O Iémen não é impossível, mas parece

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"Art of Building in Yemen" é um livro de paixões e este português, Fernando Varanda, só o podia ter escrito - a primeira edição, de 1982, publicada pela MIT Press, e a reedição da Argumentum, com pouco mais de dois meses - por paixão.

O que é que o Iémen tem para Fernando Varanda lá ter querido morrer? Para lá ter querido desesperadamente voltar? Para dizer ainda hoje, mais de 35 anos depois da primeira viagem, que não há palavras para descrever aquele primeiro embate? Chegar a Sanaa: "Foi, foi, olhe, acho que só olhando para a minha cara... não consigo dizer por palavras. Fiquei de boca aberta. O que é isto? O que é isto? O que é isto? [e o tom de voz vai subindo e subindo e os olhos vão abrindo ainda mais do que o habitual]. O que é isto? O que é isto?".

"Isto" é mesmo difícil de descrever. Pensa-se no Iémen e pensa-se em torres de adobe. Agora nem tanto. Desde Dezembro que se pensa em terrorismo porque o jovem nigeriano que tentou fazer explodir um avião no dia de Natal lá terá recebido instruções para o ataque falhado. Na verdade, já desde o 11 de Setembro que algumas pessoas podem pensar no Iémen e lembrar-se de Osama bin Laden. Afinal, foi lá que nasceu o seu pai.

Mas esqueçamos o terrorismo e Washington a dizer que impedir o Iémen de se tornar um Estado falhado é uma das suas "grandes prioridades de política externa". Esqueçamos todos os títulos de jornais e pensemos que nada disso é real. Porque o que é real são as casas em torre de Sanaa Velha ou os edifícios de 30 metros em adobe de Shibam, aos quais a UNESCO chama Património da Humanidade. Porque reais são as casas que se avistam quando se percorre a estrada montanhosa que liga Sanaa a Hodeida, no Mar Vermelho. Aquelas torres lá no alto. Como foram construídas? Como é que se chega ali? Como é que se sai dali? Como é que se vive ali?

É mesmo difícil de descrever. Percebe-se que Fernando Varanda opte por se expressar com perguntas. Não há respostas. É assim.

Varanda lembra o que ele e outros que tinham chegado antes, e os que vieram logo a seguir, mais notavam na altura, nos anos 70: "A simplicidade. Aqueles tipos faziam aquelas coisas, quase sem ferramentas, e aquilo era como os putos a montarem legos, não é? É isso que era espantoso." Sim, "claro, havia circunstâncias naturais favoráveis, o sol...".

Há mais para além do sol. Havia a ideia de "concentrar para cultivar": construir em altura para libertar o solo e plantar cá em baixo. Há "a própria organização política que é, desde os reinos pré-islâmicos, uma organização de pequenos grupos que se combatiam entre si". Por tudo isso, "é provável que haja também uma razão estratégica para concentrar e de construir em altura." Mas, depois, "como é que foi desenvolvida a tecnologia, como é que é desenvolvido o gosto pela construção em altura?" Porque, diz, "eles não parecem ter medo nenhum, é ir por ali acima".

Passes de mágica, não se explicam.

"O que é que causa isto? O que é uma identidade que se revela em arquitectura? A gente diz que a identidade dos portugueses se revela na poesia, não é? A dos iemenitas revela-se na arquitectura... se a gente pode falar em lugares comuns como estes... O que é esquisito é estar-se a perder. Mas isso também tem que ver com a maneira como a sociedade mudou. A História não é um fio, é um tecido, é muita coisa", aponta Varanda.

Muita coisa. A História do Iémen são montanhas e construções de pedra e oásis e construções de terra e o petróleo que ficou do lado saudita da fronteira disputada - e Ali Abdullah Saleh, o Presidente que não parece disposto a largar o poder. A de Fernando Varanda é muita coisa, mas não se pode tentar saber o que é sem Iémen, sem Sanaa, sem Shibam, sem Hodeida, sem Mukalla, sem Maarib, sem Saada, nem sequer sem Taiz. Nada faria sentido, nem esta conversa com vista para uma varanda cheia de plantas no centro de Lisboa.

A Enciclopédia Britânica

De certo modo, tudo começou no Iémen, ou recomeçou por causa dele, digamos assim.

"Eu estava nos Estados Unidos a acabar os meus estudos, a tomar uma decisão, e um amigo meu diz-me que estavam à procura de voluntários. Tinha várias alternativas. Não sabia o que era o Iémen, tinha assim umas vagas descrições e depois vi uma fotografia muito pequenina na Enciclopédia Britânica e fui. Foi um bocado aquela coisa, ainda de juvenil, de aventura, essa história toda."

