Bobby sentiu-se como uma ervilha

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A artista escolheu 158 desenhos do seu percurso de 11 anos de tratamento de uma doença mental pedro cunha

A artista e performer britânica Bobby Baker pintou 711 desenhos ao longo de um lento processo de tratamento de uma doença mental. Para a exposição escolheu 158 imagens e deu-lhes ordem e sentido. Hoje sabe: "Se tivesse parado de desenhar, acho que me tinha ido abaixo."

Num dos seus primeiros desenhos, no dia três do tratamento, Bobby está dentro de uma caixa castanha rodeada de mãos a negro que a tentam alcançar, como num filme de terror. "Era a gente louca à minha volta, eram os outros doentes", lembra a artista inglesa Bobby Baker. Ao dia seis do tratamento o seu terapeuta é desenhado como uma personagem horrífica com garras compridas e ensanguentadas também a tentar fazer-lhe mal.

Mais à frente, no dia 12, dois dos doentes já são coloridos e estão calmamente sentados num banco de jardim, de loucos passaram a amigos com nome. Ao dia 233 há um desenho onde os terapeutas deixam de ser monstros e passam a ser seres que tentam alcançá-la para ajudá-la.

É de um percurso de 11 anos que dá conta a exposição Diário de desenhos: A doença mental e eu, 1997-2008, que ontem foi inaugurada na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, no âmbito do Fórum de Saúde dedicado às diferentes faces da saúde mental.

Além de cientistas nacionais e internacionais, a britânica Bobby Baker traz o contributo das artes na perspectiva de quem esteve doente. A exposição, que vai ficar até 25 de Março, passa em revista o seu lento percurso de recuperação desde que um dia, aos 47 anos, um psiquiatra lhe disse: "Sofre de perturbação da personalidade."

Nunca tinha ouvido falar de tal coisa, mas a expressão vinha abalá-la como pessoa. Estava a dizer-lhe que a sua personalidade - "Uma palavra muito importante" - estava perturbada. "Senti-me indignada e respondi-lhe: "Fale por si.""

Depois de uma carreira como artista e performer, casada e mãe de dois adolescentes, e depois de um período de sobrecarga no trabalho, Bobby começou a ter vários sintomas que a levaram até aquele diagnóstico, que a meteram naquela "caixa com um rótulo" da qual se sai com dificuldade, mesmo que já se esteja bem: alucinações, paranóia, vontade de se automutilar, às vezes de se matar.

Os desenhos dão conta de um itinerário que começa com o vermelho-sangue, tem fases onde predomina o azul das lágrimas - "Eu sou sempre a mais chorona" - e da água do mar que se atravessa entre ela e o terapeuta, quando, ao dia 418 do tratamento, lhe contou o episódio do afogamento do seu pai, quando tinha 15 anos. "Se tivesse parado de desenhar, acho que me tinha ido abaixo", diz esta artista de 59 anos, de cabelo espetado e ténis brancos.

O terrível e o divertido

Chegava a casa depois de mais um dia no centro de dia e ia depositando os desenhos num armário da cozinha. Não os mostrava a ninguém, muito menos ao marido e filhos, porque ficariam assustados. "Tinha medo que eles os vissem. Os primeiros eram horríficos."

Soube anos mais tarde que espreitar para os seus cadernos foi a forma de a filha, na altura com 16 anos, perceber como estava. "Ela tinha medo que eu me magoasse." A filha hoje é psicóloga clínica - não será por acaso - e é com ela, Dora Whittuck, que é comissária desta exposição, que se estreou em Março do ano passado, na Wellcome Collection, em Londres.

Os desenhos foram sendo deixados de forma mais descuidada pela casa, mostrou-os a terapeutas, um deles disse-lhe que através deles "percebia melhor o seu sofrimento do que pelo [seu] comportamento feito de loucuras". "Os desenhos começaram a sair cá fora", mas só há seis anos começou a mostrá-los como potenciais objectos artísticos. "Dantes os desenhos não faziam sentido."

De um monte de 711 seleccionaram os 158 que agora dão sentido à exposição, cinco anos depois de ter deixado de tomar medicação. Para os mostrar aos outros havia que tentar ordenar uma história que, quando estava a ser vivida, era só caos. Conseguiu agrupá-los em 17 fases e está lá metido "o terrível, o ridículo, o divertido, a esperança, o equilíbrio e a recuperação". A exposição é dedicada a Laura Soundy, uma das muitas "vidas tristes e terríveis" com quem a artista sem cruzou e que se suicidou atirando-se de um quinto andar.

A artista louca?

