E Nuno Ramos criou o mundo

Foto
Nuno Ramos Enric Vives-Rubio/PÚBLICO

"Ó" é uma cosmogonia de 220 páginas.

Em Novembro, chegou aos finalistas do Prémio PT (e venceu) como uma espécie de estrangeiro.

Porque o autor, Nuno Ramos, é conhecido como artista plástico e desconhecido como escritor (os seus livros anteriores apareceram nas margens do mercado, com tiragens pequenas). Mas também, ou sobretudo, porque "Ó" não se parece com nada. Julgamos reconhecer aqui Kafka e ali Proust (e Bataille, Lispector, "Gilgamesh" ou Herberto?).

Mas na passagem seguinte já não sabemos onde estamos.

Poucos títulos serão tão perfeitos. "Ó" é um big bang, o tempo circular em que tudo coexiste, a infância da terra e a memória de um homem, a violência de uma jaula e a epifania da mão que toca o corpo adormecido a seu lado.

"Com as mãos devolvo ao mundo o meu próprio tamanho", diz o homem de "Ó". É um homem subversivo, que defende a imobilidade e vê como a sentença pode ser outra forma de crime.

Um homem sem deus, que a partir de uma linguagem tão misteriosa como exacta cria o mundo: pele, pêlos, pistilos, fluidos, pedras, asas, cinzas.

Não é um romance, mas tem uma espécie de protagonista do começo ao fim. Não é um livro de contos, mas está dividido em capítulos que se podem ler separados. O autor diz que é algo entre poesia e pensamento.

Paulista, 49 anos, Nuno Ramos é filho de uma brasileira e de um português exilado, que morreu quando ele tinha 14 anos.

A palavra "exílio" é recorrente neste livro, e no capítulo 16 diz: "Há para todo o filho a sombra projectada de um pai morto." Qual é a história do seu pai português?

Estar aqui é de algum modo viver esse fantasma. Começando pelo fim, o meu pai morreu uma semana depois do 25 de Abril.

Dia do aniversário dele.

É. E ele morreu um pouco de alegria, acho. Era uma pessoa muito contida, e estava eufórico com o 25 de Abril. A casa ficou muito cheia de gente nessa semana, não paravam de entrar aqueles portugueses exilados, um clima eufórico. Foi uma morte muito traumática para nós, porque ele estava bem. Teve um AVC no banho e morreu.

Puf. Era uma pessoa muito ligada à literatura.

Dava aula de literatura francesa, porque não conseguiu entrar na cadeira de literatura portuguesa. Exilado de Portugal no sentido mais profundo, subjectivamente também.

Era de onde?

De uma aldeia perto da Covilhã, e veio para Lisboa novinho.

E era do partido comunista.

Foi sempre.

Exilou-se quando?

Foi em 1951-52 para França, onde deve ter vivido três, quatro anos. Trabalhou no "L'Express", conheceu a minha mãe lá, namoraram por carta, e ele foi para o Brasil em 1956-57.

A sua mãe é brasileira.

Filha de pessoas ligadas ao partido comunista. Minha avó era muito comunista.

O meu avô chegou a ser candidato a deputado pelo PC.

Em que atmosfera cresceu?

Era o tempo da ditadura, e a ditadura emburrece tudo. Quando me dei por gente já achava tudo muito burro, as opções, as discussões. Minha mãe falava para mim: "Toda geração tem seu reaccionário, você é o da sua." O meu pai, quando estava de bom humor e resolvia falar, subia o nível. Era um comunista que achava os males do comunismo menores do que os do capitalismo. Minha avó não, era sectária, doente, punha a bengala assim: "Não fale mal de Estaline!"

Era isso que o aborrecia, essa ortodoxia?

É, nunca levei isso muito a sério. A ditadura no Brasil foi muito feia dos meus oito aos 14. Quando fiquei um pouco mais velho foi uma distensão, os presos políticos já não estavam apanhando.

Mas os presos comuns apanham até hoje. O Brasil tem uma violência social ímpar no mundo.

Agora, eu convivi pouco com meu pai.

Falavam de livros?

Muito. Meu pai queria ser escritor e não foi. Tentou escrever e acabou sendo um crítico. Ele me mimava muito, botava muita pilha, tudo o que eu fazia ele gostava. Por exemplo, qaundo eu tinha uns 12 anos e saiu o "Cem Anos de Solidão", ele estava com uns colegas de faculdade, todo o mundo elogiando, e eu, aquele pirralha, falei mal do livro.

