Rohmer, nosso aliado
Um obituário de Eric Rohmer (1920-2010) descrevia-o como "aliado dos jovens". É uma bela definição. Rohmer nunca foi exactamente jovem, era demasiado comedido para entusiasmos juvenis, mas manteve até ao fim uma empenhada aliança com a juventude. Os seus textos críticos estão reunidos num volume chamado O Gosto da Beleza, e a juventude é, desde logo, esse gosto. A juventude, tal como as férias, foi um tema caro a Rohmer porque significava abertura a todas as possibilidades. Em cada Rohmer vemos o mesmo jogo reiniciado, a mesma coreografia libidinal e culta, a mesma utopia da beleza, a mesma tentativa de adequar o mundo a uma ideia que temos do mundo.
Filmes palavrosos, disse-se, demasiado palavrosos. Isso é não entender a palavra em Rohmer. É verdade que o seu cinema é literário, ele mesmo o definiu como "adaptações de romances que não escrevi"; mas o literário é apenas uma patine. Tal como a beleza epidérmica e perecível da juventude, a palavra rohmeriana, elegante e clássica como a grande prosa francesa, é um ecrã que esconde e que projecta. Visualmente, os filmes de Rohmer são em geral discretos, preocupados sobretudo com um efeito fotográfico do real, com a geometria do espaço e o cuidado do enquadramento. As palavras surgem então como auto-retratos daqueles protagonistas fingidos, como álibi das suas verdadeiras intenções, como fantasiosas representações.
Percebemos por que é que Rohmer disse que os seus filmes não são sobre acontecimentos mas sobre a narração que os protagonistas fazem desses acontecimentos. A personagem rohmeriana aparece armada de certezas inexpugnáveis. E suspeitamos logo que aquilo é uma fachada, que essas elaboradas discussões são um engano deliberado. Juntamente com a multiplicação de pontos de vista, a multiplicação de teorias e de códigos permite que o enfático seja transformado em lúdico. Os filmes de Rohmer são "contos" na medida em que partem de um mote e ensaiam variações musicais. E são "morais", embora admitam que a moral se decide ao longo da narrativa. Aliado dos jovens, o cineasta sabia que a moral é muito coisa de azares e acasos, e bastante imune a decisões. Mesmo as decisões que as personagens tomam parecem opções de recurso, extemporâneas, planos B quando o plano A falhou.
Mais do que uma condução racional nas exactas linhas racionais dos diálogos e ambientes burgueses, a narrativa em Rohmer é uma pulsão. Libidinais, mas não libidinosos, os contos de Rohmer são sempre uma questão de desejos. De conquistas, rivalidades, ciúmes. Quando o curso dos acontecimentos escapa a um dos protagonistas, para o bem ou para o mal, é a epifania, e não a aprendizagem, que conta. Podem ser epifanias felizes, como se fossem sorrisos do destino, ou a epifania triste da mentira e da decepção. Em geral, quando passam por um desses momentos, as personagens de Rohmer, tantas vezes alunos e estudantes, reconfiguram o seu universo moral em instantes. Fazem de contas que aprenderam.
Marivaux está presente em Rohmer, embora os obstáculos sociais se tenham tornado de outra natureza, talvez mais imperceptível. O dramaturgo acreditava que o amor triunfava sempre sobre os seus inimigos e os seus disfarces; Rohmer acreditava que a sedução acaba por triunfar sobre o amor propriamente dito, porque se torna um palco de apostas e desafios, de tentativas e recomeços. Em comparação com o oitocentista, o cineasta é mais pessimista, e no fim de contas não tão romântico quanto isso. Basta vermos como a ideia da "exclusividade" nunca é dada por adquirida. Os Contos Morais (1962-1972) obedecem à regra de A deixar B por C e voltar a B. Conclusão moralista? Num ou noutro caso, mas além disso resultado do medo e da fragilidade que um homem descobre no trânsito entre duas mulheres opostas. Nas Comédias e Provérbios (1980-1987), o ponto de vista já é feminino, e talvez por isso mais desenvolto e quase "libertino". E os provérbios, que são uma espécie de ética em adágios, dão depois lugar ao génio do clima e às épocas da vida em Contos das Quatro Estações (1989-1998), nos quais tudo continua tão imprevisível como uma chuvada numa noite de Verão.
Os jovens indecisos e os adultos imaturos de Rohmer são intrigantes, estão intrigados, intrigam. A intriga, em Rohmer, é um pretexto, porque cada narrativa é apenas uma versão da história. As personagens vivem iludidas, mas não é grave, porque o cinema é também uma ilusão e, de algum modo, a vida também é, ou pelo menos o modo como conduzimos as nossas vidas. Eric Rohmer sempre pareceu uma figura paterna, ou pelo menos um irmão mais velho, mesmo em relação aos seus companheiros de geração. Mas foi até ao fim um aliado dos jovens, fascinado com a teatralidade com que os jovens fazem dos factos consumados pretensas estratégias intencionais.
Nos meus Rohmers favoritos, e Rohmer é o meu cineasta favorito, há sempre epifanias fugazes e contraditórias, agridoces: Haydée intempestivamente abandonada no meio de uma estrada, o joelho de Claire quase como se não fosse erótico, o católico que descobre a loura Françoise na missa, Gaspard fingindo que não tem saída com as mulheres, François que descobre o namorado da sua quase namorada, Marion chocada ao perceber que ser adulto é viver com a mentira. Estas personagens não crescem: evoluem. Não aprendem: sujeitam-se. E mesmo se acham que seduzem, talvez seja apenas como em Kierkegaard: "Ele não seduz, deseja, e esse desejo tem um efeito sedutor."
Também isso ensinou Eric Rohmer, nosso aliado.
Uma retrospectiva Eric Rohmer começa esta semana na Cinemateca