenas à história de arte, mas também ao quotidiano e ao popular; que tratassem essas dimensões e as tensões por elas criadas". A maioria conhecia sobretudo o João César Monteiro "revelado" depois de "Recordações da Casa Amarela", sendo que Ana Jotta colaborou com o cineasta em "Silvestre" (1981) - já agora: João Vieira, Menez e Mariana Viegas foram os outros artistas que trabalharam/colaboraram com Monteiro.
O Convento dos Cardaes que João Vuvu visitava em "Vai e Vem" (2003) é o espaço expositivo. "Contém vários elementos morfológicos que nos lembraram uma série de passagens dos seus filmes: as escadas, a luz natural, o facto de estar dentro da cidade, de fazer parte de seu percurso habitual. Não fazia sentido fazer a exposição num lugar museológico". Aos artistas foi pedido, entretanto, que criassem, sublinha Ana Matos, "relações epidérmicas com o lugar, tal como ele fazia". Ora é porventura esse fazer que (mais) os aproxima do cineasta. Diz-nos Felipa Paes de Vasconcellos. "Aquilo que está por trás dos filmes, a captação da luz, a vontade de compor uma imagem. O seu processo [de trabalho] é talvez o que melhor se espelha nas artes plásticas, não o resultado final". Mas não só, acode o elemento masculino do trio de curadores: "O cinema do César Monteiro tem uma forte riqueza plástica, um grande cuidado estético na apresentação dos objectos, na realização dos planos. Visitámos a sua biblioteca e encontramos livros sobre o Piero de La Francesa, o Masaccio e outros pintores do Renascimento. Há uma herança clássica que é muito forte".
Passeios delirantes e a ausência da imagem
Cada artista lidou livremente a universo de Monteiro. Houve quem explorasse a presença da palavra ou documentasse um percurso no espaço. Ou, partindo de um ou dois filmes, preferisse abordar questões como ausência e o aparecimento da imagem. O trabalho de Pedro Gomes, "Rua 31 de Janeiro", consiste numa série de fotografias de pessoas falecidas que, por vezes, se sobrepõem lentamente, criando retratos grotescos, surreais. Foram encontradas no arquivo de uma loja que fazia esmaltes para campas e algumas remontam aos anos 30 do século passado. Anónimas, constroem tipos e personagens sociais não muito distantes dos que povoam a obras do cineasta: "Há no seu cinema um lado surrealista e burlesco de que gosto muito e interessou-me explorar a relação com a morte e a religião, em particular neste lugar, que ele conhecia". A técnica convocada não é inocente: "É bastante 'low-tech" e remete para o cinema mais básico, para o grau 1 da animação: é um 'travelling'".
Para Ramiro Guerreiro, a obra de João César Monteiro parece usufruir de "uma liberdade total", já para não falar de "todas as qualidades líricas, ou nas várias camadas de pensamento usadas por ele, desde uma erudição muito profunda e consciente de si mesma à 'sabedoria popular'". O artista produziu duas obras para a exposição: "Éloge", uma projecção de slides, e uma série de desenhos com fotografias de hospitais psiquiátricos. O primeiro regista um percurso do Bairro Alto pontuado por acções que remetem para certos filmes ("Comédia de Deus", "Vai e Vem") e para uma vivência da cidade e dos seus espaços. "Um espécie de 'passeio delirante'", sugere Ramiro Guerreiro com referências ao "Elogio da Loucura", de Erasmo de Roterdão, no título e nas frases que finalizam a projecção. A pesquisa em torno da ideia de delírio (como resistência do corpo e do sujeito ao autoritarismo dos lugares) prossegue, depois, nos desenhos e nas fotografias: "O João César Monteiro filmou o pátio do pavilhão panóptico do Hospital Miguel Bombarda e pareceu-me interessante trabalhar à volta dos espaços exteriores fechados [os pátios], de três unidades de internamento psiquiátrico. As fotografias são das fachadas exteriores dos edifícios, documentam a parte visível a todos, e os desenhos das plantas dos edifícios - onde cada pátio está pintado muito mais intensamente que o espaço exterior".
Francisco Vidal e deixou-se influenciar por "Branca de Neve" (2000) e "À Flor do Mar". A partir do filme realizado em 2000, interroga a ausência e a presença da imagem com o desenho digital, no qual o "gesto" é dominado pelo dígito; não se vê. O resultado (a manifestação da imagem) é uma construção visual sobre papel cheia de referências à história de arte e à cultura de massas (desporto, música, televisão). Já a outra peça, próxima da apropriação, cita de forma explícita "À Flor do Mar". Trata-se de um slide show de desenhos digitais onde se articulam questões de composição e representação: a pintura (Francisco Vidal é pintor) e a identidade social das personagens.
Território vizinho da arte
"Vai e Vem" serviu de princípio a Rita Magalhães. Na sala do poço do convento colocou três fotografias em caixas de luz circulares, nas quais reconhecemos momentos e cenas do último filme do cineasta. O percurso, por exemplo, que João Vuvu fazia entre a Praça das Flores e o Príncipe Real. Ou apenas, aquilo que o seu olho (o seu olhar) destituído de corpo, vê: a relação entre o sujeito e objecto, o real e a ficção.
A obra que melhor conversa com Monteiro é, porém, de Ana Jotta. A artista forrou o interior do confessionário com tecido e som e criou um ambiente, uma escultura de som atravessada pela presença inquietante (e cómica) da palavra.
Resta no entanto, teimosa, no fim de "João César Monteiro, assim e não assado", a pergunta: o que aproxima o cinema deste autor da arte contemporânea? O curador Nuno Faria que, em 2008, no âmbito da exposição "Articulações", em Loulé e Faro, incluiu dois filmes do realizador num ciclo de cinema paralelo, aventa uma resposta: "Certa afinidade com a contingência, a forma como se pensa permanentemente enquanto autor, o facto de se colocar em desequilíbrio enquanto actor, de cultivar os jogos de palavras à maneira duchampiana. Esse lado programático de trabalhar a obra enquanto um todo, enquanto mapa de um vasto território a ir descobrindo e de que só ele tinha a chave, coloca o seu trabalho numa plataforma vizinha do discurso da arte contemporânea. 'Não são vocês que me expulsam, sou eu que vos condeno a ficar', diz esse plano. Palavra de João de Deus".