Por causa do Iémen e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), e de um projecto que ele pensava que ia envolver "fazer uns milhares de casas em Sanaa", Fernando Varanda fartou-se de estudar. "Fiz uma paragem em Portugal de quase seis meses ainda antes de ir. De maneira que andei a ver tudo, e foi giro porque estive a falar com antigos mestres. O meu interesse por esse tipo de arquitectura já lá devia existir latente. Estudei sistemas de construção. Fartei-me de me preparar."

Como naquela primeira vez era difícil entrar no Iémen dividido, a viagem fez-se por Áden, a grande cidade porto do Sudoeste, então Iémen do Sul, marxista. "Em Áden andava por lá a ver, dei por mim e estava no meio da rua, já tinha saído do aeroporto. Um bocado paranóico, voltei a correr para dentro." A seguir rumou a Norte. "Taiz era uma cidade como as outras, assim um bocado Moscavide. A parte nova de Taiz, aquela parte feita pelos egípcios nos anos 1960."

A seguir veio a tal estrada que une Hodeida a Sanaa, uma daquelas que nem os iemenitas de punhal curvado à cintura fazem sem enjoos, sem sustos, sem arrepios. Lá em cima estão elas, as construções impossíveis. A seguir Sanaa e afinal é Sanaa que faz perguntar "O que é isto?". Há mais, tanto que é impossível escolher um só sítio onde regressar. Mas foi em Sanaa que um dia Fernando Varanda pensou que ali podia morrer.

Uma paixão violenta

"O Iémen pode tornar-se uma paixão violenta. Para mim foi. Agora estou mais calmo. A certa altura o que eu queria era voltar para lá, voltar... Andou sempre tudo ao contrário, houve sempre qualquer coisa a meter-se de permeio. Um dia estava no terraço da minha casa a ver as mulheres do outro lado da rua a brincar com as crianças, e o fim de tarde, aqueles fins de tarde fantásticos em Sanaa. E pensei que queria morrer lá. Em 1976, eu também não era muito velho, tinha uns 35 anos. Mas foi assim, essa sensação. Não há melhor do que isso."

A aventura não foi apenas a decisão, foi a viagem, foi o Iémen.

Fernando Varanda depressa percebeu que os iemenitas não precisavam assim tanto daqueles milhares de casas que o PNUD devia construir. Mas precisavam de pessoas que começassem a ajudá-los a pensar em soluções para preservar os seus maiores tesouros, as suas construções. E afinal aquele até "era um projecto bem interessante de um arquitecto [Alain Bertaud] que se propunha fazer a aldeia das Nações Unidas toda em terra, em adobe. Era um projecto-protótipo".

Bertaud "lançou as bases". Varanda devia ir ajudar - era voluntário. "Mas depois ele foi-se embora e eu fiquei lá sozinho a tomar conta da loja." A loja era um gabinete de planeamento urbano que deveria nascer ligado ao Ministério das Municipalidades: "O director, eu, e quatro topógrafos que eram do tempo da outra senhora, e que estavam a fazer tudo. Havia ruas que saíam um bocadinho assim...". Tortas.

Era preciso pessoal e o director da loja tratou de o arranjar. "Um belo dia aparece-me lá com 18 fulanos, não sei onde é que os foi arranjar. Mas aquilo que eles tinham de instrução formal era a escola corânica." Foi preciso treiná-los. "Encontrei um grupo de pessoas fantásticas nessa altura e então fizemos uma escola, que funcionava na municipalidade, de tarde, onde se dava desde desenho, matemática, aquelas coisas para eles poderem trabalhar. E realmente desse grupo ficou um nó, um nó de meia dúzia de pessoas que depois arranjaram bolsas, foram estudar para o estrangeiro, completaram devidamente essa educação e arranjaram cargos de importância no país. Como o amigo que me convidou agora a voltar", explica Fernando Varanda.

Enquanto o pessoal era treinado e o gabinete se formava e não formava, o português tinha de viajar. O presidente da câmara de uma dada cidade queria um projecto e ele lá ia. Telefonavam e pediam "um development, uma urbanização". Entretanto, Varanda ia vendo tudo e tomando notas e tirando fotografia. De Sanaa a Hodeida - e mais umas voltas para Leste não oficiais, com jipe das Nações Unidas e tudo. "Nesse processo, de ir a estes sítios, de fazer projectos para lá" ia crescendo sempre o espanto. "Depois ainda havia a ameaça de aquilo poder ir tudo para o maneta, porque havia aquela vaga dos egípcios e as próprias autoridades rejeitavam um bocado um passado associado ao imã [que chefiara o regime islâmico do imanato], das paredes de terra e tal".

