Ainda o Nobel da Literatura para José Saramago era uma miragem, e com ele o salto na notoriedade internacional que viria a justificar a atenção do cinema pela sua obra - com as adaptações de "Jangada de Pedra" (2000), de Georges Sluizer, e "Ensaio sobre a Cegueira" (2008), de Fernando Meireles -, e já um jovem estudante de cinema de Coimbra achava que as histórias do escritor português davam um filme.
António Ferreira (n. Coimbra, 1970) tinha 23 anos, acabara de entrar na Escola de Cinema em Lisboa, e ficara fascinado com a leitura do "Evangelho Segundo Jesus Cristo". "Gostei muito do livro, e comecei a ler quase tudo o que havia do Saramago", recorda. Entre essas leituras, houve um conto da compilação "Objecto Quase" (1978), "Embargo", que lhe despertou um irresistível desejo de cinema: "Sempre achei que o Saramago tem uma escrita muito cinematográfica, os seus livros provocam-nos imagens muito fortes". E, de uma forma que agora admite ter sido um pouco "naïve", decidiu mesmo começar a filmar essa história numa curta-metragem. Fez algumas sequências, mas depressa as arrumou no baú dos projectos adiados que normalmente se acumulam nessa idade.
Década e meia depois, "Embargo" aí está, crescido para uma longa-metragem - a segunda na carreira do realizador de "Esquece Tudo o que te Disse" (2002) -, que vai ter antestreia na próxima semana no Fantasporto (sessão no dia 3 de Março, às 21h, no pequeno auditório do Rivoli). "Curiosamente, reencontrei há pouco tempo algumas das cenas que fiz na altura, e onde não há nada que se aproveite - na verdade, é mesmo horrível!", confessa António Ferreira, contente, apesar de tudo, por assim ter provas materiais da sua admiração pré-Nobel pela obra do escritor. Aliás, está mesmo a pensar incluir essas sequências no "making of" do filme, o que permitirá documentar a evolução da abordagem que fez do conto de "Objecto Quase".
Saramago escreveu "Embargo" a pretexto da grave crise petrolífera mundial de 1973, na sequência da guerra israelo-árabe do Yom Kippur. O escritor dramatiza a dependência do homem perante o automóvel, símbolo de uma civilização que o seu construtor deixou de conseguir dominar.
"É uma metáfora da nossa sociedade, da nossa dependência das máquinas", sintetiza António Ferreira. A crise provocada em Portugal, em Junho de 2008, pelo bloqueio dos camionistas levou o realizador a aperceber-se, uma vez mais, da actualidade da "mensagem" de Saramago. "Nessa altura, pude assistir, um pouco, àquilo que ele escrevia no seu conto: em tão poucos dias, por causa de um bloqueio decidido por um grupo de pessoas, a nossa sociedade pareceu desmoronar-se", diz António Ferreira, lembrando-se de como então viu em Coimbra os supermercados a ficarem de prateleiras vazias. "Era uma espécie de aviso: de um momento para o outro tudo o que temos por seguro pode colapsar", diz, realçando a nossa fragilidade - um tema caro, aliás, à obra de Saramago.
Foi essa mensagem que António Ferreira quis manter no seu filme, cujo argumento foi escrito por Tiago Sousa (com quem já tinha também trabalhado em "Esquece Tudo o que te Disse"), mas sem qualquer contacto pessoal com o autor de "Caim" - "Propus a participação dele, mas percebi logo que ele não tinha tempo para estas coisas", diz o realizador.
A passagem da curta à longa-metragem - e posta de parte a experiência de há década e meia, quando António Ferreira se limitara a "ilustrar passagens do conto" - obrigou os autores a "criar uma história nova, mas partindo dos pressupostos" do curto conto de Saramago.
"Mad Max à portuguesa"
"Embargo", o filme, começa com uma sequência tintada de cores gastas pelo tempo, num lugar e numa época indefinidos, num mundo esvaziado de pessoas e com as bombas de gasolina esgotadas - "uma espécie de Mad Max à portuguesa", diz o autor. O guarda-roupa das personagens e um velho Opel Kadett transportam-nos para a década de 70, mas o aparecimento de um computador, um "scanner" e um telemóvel, do mesmo modo que a associação da pop anos 60 com a música tecno, vêm baralhar a datação. "O filme, como não é passado nem presente, só pode ser futuro", o que torna a mensagem ainda mais inquietante. Com esta indefinição, o realizador quis também evitar o risco de ver os espectadores a procurarem a verosimilhança dos adereços, lançando-os antes para "um mundo suspenso de um embargo" em que um homem (Filipe Costa, actor e músico) se vê de um momento para o outro literalmente presa do seu carro e da voracidade deste pela gasolina que cada vez é mais escassa.
No conto de Saramago, o homem sobrevive à morte do automóvel. No filme, António Ferreira quis preservar essa ideia de "libertação", mas não vai revelar o epílogo desta história fantástica, por razões óbvias.
"Embargo", como a primeira longa-metragem e as curtas que depois realizou - "Respirar (Debaixo de Água)", 2000; "Humanos - A Vida em Variações" (2006) e "Deus Não Quis" (2007) -, é uma produção da ZED Filmes, sediada em Coimbra, cidade a que António Ferreira regressou e onde se fixou depois de ter vivido em Lisboa, Paris e Berlim.
"É uma escolha natural filmar em Coimbra. Temos lá a produtora, é lá que temos desenvolvido a maior parte do nosso trabalho", diz, fazendo notar não ter nenhuma preocupação em fazer "manifesto" por um qualquer cinema de país real. "Não trabalhamos em Coimbra para sermos contra Lisboa, nem contra nada. Se amanhã tiver uma história que se passe em Lisboa, irei filmá-la lá, sem problema nenhum". Mas é em Coimbra que se sente em casa: "Conheço os sítios, sei a quem tenho de telefonar para arranjar aquilo de que preciso", explica o realizador, que à volta da ZED Filmes, constituída há uma década, reúne uma equipa que nos últimos anos expandiu a sua actividade para a produção de documentários, videoclips, filmes institucionais e publicidade.
"Embargo" expressa, por outro lado, o cruzamento que os filmes de António Ferreira sempre fazem com o teatro e com a música também "made in" Coimbra. Exemplo disso é o actor protagonista, Filipe Costa, músico dos Sean Riley & the Slowriders, que já passou pelos Bunnyranch, e que o realizador considera ter sido "uma escolha acertada", decidida "logo à primeira". O autor da música é Luís Pedro Madeira, que já tinha também musicado "Esquece Tudo o que te Disse" e integrou outra banda local, os Belle Chase Hotel. "É tudo um ambiente familiar", resume António Ferreira, que gosta de transportar essa atmosfera para o "plateau", onde normalmente trabalha sem grandes preocupações de pré-planificação.
O realizador espera que a estreia de "Embargo" no Fantasporto ajude ao lançamento nacional do filme, que deverá chegar ao circuito comercial depois do Verão - com distribuição também assumida pelo próprio.
Na calha, tem já dois novos projectos: fazer a adaptação de um livro de Rosa Lobato de Faria, "A Trança de Inês" - "é a história de Pedro e Inês situada em três momentos históricos também indefinidos, entre o passado, o presente e o futuro" -, ou avançar com um argumento original, "A Bela América", no qual está a trabalhar desde que terminou "Esquece Tudo o que te Disse". Mas mais pormenores sobre estes projectos ficam sob embargo.
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