E me lembro que ele babava de orgulho.

Acho que fui muito criado para ser alguém com opinião forte. E tentei muito ser escritor na adolescência, ainda mais depois de ele morrer. Escrevi loucamente dos 12 aos 20 anos, todo o dia.

Detestava aula de artes plásticas na escola.

Até hoje não sei desenhar, não tenho habilidade nenhuma. E escrever, escrevia muito, em vários géneros, poema, ensaio, romance. Lia bastante.

Era uma coisa muito carregada pela morte do meu pai. Mas não me sentia chamado [pela escrita]. Acho que virei artista plástico numa crise total com a literatura.

Escrevia e depois não gostava?

Isso. Eu dormia na biblioteca do meu pai, que era um quarto fora de casa, então dava para levar a menina. Era a biblioteca paterna, kafkiana, e um lugar de maior facilidade erótica. E eu tinha uma [máquina de escrever] Olimpus. Escrevia, relia. No dia seguinte acordava e achava aquilo ruim.

Uma coisa meio de Sísifo. Ainda tentei canção, mas foi um desastre. A coisa com as artes plásticas foi um pouco por acaso, ganhei umas tintas numa época em que estava tentando aliviar o meu juízo.

Já estava a estudar filosofia?

Acabando, talvez. Estudar filosofia foi entender que eu não era um intelectual, no sentido de um comentador.

Eu tinha colegas muito mais brilhantes, os caras liam melhor, entendiam melhor, sabiam alemão. Pode ter doído, entender esse limite, mas não doeu tanto, porque o que eu queria era ser artista.

Só não tinha certeza do meio, ainda?

A coisa da literatura não estava rolando.

O fantasma de qualquer artista não é a arte ruim, é a esterilidade.

Arte ruim é algo que você faz antes de dominar, algo a que vai chegar dentro de dois anos. Trabalho estéril é triste.

É parecido com brochar, sexualmente: não tem, não vem, não houve. Eu estava-me sentindo assim, estéril.

Artes plásticas, comecei com ninguém.

Não sabia porra nenhuma. Não tinha pessoa próxima que tivesse qualquer capacitação nessa área. Eu fazia trabalhos horríveis, mas fazia dez por dia. Me animei assim loucamente, e nunca mais parei. Lembrome de pegar aquele papel, derrubar a água, cair a tinta, e era uma coisa fora de mim. Era corpo.

Precisou de ir para fora para voltar para dentro? De agarrar a matéria para ficar sem matéria?

Tem alguma coisa dessa minha experiência com a matéria que nunca mais saiu. Eu tenho um impulso retórico forte, uma crença na linguagem meio religiosa. Enquanto isso não ganhou um corpo, eu não sabia do que estava falando. No fundo era isso: escrevia e não sabia do que estava falando. Até hoje, o meu medo é não saber do que estou falando.

No "Ó" diz que trocaria toda a matéria por um nome. Como se fosse capaz de dar a arte por um bom livro.

É. Talvez. Não sei, não.

Agora que tem... quantos anos como artista?

25, 30.

Vê estas duas coisas como alternativas, co-existentes ou inimigas?

São coexistentes, embora a ideia de heteronimia me fascine desde pequeno.

Há dez anos fiz uma retrospectiva no Rio, obras da vida toda, com um curador de Bordéus. E no final ele perguntou: "Quem é o outro artista?" Eu disse: "Como assim? Sou eu." Sempre tive uma certa dúvida se isso era uma potência ou um defeito. Procuro muito habitar vozes diferentes, separar, não deixar a amálgama ganhar.

Agora, eu sei que não tenho um projecto intelectual que justifique vozes, num sentido pessoano. O meu esforço é não deixar juntar. Quando escrevo, escrevo.

Está a falar de períodos?

Não, de partes do dia.

Este livro foi trabalhado ao longo de seis anos.

Mas juntamente com outro que sai agora, e mais um que sai no final do ano. Eu escrevo bastante de manhã e ao fim-de-semana. À noite, nunca. De manhã gosto do que faço, à noite não.

E tenho de desligar o telefone, por que minha vida são as artes plásticas, e chovem coisas. Então, desligo, e tem umas duas horas de manhã em que dá para escrever. Depois eu vou para o atelier e o mundo cai.