O que Bertaud queria com a aldeia protótipo "que não era precisa para nada" era "convencer o pessoal que se podia fazer boa arquitectura em adobe". Havia Bertaud e havia outros, era a altura em que germinava a ideia de fazer um esforço de preservação. Varanda apanhou essa fase e então quis fazer mais ainda. "Tive sorte. Disse 'quero fazer um grande levantamento do Iémen, assim um pouco como o 'Arquitectura Popular em Portugal', com um grupo de pessoas'. Fiquei sozinho e fiz o que pude."

Arquitectura iemenista

Varanda ficou uns anos, na sua casa de Sanaa. Depois, nos anos 80, esteve por lá mais uns tempos. Lá estava na reunificação do Sul e do Norte, da República Democrática e da República Árabe, em 1990, 22 de Maio. Em 2006, está a fazer agora quatro anos, convidado por um daqueles iemenitas que foram seus discípulos, pôde por fim regressar e voltar a percorrer o país dos construtores. Objectivo: "Art of Building in Yemen", parte dois. O primeiro livro "agora é arqueologia", diz.

As construções que o deixaram de boca aberta ainda existem, por todo o país. Ainda se constroem novas quase da mesma maneira - no Hadramaut, por exemplo, a construção em adobe está "vigorosa", quase intocada nos métodos, nas técnicas, nos modelos, nos resultados -, mas também há muito de novidade, inspiração local e imaginação fértil. "São misturas do encontro, se calhar, com a arquitectura de revista. Faço lá ideia do que por lá aparece de 'Casas e Jardins'."

Assim se perde muito, também talvez se ganhe.

"Chamo àquilo arquitectura iemenista, uma arquitectura que tem as raízes nesse esforço de continuar a construir em pedra. Ora, a introdução de vias de transporte e da noção de compra de materiais, ali, como em outros locais, transforma a paisagem construída. Esse fenómeno da impregnação de um tecido construído, desenvolvido localmente em torno de uma estrutura social, política, tribal, ambiental, produz uma determinada arquitectura."

O Iémen mudou muito e perdeu-se na construção, mas as pessoas "vivem da mesma maneira, nas mesmas casas, em casas novas". Têm frigorífico, também têm camas, agora, e roupeiros. Mas ainda há a matéria-prima, claro, e o "mafraj", a sala dos donos da casa e dos seus convidados, o terraço das vistas sem fim, onde se põe a roupa a secar. "Não sei como é que a arquitectura pode traduzir a personalidade das pessoas. Mas do ponto de vista da personalidade, do estar em casa, do serem as mesmas pessoas, não havia diferença nenhuma."

O desenho também "vai mudando, vão-se criando linguagens formais diferentes". Pelas ruas de Sanaa e outras, também há construções de Fernando Varanda, urbanizações, "developments". "Agora dizem-me: 'Ah, este bairro, foste tu que desenhaste. Mas é completamente irreconhecível, são interpretações livres, libérrimas."

Orgulhosos hospedeiros

O que vai ficar também ninguém sabe dizer. "Uma coisa é a arquitectura popular ou vernacular em que se aprende directamente, fazendo, outra coisa é a arquitectura erudita, ou a aproximação erudita da arquitectura, em que se aprende por livros, sem efectivamente ter feito. Aqui no Iémen está-se no princípio disso. Eu não sei, por exemplo, como é que determinadas técnicas, como o zabour, ali da zona de Sadaa, vão ser preservadas. É provável que daqui a uns anos haja uma escola profissional com uns engenheiros e uns arquitectos que estudaram cuidadosamente o que havia e decidiram experimentar fazer casas em zabour, por acharem que é muito importante para a identidade do Iémen."

A verdade é que os iemenitas são sonhadores. E às vezes os sonhos deles concretizam-se. Como o "Art of Building in Yemen". "Isto é uma encomenda do Iémen. A edição que está a ser vendida em Portugal foi, digamos, um acréscimo que a Argumentum decidiu fazer. Mas o livro mostra que há interesse. Eu estava convencido de que isto nunca mais ia para a frente." Mas o livro fez-se e vai a caminho do Iémen, de barco. Deve estar mesmo, mesmo a chegar.

Fernando Varanda espera voltar. Por causa do livro, por causa do Iémen. Por causa dele.

"O meu livro é sobre a arte de construir. Queria falar da atitude dos iemenitas quando olham para o mundo. Mostrar o que é que aquela gente é, porque só sendo uma gente muito especial pode fazer o que fez. É verdade, são orgulhosos, e se calhar é isso que lhes dá a capacidade de serem hospedeiros, não desconfiam do visitante." Recebem-no, nas suas casas de adobe ou de pedra e cinco andares; oferecem-lhe comida, cama, "qat", a erva estimulante que os homens mascam dia a dia; convidam-no para as suas festas, fazem festas para o convidar. As construções são belas, os construtores especiais. Apetece voltar.

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