Do centro de dia Bobby Baker passou para grupos de crise e para "as piores sete semanas da sua vida", em que esteve internada num hospital psiquiátrico. "Nunca mais senti a mesma confiança no sistema de saúde mental. Não falavam comigo como uma pessoa. Fiquei muito zangada com o que vi."

Centrada no seu mundo mental a vida continuou a acontecer. Em 2007 ficou "aliviada" quando descobriu que os seus sintomas tinham "uma causa física" - eram de um clássico cancro da mama. A palavra "alívio" parece não ser a mais adequada para um diagnóstico de cancro, mas Bobby volta a usá-la. "É um alívio. Ninguém nos julga, não há culpa nem embaraço."

Quando o médico lhe explicou sintomas e efeitos secundários do tratamento, agradeceu-lhe e ele estranhou. É que nunca como doente mental lhe explicaram o que iria sentir por tomar uma determinada medicação. "Com cancro da mama senti-me uma pessoa inteira."

Em contraste, "os doentes mentais são tratados como crianças que devem fazer o que lhes dizem, caso contrário é porque estão a resistir à medicação" e isso, como é óbvio, é visto como parte da doença.

Durante o cancro choveram-lhe "100 ramos de flores, cestos de frutas", quando durante tantos anos antes tinha estado "muito mais em risco de vida" e recebido apenas "uns cinco ramos de flores".

Antes de decidir expor este seu lado da vida ainda pensou: "Será que eu quero ser conhecida como "a artista louca"?" "Não me interessa, quero é que as pessoas se relacionem com as coisas." Foi por isso que, em 2000, não se importou de participar numa acção de sensibilização de saúde mental nas ruas de Londres, atada à parte de trás de uma camioneta, a gritar com um megafone: "Comportem-se bem, comportem-se bem."

"Houve um momento em que me senti exposta e achei a ideia estúpida, mas depois uns homens da construção civil começaram a rir-se." O humor sempre fez parte do seu trabalho, mas pergunta-se como teria sido encarado, se tivesse sido diagnosticada como doente mental há mais tempo. Numa das suas performances, antes dos sintomas, cozinhou uma família em forma de bolo para dar de comer a visitantes da sua cozinha.

Depois da doença os seus métodos de fazer arte não mudaram e continuou a explorar o humor do quotidiano. "Fiquei fascinada pelo meu tratamento." Quando a dada altura lhe foi sugerida a terapia comportamental dialéctica, achou-a ridícula. Usava-se uma linguagem importada dos Estados Unidos e sendo Bobby desde sempre "do grupo que goza e questiona", encontrou ali matéria-prima para o seu espectáculo How to live, estreado em 2004 no Barbican Centre, em Londres, e que foi mostrado ontem em vídeo na Gulbenkian.

Durante o espectáculo aproveita para se rebelar, para os analisar a eles, os "psis" da sua vida, psiquiatras, psicólogos, psicanalistas. Distingue-os pelo tipo de sapatos que usam, goza com os seus rostos inexpressivos, como a "cara tipo lago", imita-os esticando o queixo para tornar a cara mais oblonga e apatetada.

Além de satirizar este mundo, decidiu partilhar com o mundo o seu próprio método terapêutico. Inventou as 11 técnicas para viver, uma paródia em torno de estratégias como as dos 12 passos. No espectáculo aparece com uma bata branca, para dar um ar clínico, há um sofá, quatro manuais de diagnóstico. Em causa estava a análise a um doente que sofre, que coincidência, de perturbação de personalidade, só que se trata de uma ervilha congelada.

Como artista sempre lhe interessou "o mundo do minúsculo". E une o indicador e o polegar como se pegasse num grão invisível. Mas ali a ervilha serve para mostrar como se sente um doente - "pequeno, insignificante, perdido", "quando se tenta explicar o que se sente e não se consegue". "É horrível."

Ouviu um dia que numa conferência um cientista a elogiou dizendo que "era maravilhosa a forma como conseguia tão bem descrever os sintomas" e Bobby ri-se do ridículo de uma frase tão paradoxal. "Eu tive os sintomas. Eu sei." Em algumas das instituições do sistema de saúde público britânico por onde passou Bobby é agora representante dos utentes, uma "especialista em sofrimento".

No espectáculo diz, quando faz de terapeuta, que é preciso tentar colocarmo-nos no lugar dos outros. É por isso que se veste de ervilha, às vezes assustada, com ataques de pânico no congelador. Mas aprendeu a ser assertiva e a exprimir os seus sentimentos. No fim do espectáculo um batalhão de ervilhas curadas agradece a terapia.

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