É um programa diário?

É. Quando estou muito envolvido, especialmente para o lado do poema, acontece em horas improváveis. Escrevo muito tomado. Quando vou para o atelier, não escrevo, não dá. A vida de artista plástico é muito prática.

Você bola uma coisa, tem que ver a fundição, se o cara está conseguindo, a galeria não sei quanto, o cara não sei onde. É uma confusão.

Há esse lado para fora e de negociação, de espectáculo mesmo, nas artes plásticas.

E o movimento da escrita é aparentemente contrário.

Artes plásticas, é o seguinte: a matéria cai. Agora vou fazer duas esferas enormes de areia socada no Museu de Arte Moderna do Rio. Tecnicamente é um cu. A gente está estudando, tem uma negociação que é um pouco da ordem da arquitectura.

Isso não é chato?

Não, é altamente inspirador. Eu adoro.

Porquê?

Quando cai, você percebe. A matéria não está bem compactada. Tem sempre esse desafio, tentativa e erro. Por exemplo, fui mexer com sabão. A primeira vez, a gente quase morreu, quatro toneladas, a gente fabricando aquilo. Artes plásticas tem esse lado.

É matéria, físico. Eu gosto de mais.

Você descobre muita coisa quando sai errado. Nunca delego, tenho de estar lá. Mas é uma negociação. A literatura é uma coisa minha. Estou lá sozinho, tentando entrar em contacto com alguma coisa.

E há o momento no seu percurso de artista em que regressa à escrita.

Eu tive um desenxabimento, uma desinibição quando virei artista plástico, inclusive no sentido de topar fazer coisa ruim. Não tinha muito claro o que era bom e o que era ruim.

Quando voltei a escrever, já estava no meu trilho, que é o "Cujo" [livro de estreia]. E o "Cujo" começa um pouco como uma prosa de atelier, eu descrevendo experiências. Tinha 28 anos, algo assim. São aforismos, fragmentos.

No "Inferno" do Strindberg, que eu li depois, tem algo assim, uma alquimia com a matéria. Logo saltou disso para uma certa autonomia poética.

O "Ó" é um "Cujo" expandido.

Vem de lá esse tom de falsos ensaios, mal intelectualizado. O "Pão do Corvo" [segundo livro] já é mais uma narrativa, como vai ser esse novo, "O Mau Vidraceiro", que vem de um conto dos pequenos poemas em prosa do Baudelaire.

São várias narrativas?

Muitas, 70. Também tem uns pensamentos que não são bem narrativas.

O "Ó" é difícil de encaixar.
Descreveu-o como algo entre poesia e pensamento. Pode ser visto também como partes de uma biografia. Mas se pensar na sua família, penso na "Paixão Segundo GH", de Clarice Lispector, mas também nas cosmogonias do princípio da linguagem, no "Gilgamesh".

É. E [Giambattista] Vico, um pouco.

Este homem, este gigante, este corpo em expansão, pode ser visto como a sua criação do mundo. Faz sentido?

Faz. Gosto de mais de cosmogonias, até fujo um pouco delas. No "Cujo" tem muito esse tema.

Todo esse clima do que era antes dos homens e do que era antes da linguagem, toda a evocação das matérias, das pedras, dos animais. Mas depois, também, o mundo da lei, da forma como os homens se organizam. Uma recosmogonia.

Uma escatalogia, quase. E onde ponho isso tudo? Estou escrevendo sobre temas enormes, sobre os quais pessoas enormes escreveram. A minha confusão adolescente era um pouco isso. Essa cosmogonia, ou o que seja, são os textos de que gosto mais. Falo que é poesia porque sinto que mando nas palavras. Quer dizer, não estou-me deixando usar pelas palavras para veicular uma narrativa.

Acho que é a minha voz mais original, onde aparecem as coisas mais surpreendentes, que acho mais bonitas. Mas quando estava fazendo o "Ó", pensei: "Cara, eu preciso parar com isso, não vou fazer um livro de mil páginas."

Podia ter mil páginas.

Podia. Mas quis comprimir, voltar àquele homem no fim para dar uma unidade ao livro.

Quando narro, sinto uma linguagem mais impura, como se ela me estivesse dominando, e não eu a ela. Em troca, viajo numa coisa chamada narrativa, fica legal, eu me deixo ir. Mas [nos textos não-narrativos], me sinto mais autoral. É uma voz mais próxima do poema.

