Pode um homem apaixonado guardar a mulher amada num museu? Pode um homem fascinado guardar a sua cidade num museu? Kemal, personagem principal do último livro do Nobel turco Orhan Pamuk, acredita que sim. Pamuk parece também acreditar.
Em "Museu da Inocência", que a Presença editará em Portugal em Maio, Pamuk volta a percorrer a sua cidade, a única que lhe interessa: Istambul. E faz Kemal andar pelas mesmas ruas, amargurado pela perda do seu amor, Füsun, uma prima distante que reencontra no dia em que entra numa loja para comprar uma mala para a noiva. "Istambul é agora uma galáxia de sinais que me lembram dela". Cidade e mulher confundidas.
Perdida Füsun, não resta a Kemal mais do que recolher todos os objectos que com ela se relacionam, todos em que ela tocou, centenas de pontas de cigarros, ganchos de cabelo, cães de porcelana, bilhetes de autocarro, um saleiro, um raspador de fruta, para os juntar num monumento ao seu amor, a que chama "Museu da Inocência".
Pamuk não resistiu a estender esta história ficcional até à realidade e está a construir em Istambul, num velho edifício situado numa esquina, o seu Museu da Inocência. Cada exemplar do livro dá direito a um bilhete de entrada para este mundo suspenso entre a ficção e a realidade, como se o escritor tivesse encapsulado a cidade da sua juventude para voltar a ela sempre que desejar.
O que ele guarda no museu é a Istambul dos anos 70, cidade para a qual olha sempre com aquela nostalgia profunda a que os turcos chamam "hüzün" - e que Adam Shatz, num artigo sobre o escritor na "London Review of Books", descreve como "uma melancolia colectiva cuja origem ele coloca na queda do império otomano, e da qual parece retirar um prazer mórbido".
Aqui o "hüzün" surge misturado com um humor carinhoso - um dos objectos desse museu é um copo de água onde está mergulhada uma dentadura. "Toda a gente da geração dos meus avós tinha este tipo de dentaduras. Os professores mal-humorados na escola tinham-nas também, e quando se zangavam os dentes batiam uns nos outros e toda a gente ria", explicou Pamuk ao "New York Times". "Todas as noites antes de se deitar a minha avó tirava-os da boca e, segurando-os delicadamente nas mãos, lavava-os com uma escova e pasta de dentes, e punha-os num copo com água até à manhã seguinte. A visão fascinava-me. Vi o mesmo tipo de copo de dentes falsos junto ao leito de morte do meu pai".
No Museu da Inocência, Kemal não guarda só uma cidade, guarda um tempo, o tempo em que foi feliz. "Está a fazer-se tarde na Istambul do novo romance de Pamuk, tarde em quase todos os sentidos da palavra", escreve Michael Gorra numa crítica no jornal britânico "The Guardian". "Não é a morte, longe disso, mas as horas são pequenas e o próprio tempo parece estar a esgotar-se, como se toda a cidade fosse um memorial aos seus tempos melhores".
A colecção de objectos e o próprio museu são, reforça Gorra, "exemplos daquilo em que Pamuk costuma chamar hüzün". "É a palavra turca para melancolia, mas tem um peso mais complexo do que o termo inglês. Carrega uma espécie de compreensão teológica do 'lugar da perda e do luto', tem notas de elegia e de nostalgia [...] e acima de tudo surge como a emoção que define esta capital pós-imperial".
Psicanálise e filmes porno
Na Istambul dos anos 70 e início dos anos 80, o círculo em que se move Kemal é o de uma burguesia que quer ser europeia mas permanece inevitavelmente turca - o eterno dilema do país. As mulheres pintam os cabelos de louro e falam com desprezo dos que parecem demasiado turcos. Füsun, a prima por quem Kemal se apaixona, está desse lado demasiado turco (não é por acaso que a mala de marca que ela lhe vende para ele oferecer à noiva é rapidamente identificada por esta como uma cópia).
A festa de noivado de Kemal e Sibel, uma grande cena central do livro, passa-se no Hilton e os convidados bebem champanhe "europeu" comprado no mercado negro. O escritor Pico Iyer resume num texto sobre o livro ("New York Review of Books") o dilema desta Turquia que quer ser cosmopolita: "A era em que a história se passa (muito à semelhança da América vinte anos antes) e o tempo dos primeiros disc jockeys em Istambul e das primeiras sessões de psicanálise, de discussões ansiosas em torno dos primeiros concursos de beleza e modelos, que muitos desaprovam e anseiam ao mesmo tempo. É até o tempo dos 'primeiros filmes pornográficos islâmicos', copiados de manuais sexuais europeus comprados no mercado negro, e concluídos sem os actores principais tirarem a roupa interior".
Mas há sempre um desfasamento inultrapassável. "No final dos anos 50, diz-nos Pamuk, os turcos adoravam gabar-se de serem os primeiros a terem uma batedeira eléctrica ou um abre-latas ou uma máquina de barbear eléctrica. Traziam da Europa, entusiasmados, máquinas para fazer maionese - só para descobrirem que não havia peças sobressalentes na Turquia, pelo que estes grandes símbolos do novo tornavam-se, muito rapidamente, relíquias."
São algumas destas novas-velhas relíquias, que Pamuk guarda no museu. Durante dez anos, enquanto escrevia o livro, foi recolhendo os objectos, obsessivamente como Kemal ia fazendo na ficção. Havia objectos que se infiltravam na história, outros que ele procurava quando a história ficava parada à espera de algo que a fizesse andar. Às vezes era alguma coisa que estava na montra de uma loja, outras no apartamento de um amigo, ou num mercado de rua.
"Quero encher [o museu] modestamente com as coisas que fazem a cidade, que fazem qualquer cidade", explicou ao "New York Times". "Quero que o meu museu seja o museu da cidade, que inclua tudo, desde mapas das ruas, a fechaduras, a maçanetas de portas, passando por telefones públicos e o som das sirenes de nevoeiro".
A cidade aprisionada. Uma cidade que já não existe, excepto na memória de Pamuk - e dentro do "Museu da Inocência".
Não será um acaso que quando, ao fim de uma espera de anos, Kemal e Füsun finalmente fazem amor, o que passa em frente dos olhos dele sejam "imagens de Istambul em velhos filmes, ruas cobertas de neve, postais a preto e branco".