Em "Ó" escreve sobre a simultaneidade que cria um presente infindável (por exemplo, enquanto falamos, cem chineses escrevem a palavra improvável, etc, et). E diz que há duas armas contra isso: memória e epifania. Começando pela memória, cita sempre Proust como um autor fundamental para si. Aqui estamos, em 2010, e aqui está Proust. Porque é que continua a ser tão importante?

O que posso dizer com segurança é que acho a coisa mais bonita que já li. O que procuro no meio da minha tralha é uma espécie de conexão infindável, em que tudo conecta como se a linguagem fosse vegetal, fosse jogando pistilos que vão fecundando em outros, aquela teia de relação que não permite que a frase feche, aqueles parágrafos que vão-se somando. E você começou naquele vestido da Madame Verdurin e termina numa falésia da Normandia, e não sabe como passou do reino social para o reino da natureza. Acho que essa conexão infindável é o reino da arte. A arte não explica, ela é presença. E essa presença no Proust é muito dilatada.

Cria a realidade.

Cria. Nada causa nada. A linguagem vai por analogia. Proust é analogia pura, tudo é análogo. Então, isso para mim é uma espécie de vingança contra a asma dele, aquela falta de fôlego.

Em "O Pão do Corvo" há uma secura, enquanto "Ó" é caudaloso, muito mais essa coisa proustiana. Ou seja, caminha da secura para o caudaloso.

Isso. "O Pão do Corvo" vem de uma influência grande do Beckett, que é o anti-Proust, tudo é contenção, a frase curta. Eu precisei disso, mas acho que o meu elemento tem essa conectividade infindável. Os meus quadrosrelevos, de que gosto bastante, têm essa conectividade infindável. Vou juntando, juntando, vai passando pela cor, vai indo. De novo, a pergunta é: quem é o outro artista? Onde é que juntam? Onde é que "O Pão do Corvo" junta com o "Ó"?

Mas por que tem de juntar?

Porque talvez seja mais rico. O Pessoa junta. O controle intelectual [dos heterónimos] é dele.

Sobre a epifania, tem esta frase no "Ó": "Maravilha, exerce tua navalha, degola o dia antes que eu me conforme." E liga-a ao erotismo. A linguagem escava a memória, e depois a epifania é o momento em que as coisas se ligam todas? É o contínuo. É o que Bataille fala do erótico. O momento em que a vida fica contínua, em que a descontinuidade radical de tudo vai embora.

Acho uma ideia muito bonita. No erotismo você passa de uma coisa para outra sem obstáculos. No "Ensaio Geral" [livro que reúne ensaios, guiões, projectos] fiz um texto, uma espécie de teoria do futebol, em que usei essa ideia. O golo é o momento descontínuo e a jogada é o momento contínuo, erótico. Então, quem gosta de futebol é lógico que torce pelo golo, mas o tesão mesmo é a jogada. O golo instaura a descontinuidade radical, fica cravado, o "placard" final é quase uma lápide. Não há nenhum outro jogo no mundo em que haja uma separação tão grande entre "placard" e jogo. O "placard" nunca conta o jogo.

Acho que o futebol, que é das coisas que mais amo na vida, tem essa ambiguidade. Um time perde 20 golos, e o outro faz um golozinho besta.

Tem uma tragédia [nisto]. Não há como conciliar essas duas forças.

Acho que é por isso que o futebol não entra nos Estados Unidos. Eles precisam quantificar tudo, e o futebol é falha, o jogo é mais do que consegue quantificar.

Nas minhas coisas de que gosto mais esse aspecto desimpedido está mais intenso, quando o texto pega uma continuidade em que me surpreendo.

Ao mesmo tempo, tenho de criar uma certa reacção, porque essa força vai ficando muito abstracta. Então, às vezes eu crio uma tralha, que é uma espécie de "placard", para tentar ser coerente com esses dois impulsos.

Como se o texto fosse uma matéria que tem que domar.

É. Domar, lutar, conter. Escrevo muito por impulsos e preciso de dar um jeito nisso.

No começo do "Ó", quando fala do aparecimento da linguagem, fala nos homens mudos com nostalgia, aqueles que podiam continuar de cabeça erguida, como se a linguagem fosse uma capitulação, a nossa fraqueza.

É isso mesmo. Os coitados que tentaram resistir acabaram sendo massacrados pelos falantes que capitularam e deram nome às coisas.

Tem uma admiração por esse tempo sem linguagem.

É o meu outro, porque tudo em mim é linguagem. Eu falo para cacete! É o que faz o milagre do pôr-do-sol não ser de um, mas de vários. A linguagem comunica.

Aos 49 anos, diz que está a começar. Isso é de um grande optimismo.

A frase que me vem, andando sozinho, é: "Eu ainda não comecei. Eu preciso começar a fazer qaulquer coisa. Quando é que vou começar, caramba?" Sinto essa coisa para a frente.

É uma coisa jovem, de acreditar.

Isso. Kierkegaard diz que trocaria tudo, todo o dinheiro, todas as mulheres, pelo sentimento do possível, uma frase que eu adoro. A arte é isso, o sentimento do possível. Porque a vida vai calcificando, vai ficando totalmente dominada. Ecologia, feminismo, minorias étnicas e sexuais, vai ficando um discurso de consenso.

O que há a fazer? Contrariar?

Mas não directamente, porque é ridículo.

A arte pode vir disso, mas não pode ser a reprodução desse discurso, tem que ter uma alteridade. O artista ficou muito dócil. Hoje, o perigo é a arte coincidir com o que lhe pedem.

Haver uma empatia tão grande que fique todo o mundo de mão dada.

Qualquer arte não coincide com a história.

Tem um pé na história, mas tem um pé no signo. Hoje, é muito coincidente, muito ligada ao presente.

Você vê uma capela do Giotto. Aquilo é sobre franciscanismo? É. É sobre cristanismo? É. Mas eu não sou franciscano nem cristão e aquilo foi pintado para mim, hoje.

O risco da arte, hoje, é que se torne rapidamente irrelevante?

Que seja um momento de outra coisa que não ela.

Qual é o lugar de deus na sua cosmogonia? Não está lá, ou está?

Acho que não.

Este seu homem está sozinho.

Eu acho. Gostei dessa ideia do gigante que fosse tudo. Queria muito fazer algo que é o boneco de piche [betume], em que tudo gruda, que vai ficando uma bola. No próximo livro há várias coisas sobre o boneco de piche.

Ele vai perdendo forma, e a resistência é para dar forma de novo. Talvez em menino eu fosse só um boneco de piche, não conseguia isolar nada. Me sinto atraído por tudo, meu trabalho tem muita influência. Muita coisa entra nele.

No "Ensaio Geral" tem guiões de filmes, de teatro.

Tenho usado muito teatro nas artes plásticas, vozes diferentes. Vou sendo atraído e isso é um pouco monstruoso. Onde é que estou?

É o Ó.

É.

O bom do Ó é que cabe lá tudo.

É um círculo.

Que leu de literatura portuguesa recente?

Precisava ler mais, tenho a maior vergonha.

Gostei do Gonçalo [M. Tavares, um dos finalistas do Prémio PT vencidos por Nuno Ramos]. Li dois, "Aprender a Rezar na Era da Técnica" e "Jerusalém".

Dos portugueses finalistas [os outros eram Lobo Antunes, Inês Pedrosa e José Luís Peixoto] será o que tem mais relação consigo.

É um cara sem alívio imaginativo, que é uma coisa de português, não tem imaginação, fica dando volta, as personagens não decolam. É um Kafka misturado com "Livro do Desassossego".

É português para cacete. Tudo pequenado, não voa. E esse enclausuramento é que acho bonito.

Leu Herberto Helder?

Li, gostei muito.

O "Ó" lembra, por vezes.

Sabe porquê? É porque tem o Drummond.

E o Drummond é Deus. Aí é foda. Aí o Herberto entra como um momento do fôlego drummondiano.

Li só "Ou o Poema Contínuo", gostei de mais. Me identifiquei muito.

Lobo Antunes?

Li dois do começo, "Os Cus de Judas", e "Memória de Elefante". Achei bom.

Tem uma raiva boa. Talvez uma dificuldade em transformar a raiva em amor. Precisa gostar muito do mundo para odiar tanto. Mas tem uma voz ali, não é? Talvez só tenha uma. Esse é o grilo. O legal do Dostoiévski é que aquele negócio vira 300 pontos de vista.

E brasileiros? Nos últimos 15 anos?

[Pausa] Ninguém. Que eu tenha amado, como gosto da Clarice? Ninguém.

Sugerir correcção
Comentar